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Telangiectasia hereditária hemorrágica: causa rara de hipertensão pulmonar?

Resumos

Uma mulher de 73 anos foi admitida ao Pronto-Socorro com insuficiência cardíaca predominantemente direita e anemia. Após avaliação clínica e imagenológica, um diagnóstico de hipertensão pulmonar (HP) associado com telangiectasia hemorrágica hereditária (THH) foi confirmado. A resposta inicial à terapia com bosentan mais sildenafil foi boa, incluindo melhora na Classe Funcional e redução do edema, permitindo que ela recebesse alta hospitalar. Infelizmente, a paciente faleceu devido à sua condição básica, antes que o efeito do tratamento combinado pudesse ser completamente avaliado. A HP deve ser considerada em pacientes com THH e o screening para HP deve ser conduzido nesses pacientes e em seus familiares.

Telangiectasia hemorrágica hereditária; hipertensão pulmonar; epistaxe; doenças vasculares


A 73-year-old woman was admitted to the emergency room with predominantly right-sided heart failure and anemia. Following clinical and imagiological evaluation, a diagnosis of pulmonary hypertension (PH) associated with Hereditary Hemorrhagic Telangiectasia (HHT) was confirmed. The initial response to bosentan plus sildenafil was good, including improvement in functional class and reduction of edema, allowing her to be discharged. Unfortunately, the patient died, due to her underlying condition, before the effects of the combination treatment could be fully assessed. PH should be considered in patients with HTT and screening for pulmonary hypertension should be performed in these patients and their relatives.

Telangiectasia, hereditary hemorrhagic; hypertension, pulmonary; epistaxis; vascular diseases


RELATO DE CASO

Telangiectasia hereditária hemorrágica: causa rara de hipertensão pulmonar?

Rui Providência; Maria do Carmo Cachulo; Gisela Veríssimo Costa; Joana Silva; Carlos Graça Lemos; A.M. Leitão-Marques

Coimbra's Hospital Center, Cardiology Department, Coimbra - Portugal

Correspondência Correspondência: Rui André Quadros Bebiano da Providência e Costa Couraça de Lisboa nº22 3000-434 - Coimbra - Portugal E-mail: rui_providencia@yahoo.com

RESUMO

Uma mulher de 73 anos foi admitida ao Pronto-Socorro com insuficiência cardíaca predominantemente direita e anemia. Após avaliação clínica e imagenológica, um diagnóstico de hipertensão pulmonar (HP) associado com telangiectasia hemorrágica hereditária (THH) foi confirmado. A resposta inicial à terapia com bosentan mais sildenafil foi boa, incluindo melhora na Classe Funcional e redução do edema, permitindo que ela recebesse alta hospitalar. Infelizmente, a paciente faleceu devido à sua condição básica, antes que o efeito do tratamento combinado pudesse ser completamente avaliado. A HP deve ser considerada em pacientes com THH e o screening para HP deve ser conduzido nesses pacientes e em seus familiares.

Palavras-chave: Telangiectasia hemorrágica hereditária, hipertensão pulmonar, epistaxe, doenças vasculares.

Introdução

A síndrome de Rendu-Osler-Weber, também conhecida como telangiectasia hemorrágica hereditária (THH), foi primeiramente descrita por Osler, Rendu e Hanes no século 191-4. É uma doença autossômica dominante, com uma prevalência de < 5 em 8,0005 e é causada por mutações nos genes que codificam os receptores de sinalização do fator beta de transformação do crescimento (TGF-ß), endoglina e da activina receptor-like kinase 1 (ALK1)1.

A síndrome é caracterizada por telangiectasias que afetam a pele e as membranas mucosas, mais frequentemente as mãos, os pés, lábios, língua e conjuntiva. Epistaxes espontâneas e de repetição frequentemente estão presente, bem como hemorragias gastrointestinais que causam anemia ferropriva. As técnicas diagnósticas de imagem também revelaram anomalias arteriovenosas pulmonares (30% dos pacientes), hepáticas (<30%) ou cerebrais (10-20%)6,7. A definição diagnóstica de Shovin e cols.8 de THH requer a presença de pelo menos três dos seguintes: epistaxe, telangiectasias, anomalias vasculares viscerais ou histórico familiar da doença8. Alguns pacientes com THH também apresentam complicações pulmonares tais como hipertensão pulmonar. Essas são mais comuns em pacientes com mutações no gene ALK-19- também associadas com outras formas genéticas de hipertensão pulmonar primária - embora a prevalência precisa não seja conhecida.

