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Incapacidade para atividades habituais: relação com pressão arterial e terapêutica anti-hipertensiva

Resumos

FUNDAMENTO: A hipertensão arterial desempenha papel determinante na ocorrência de eventos clínicos graves, porém há controvérsias quanto ao impacto dos níveis da pressão arterial ou das medicações anti-hipertensivas no cotidiano dos indivíduos. OBJETIVO: Verificar se a elevação dos valores pressóricos ou a terapia farmacológica anti-hipertensiva determinam incapacidade temporária para atividades habituais. MÉTODOS: Análise de dados seccionais de 2.953 participantes, em 1999-2001, de coorte de funcionários de universidade no Rio de Janeiro (Estudo Pró-Saúde). A ocorrência e duração da incapacidade nos 14 dias anteriores à coleta de dados foram avaliadas segundo o valor aferido da pressão arterial, como variável contínua, e com a estratificação dos participantes em quatro grupos, combinando as informações quanto à pressão arterial (< ou > 140/90 mmHg) e o uso relatado de medicação anti-hipertensiva. Realizamos regressão logística multinomial, com ajuste múltiplo para sexo, idade cor/raça, renda domiciliar per capita, e relato de comorbidades. RESULTADOS: A razão de chances ajustada para a relação entre uso de anti-hipertensivos e incapacidade de 8 a 14 dias foi de 2,08 (IC 95%: 1,25-3,48), e para a relação entre aumento de 10 mmHg da pressão sistólica e incapacidade de até 7 dias foi de 0,92 (IC 95%: 0,84-1,01). CONCLUSÃO: Incapacidade temporária por 8 a 14 dias associada à medicação anti-hipertensiva pode estar relacionada aos seus efeitos adversos. Entre outras razões, a sugestiva associação inversa entre pressão sistólica e incapacidade por até 7 dias pode relacionar-se ao fenômeno de hipoalgesia por vezes descrita entre hipertensos.

Hipertensão; anti-hipertensivos; perfil de impacto da doença


FUNDAMENTO: La hipertensión arterial desempeña un papel determinante en la aparición de eventos clínicos graves, aunque hay controversias en cuanto al impacto de los niveles de la presión arterial o de la medicación antihipertensiva en la vida cotidiana de los individuos. OBJETIVO: Verificar si la elevación de los valores tensionales o el tratamiento farmacológico antihipertensivo determinan incapacidad temporaria para actividades habituales. MÉTODOS: Análisis de datos seccionales de 2.953 participantes, en 1999-2001, de cohorte de funcionarios de universidad en Rio de Janeiro (Estudio Pró-Saúde). La ocurrencia y duración de la incapacidad en los 14 días anteriores a la recolección de datos se evaluaron según el valor de presión arterial medido, como variable continua, y con la estratificación de los participantes en cuatro grupos, en los que se combinaron las informaciones en cuanto a la presión arterial (< o > 140/90 mmHg) y al uso referido de medicación antihipertensiva. Realizamos regresión logística multinomial, con ajuste múltiple para sexo, edad color/raza, renta domiciliaria per capita, y relato de comorbilidades. RESULTADOS: La razón de chances ajustada para la relación entre uso de antihipertensivos e incapacidad de 8 a 14 días fue de 2,08 (IC 95%: 1,25-3,48), y para la relación entre aumento de 10 mmHg de la presión sistólica e incapacidad de hasta 7 días fue de 0,92 (IC 95%: 0,84-1,01). CONCLUSIÓN: La incapacidad temporaria por 8 a 14 días asociada a la medicación antihipertensiva puede estar relacionada a sus efectos adversos. Entre otras razones, la sugestiva asociación inversa entre presión sistólica e incapacidad de hasta 7 días puede relacionarse al fenómeno de hipoalgesia descripta a veces entre hipertensos.