Descrevemos o caso de uma paciente idosa com THH e hipertensão pulmonar grave.

Relato de caso

Uma mulher de 73 anos foi levada duas vezes ao Pronto-Socorro com insuficiência cardíaca predominantemente direita. Ela também apresentava edema dos membros inferiores, sinal de Godet, dispnéia grave após pequenos esforços (classe funcional III da New York Heart Association - NYHA) e ortopnéia quando colocada em um ângulo de 45º. Seu histórico médico incluía anemia (devido à angiodisplasias gastroduodenais), frequentes e abundantes epistaxes por um período de mais de 20 anos, fibrilação atrial, hipertensão arterial e doença venosa dos membros inferiores. Ela havia sido submetida a uma histerectomia cinco anos antes devido à presença de miomas. Um estudo endoscópico anterior havia indicado a presença de angiodisplasias friáveis no corpo gástrico e duodeno, devido às quais a paciente havia recebido terapia de coagulação com plasma de argônio. Não havia registro de doença parenquimatosa pulmonar, apnéia do sono ou uso de qualquer substancia anorexígena.

Sinais de THH (isto é, angiodisplasias da língua, membrana mucosa oral e membros) também tinham estado presente em seu pai, uma tia paterna e primo paterno. Durante o exame físico, a paciente estava consciente, orientada e cooperativa. Ela estava eupnéica e não mostrava sinais visíveis de síndrome de angústia respiratória. A oximetria de pulso mostrava níveis de saturação de oxigênio de 96%. À ausculta cardiopulmonar, os sons respiratórios eram simétricos, com alguns estertores inspiratórios basais ouvidos em ambos os lados. Um sopro sistólico foi detectado na região da válvula pulmonar. Não havia nenhuma alteração abdominal aparente. A pele e membranas mucosas estavam hidratadas, mas pálidas. Telangiectasias eram visíveis na língua, membrana mucosa oral e pele (face e braços).

Um eletrocardiograma mostrou fibrilação atrial com resposta ventricular controlada e alterações não-específicas de repolarização anterolateral. Remodelamento cardíaco foi demonstrado através de um radiograma torácico póstero-anterior e ecocardiografia transtorácica. A ultrassonografia por Doppler mostrou regurgitação tricúspide moderada a grave, o que tornou possível estimar a pressão sistólica da artéria pulmonar (PSAP) em 76 mmHg (56 gradiente VD/AD + 20mmHg para ausência total de colapso da veia cava inferior). A presença de shunt cardíaco congênito foi excluída através de um ecocardiograma transesofágico. Um angio-TC pulmonar mostrou dilatação do tronco pulmonar e seus principais ramos, com abundante vasculatura até a periferia dos campos pulmonares, mas não a presença de trombos ou fístulas arteriovenosas (Figura 1). Testes laboratoriais mostraram valores de <0,3mg/dL e 2941,3pg/mL para proteína C-reativa e pró-hormônio N-terminal do peptídeo natriurético cerebral, respectivamente. Malformações dos sistemas arterial e venoso hepático (aumento de calibre dos vasos, aspecto tortuoso e taxas de fluxo turbulentas e rápidas) foram sugeridas pelo ultrassonografia por Doppler e confirmadas pela angio-TC (Figura 2). Após análise cuidadosa de todos os dados clínicos, analíticos e de imagem, um diagnóstico de hipertensão pulmonar associada com THH foi sugerido. Foi proposto que shunts hepatovenosos haviam levado à condições de hiperfluxo na circulação pulmonar, o que por sua vez havia resultado no desenvolvimento de hipertensão pulmonar.



Uma cateterização posterior indicou pressão média na artéria pulmonar de 56 mmHg (74/40/56), aumento da resistência vascular pulmonar (5,1 unidades de Wood), com pressão capilar pulmonar normal e elevado índice cardíaco (5,3 L.min-1.m-2). A coronariografia mostrou que a artérias coronárias não apresentavam dano, mas tinham coloração exagerada. Inicialmente, a paciente foi tratada com digoxina intraduodenal (0,25 mg), maleato de enalapril (5 mg), daflon (500 mg), furosemida (2 mg/kg), ranitidina (300 mg) e um suplemento de ferro e folato; entretanto, a condição da paciente não melhorou. Após o diagnóstico da HP, ela iniciou a terapia com bosentan mais sildenafil. Isso trouxe uma melhora gradual à sua condição.

Durante sua estadia no hospital, a paciente adquiriu pneumonia nosocomial devido à infecção por Klebsiella pnemoniae, que foi tratada com piperacilina + tazobactam por duas semanas e apresentou vários episódios de epistaxe e hematêmese, necessitando de endoscopia alta, retomada da terapia de argônio, e varias transfusões (total: 14 unidades de células vermelhas) e posterior tratamento com esomeprazole intravenoso e sucralfato, folato oral, ferro e vitamina B12.

Após 65 dias, a condição cardíaca da paciente havia claramente melhorado (para Classe Funcional II da NYHA); ela não apresentava edema dos membros inferiores e podia caminhar pequenas distâncias sem ajuda, de forma que recebeu alta. Uma semana depois, ela foi novamente admitida ao Pronto-Socorro com melena e anemia. Ela recebeu uma transfusão de 2 unidades de células vermelhas e terapia de plasma de argônio, para o tratamento das displasias gastroduodenais. Uma semana depois ela foi readmitida com dispnéia devido à pneumonia bilateral (causada por um microorganismo não-identificado) e anemia grave, para as quais ela recebeu duas unidades de células vermelhas e antibióticos intravenosos. Ela recebeu alta quando os níveis de hemoglobina aumentaram de 5,2 g/dL para 9,2g/dL, mas faleceu alguns dias depois devido a uma hemorragia alta incontrolável.

Discussão e conclusôes

Essa paciente apresentava doença vascular bem desenvolvida que afetava múltiplos órgãos (fígado, pulmões e trato gastrointestinal). A despeito de uma boa resposta À terapia combinada com bosentan e sildenafil para a HP, ela eventualmente morreu como consequência de sua doença de base, tornando difícil avaliar a evolução funcional hemodinâmica da paciente durante o tratamento. Há poucos relatos de HP associada com THH na literatura; a taxa de desenvolvimento de HP nesses pacientes é desconhecida e pouco se sabe sobre o tratamento mais adequado. Em um estudo de caso anterior, Schlag e cols.10 relataram que o número de episódios de epistaxe pode aumentar com prostanóides, enquanto uma boa resposta ao bosentan foi observada.

As razões pelas quais alguns pacientes com mutações no gene ALK-1 desenvolvem apenas THH, enquanto outros desenvolvem apenas HP idiopática e ainda outros desenvolvem ambas as condições não são conhecidas. Para diagnosticar a HP associada com THH, deve-se considerar o histórico do paciente cuidadosamente e confirmar os sinais e sintomas da condição utilizando-se vários procedimentos diagnósticos de imagem. Como a THH apresenta uma forma de transmissão autossômica dominante, recomendamos que os membros das famílias dos pacientes com THH sejam submetidos a exames periódicos através de ecocardiografia transtorácica com Doppler (a cada três anos), a fim de avaliar a pressão sistólica da artéria pulmonar.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 22/05/09; revisado recebido em 11/07/09; aceito em 06/08/09.

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  • Correspondência:
    Rui André Quadros Bebiano da Providência e Costa
    Couraça de Lisboa nº22
    3000-434 - Coimbra - Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Revisado
      11 Jul 2009
    • Recebido
      22 Maio 2009
    • Aceito
      06 Ago 2009
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