Hipertensión; antihipertensivos; perfil de impacto de la enfermedad


BACKGROUND: Arterial hypertension has a crucial role in the occurrence of severe clinical events, but there are controversies regarding the impact of the arterial pressure levels or anti-hypertensive medication on the routine activities of individuals. OBJECTIVE: To verify whether the increase in arterial pressure levels or anti-hypertensive medications determine a temporary incapacity for routine activities. METHODS: Analysis of sectional data of 2,953 participants, from 1999-2001, of a cohort of university employees in Rio de Janeiro (Pro-Saude Study). The occurrence and duration of the incapacity on the 14 days before data collection were assessed according to the measured level of arterial pressure, as continuous variable and with the stratification of the participants in four groups, combining the information regarding the arterial pressure (< or > 140/90 mmHg) and the reported use of anti-hypertensive medications. A multinomial logistic regression was carried out, with multiple adjustments for sex, age, ethnicity, per capita household income and report of comorbidities. RESULTS: The adjusted odds ratio for the association between the use of anti-hypertensive medication and incapacity for 8 to 14 days was 2.08 (95% CI: 1.25-3.48), and 0.92 (95%CI: 0.84-1.01) for the association between a 10 mmHg increase in systolic pressure and incapacity for up to 7 days. CONCLUSION: Temporary incapacity for 8 to 14 days associated to anti-hypertensive medications might be related to its adverse effects. Among other reasons, the suggestive inverse association between the systolic pressure and incapacity for up to 7 days can be related to the phenomenon of hypoalgesia, sometimes described by hypertensive individuals.

Hypertension; antihypertensive agents; sickness impact profile


ARTIGO ORIGINAL

EPIDEMIOLOGIA

Incapacidade para atividades habituais: relação com pressão arterial e terapêutica anti-hipertensiva

Gilberto Senechal de Goffredo Filho; Eduardo Faerstein

Departamento de Epidemiologia - Instituto de Medicina Social - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil

Correspondência Correspondência: Gilberto Senechal de Goffredo Filho Rua Henrique Dias, 453 - Retiro - 25680-301 - Petrópolis, RJ - Brasil E-mail: senechal330@gmail.com

RESUMO

FUNDAMENTO: A hipertensão arterial desempenha papel determinante na ocorrência de eventos clínicos graves, porém há controvérsias quanto ao impacto dos níveis da pressão arterial ou das medicações anti-hipertensivas no cotidiano dos indivíduos.

OBJETIVO: Verificar se a elevação dos valores pressóricos ou a terapia farmacológica anti-hipertensiva determinam incapacidade temporária para atividades habituais.

MÉTODOS: Análise de dados seccionais de 2.953 participantes, em 1999-2001, de coorte de funcionários de universidade no Rio de Janeiro (Estudo Pró-Saúde). A ocorrência e duração da incapacidade nos 14 dias anteriores à coleta de dados foram avaliadas segundo o valor aferido da pressão arterial, como variável contínua, e com a estratificação dos participantes em quatro grupos, combinando as informações quanto à pressão arterial (< ou > 140/90 mmHg) e o uso relatado de medicação anti-hipertensiva. Realizamos regressão logística multinomial, com ajuste múltiplo para sexo, idade cor/raça, renda domiciliar per capita, e relato de comorbidades.

RESULTADOS: A razão de chances ajustada para a relação entre uso de anti-hipertensivos e incapacidade de 8 a 14 dias foi de 2,08 (IC 95%: 1,25-3,48), e para a relação entre aumento de 10 mmHg da pressão sistólica e incapacidade de até 7 dias foi de 0,92 (IC 95%: 0,84-1,01).

CONCLUSÃO: Incapacidade temporária por 8 a 14 dias associada à medicação anti-hipertensiva pode estar relacionada aos seus efeitos adversos. Entre outras razões, a sugestiva associação inversa entre pressão sistólica e incapacidade por até 7 dias pode relacionar-se ao fenômeno de hipoalgesia por vezes descrita entre hipertensos.

Palavras-chave: Hipertensão, anti-hipertensivos/efeitos adversos, perfil de impacto da doença.

Introdução

A hipertensão arterial (HA) desempenha papel plenamente reconhecido na gênese de agravos à saúde, com grande impacto individual e coletivo, como doença coronariana, acidente vascular encefálico (AVE) e doença renal crônica1. Um aspecto menos estudado da HA é sua potencial repercussão no cotidiano do portador, que pode ocorrer através de mecanismos diferentes das lesões de órgãos-alvo citadas. Em primeiro lugar, há a possibilidade da ocorrência de efeitos biológicos diretamente relacionados aos valores elevados da pressão arterial (PA). A maior parte das evidências atuais sugere que a HA, ao menos nas faixas leve a moderada, é assintomática2, sendo ainda controversa a existência de relação, por exemplo, entre HA e cefaleia3. Em segundo lugar, o uso de terapia farmacológica anti-hipertensiva pode determinar pior qualidade de vida do usuário4, decorrente de sintomas induzidos pelas drogas utilizadas. Por fim, um indivíduo hipertenso pode adotar atitudes específicas, como absenteísmo no trabalho e limitação de atividades sociais ou de lazer5, simplesmente por reconhecer-se portador de uma doença, num processo conhecido como rotulação.

A incapacidade temporária para a realização de atividades habituais, definida como uma restrição temporária na capacidade funcional habitual do indivíduo6, é um indicador do estado de saúde recomendado pela Organização Mundial da Saúde para estudos populacionais e pode ser útil para determinar o impacto de uma doença ou condição no cotidiano dos indivíduos.

Neste trabalho, investigamos se a HA determina incapacidade temporária para atividades habituais, especificamente pela repercussão direta dos valores pressóricos ou indiretamente pelo efeito da terapia farmacológica anti-hipertensiva.

Métodos

Analisamos dados do Estudo Pró-Saúde, uma pesquisa longitudinal de funcionários técnico-administrativos efetivos de uma universidade localizada no Estado do Rio de Janeiro. A população-alvo foi identificada por meio da combinação de listagens fornecidas pelo órgão de recursos humanos da instituição, pelo setor responsável pela elaboração da folha de pagamento e diretamente por suas unidades e setores. Foram excluídos funcionários cedidos a outras instituições e licenciados por motivos não relacionados à saúde.

Três fases de coleta de dados já foram realizadas: 1999, 2001 e 2006-2007. Todo o processo de coleta de dados nas três fases foi realizado por equipes treinadas de pesquisadores, supervisores e coordenadores de campo. Diariamente, os questionários eram revisados e digitados de maneira duplicada e independente. Especificamente em relação à PA, os pesquisadores de campo foram treinados por meio de material produzido pelo British Medical Journal7. O controle de qualidade incluiu a detecção de possível viés de dígito terminal e a avaliação quinzenal da proporção de dados ausentes e de medidas idênticas da PA.

Em nosso estudo, de natureza seccional, utilizamos dados colhidos na segunda fase do estudo, relativos aos participantes das duas primeiras fases de coleta de dados. Dos 4.177 servidores elegíveis para participação na coorte, foram obtidas informações sobre 3.253 funcionários. Após exclusão de dois servidores com idade acima de 80 anos e de participantes com dados faltantes (267 em relação à incapacidade temporária e 31 em relação à PA), nossa população de estudo foi composta de 2.953 participantes (70,7% dos elegíveis).

Realizaram-se duas medidas da PA e utilizou-se a média das aferições. O uso de medicação anti-hipertensiva foi avaliado por meio da pergunta: "Nos últimos 7 dias você tomou algum medicamento?". Em caso de resposta positiva, o participante informava a medicação, e esta era categorizada como anti-hipertensivo ou não por dois codificadores independentes. Posteriormente, os indivíduos foram categorizados em quatro grupos referentes à exposição: 1) aqueles com PA abaixo de 140/90 mmHg e sem relato de uso de medicação anti-hipertensiva; 2) aqueles com PA > 140/90 mmHg e igualmente sem relato de medicação; 3) os que relataram o uso de medicação e apresentaram PA < 140/90 mmHg; 4) e os que relataram uso de medicação e apresentaram PA > 140/90 mmHg. Esse procedimento permitiu a análise em separado do valor elevado da PA e dos medicamentos como potenciais determinantes de incapacidade temporária.

Como desfecho, consideraram-se a ocorrência e a duração dos episódios de incapacidade temporária para a realização das atividades habituais nos 14 dias anteriores, por meio das perguntas: "Nas últimas duas semanas, você ficou impedido(a) de realizar alguma de suas atividades habituais (por exemplo, trabalho, estudo, lazer ou tarefas domésticas) por algum problema de saúde que você teve ou tem?"; o participante que relatasse incapacidade temporária, responderia à seguinte questão: "Nessas últimas duas semanas, por quantos dias, no total, você ficou impedido(a) de realizar alguma de suas atividades habituais (por exemplo, trabalho, estudo, lazer ou tarefas domésticas) devido a este(s) problema(s) de saúde que você teve ou tem?".

Com base na distribuição observada, nosso desfecho foi agrupado em três categorias de participantes: aqueles que não relataram incapacidade, os que a relataram por período de até 7 dias e os que a relataram por 8 a 14 dias.

Algumas variáveis foram consideradas potenciais confundidoras. A idade, o índice de massa corporal (IMC, em kg/m2) e a renda domiciliar per capita (em salários mínimos vigentes na época) foram tratados como variáveis contínuas, e aplicamos a esta última uma transformação logarítmica, em razão de sua distribuição apresentar grande assimetria à direita. Tratamos como variáveis categóricas: sexo; cor/raça, autodefinida pelo entrevistado; presença de comorbidades (foi considerado portador de comorbidades o participante que declarou já ter sido informado por médico ser portador de "diabete" e/ou "colesterol alto"); e escolaridade, com estratificação em três categorias: participantes com até o ensino fundamental completo, nível médio completo e nível universitário.

Após a análise descritiva dos dados e a determinação da proporção de indivíduos com valores da PA > 140/90 mmHg, daqueles em uso de medicação anti-hipertensiva, e da frequência e duração da incapacidade temporária, realizamos uma avaliação da prevalência e duração da incapacidade temporária entre as quatro categorias de exposição citadas. Foram pesquisadas também as médias da PA sistólica e diastólica nos três diferentes grupos em relação ao desfecho (sem incapacidade e incapacidade de menor e maior duração).

Posteriormente, conduzimos a análise multivariada por meio de regressão logística multinomial para a apreciação da influência de potenciais fatores de confusão, usando a razão de chances como medida da magnitude da associação. A utilização desse modelo baseou-se na ausência de ordinalidade intrínseca entre as categorias do desfecho8. Utilizamos dois modelos diferentes na análise. No primeiro, a exposição foi tratada usando-se as quatro categorias descritas, sendo o grupo de referência aqueles indivíduos com PA < 140/90 mmHg e sem uso de medicação, e o desfecho com a variável composta citada. No segundo modelo, utilizamos os valores da PA sistólica e diastólica em mmHg como variável contínua, multiplicados por 10, e o uso de medicação anti-hipertensiva como dicotômica, como variáveis de exposição.

Introduzimos nos modelos, sequencialmente, as potenciais variáveis de confusão: inicialmente, sexo, idade e cor/raça; posteriormente as que se relacionam com a posição socioeconômica, como escolaridade e renda domiciliar per capita; por fim, incluímos o índice de massa corporal (IMC) e a presença de comorbidades. As covariáveis que modificassem a estimativa pontual da associação entre exposição e desfecho em mais de 10% ou que fossem associadas a um p-valor < 0,05 em sua associação com o desfecho foram mantidas no modelo. As análises citadas foram repetidas após exclusão dos entrevistados que relataram diagnóstico prévio de infarto do miocárdio (IM), angina ou AVE. Os procedimentos estatísticos foram realizados usando-se o programa Stata 9.1.

Esses protocolos foram submetidos e aprovados pelo Comitê de Ética na Pesquisa da universidade onde o estudo foi conduzido. Os participantes foram informados sobre o Estudo Pró-Saúde e seus objetivos, e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

Resultados

A tabela 1 mostra a distribuição das covariáveis nos 2.953 participantes, havendo pequeno predomínio de indivíduos do sexo feminino, brancos, do grupo com renda domiciliar per capita de até três salários mínimos e de indivíduos com maior grau de escolaridade. As frequências de relatos de diagnóstico prévio de comorbidades (diabete melito ou dislipidemia) e de angina, IM ou AVE se encontram na mesma tabela. A idade média dos participantes foi de 41,7 anos (variando entre 24 e 69 anos), e o IMC variou entre 15,6 e 64,1, com média de 26,2 e mediana de 25,5 (dados não mostrados na tabela).

Quatrocentos e noventa e cinco participantes apresentaram PA > 140/90 mmHg, e 452 relataram uso de medicação anti-hipertensiva; a composição dos quatro estratos formados com base nessas características é apresentada na tabela 2, assim como suas PA médias.

Incapacidade temporária para atividades habituais nas 2 semanas anteriores foi relatada por 704 participantes (23,8%), com duração média de 3,9 dias e mediana de 2 dias. Dentre aqueles que relataram o tempo de incapacidade, em 551 (83%) participantes esta durou até 7 dias, e em 113 (17%), de 8 a 14 dias.

A maior proporção de incapacidade temporária foi relatada no grupo que usava medicação e com PA < 140/90 mmHg (Tabela 2). Na mesma tabela, observamos que a menor prevalência de incapacidade foi encontrada entre os indivíduos com PA elevada, sem uso de medicação. Observamos um tempo médio de incapacidade maior entre os indivíduos que relataram uso de anti-hipertensivos (Tabela 2).

As médias da PA sistólica e diastólica nos grupos com ou sem incapacidade temporária encontram-se na tabela 3, e não verificamos diferenças clinicamente relevantes dos valores entre esses grupos.

Na análise de regressão em que se utilizou a exposição como variável categórica, observamos que o grupo de indivíduos com PA < 140/90 mmHg e que relatou uso de medicação anti-hipertensiva apresentou maior chance de incapacidade temporária por 8 a 14 dias, e esse efeito não se manteve no grupo que relatou uso de medicação e apresentou PA > 140/90 mmHg (Tabela 4). Entre os participantes com PA > 140/90 mmHg sem uso de medicação, houve uma sugestão, com significância estatística limítrofe, de menor chance de incapacidade temporária por até 7 dias.

No modelo em que se utilizou o valor da PA como variável contínua, verificamos uma tendência a menor chance da ocorrência de incapacidade temporária por até 7 dias para cada aumento de 10 mmHg da PA sistólica, novamente sem que o resultado alcancasse significância estatística formal. O uso de medicação anti-hipertensiva associou-se a maior chance de incapacidade por 8 a 14 dias (Tabela 5).

Os resultados permaneceram praticamente inalterados quando as análises foram repetidas com a exclusão dos indivíduos que relataram angina, IM ou AVE prévios (dados não apresentados).

Discussão

Em nosso estudo, observamos maior ocorrência de incapacidade para atividades habituais por 8 a 14 dias nos indivíduos que relataram uso de medicação anti-hipertensiva. No modelo que utilizou a PA como variável categórica, essa relação entre uso de medicação e incapacidade se manteve nos indivíduos com PA < 140/90 mmHg, e não foi observada nos indivíduos com PA > 140/90 mmHg.

Entre aqueles participantes que não relataram uso de medicação anti-hipertensiva, ou considerando o valor da PA, observamos relação inversa, com significância estatística limítrofe, entre a PA e incapacidade por até 7 dias de duração.

O fato de não haver mudança dos resultados após exclusão dos participantes que relataram diagnóstico prévio de angina, IM ou AVE reforça a ideia de que as associações observadas não se relacionam à presença dessas complicações.

Não encontramos na literatura estudo que abordasse possíveis efeitos da HA na incapacidade temporária para atividades habituais. Utilizando variável semelhante a essa, Tsai e cols.9 observaram maior número de dias de ausência no trabalho em indivíduos hipertensos. Tirado e cols.10 verificaram maior frequência de incapacidade temporária para o trabalho e também maior número de dias de incapacidade laborativa em hipertensos. Ressaltamos que esses estudos não enfocam o mecanismo por meio do qual a HA determinou a incapacidade citada.

Acreditamos que a ocorrência de eventos adversos constitui explicação plausível para a maior prevalência de incapacidade temporária encontrada nos indivíduos que relataram o uso de medicação anti-hipertensiva, principalmente quando observamos que o uso das drogas associou-se à incapacidade por 8 a 14 dias, sugerindo um efeito associado ao uso diário ou, pelo menos, frequente da medicação. Nossos resultados são consistentes com outras pesquisas, como as de Lawrence e cols.4 e Roca-Cusachs e cols.11 que observaram relação direta entre número de drogas usadas e pior avaliação da qualidade de vida em hipertensos. Considerando que a presença de efeitos indesejáveis é um determinante importante da não adesão ao tratamento, conforme apontado na quinta edição do evento Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial12, esses dados reforçam a ideia já amplamente difundida quanto à necessidade de estabelecimento de um esquema terapêutico farmacológico com o mínimo possível de efeitos indesejáveis.

O desenho seccional de nosso estudo impõe uma ressalva em relação às possíveis inferências realizadas a partir da associação encontrada entre uso de drogas anti-hipertensivas e incapacidade temporária. Não podemos descartar a possibilidade de causalidade reversa, ou seja, que a percepção de um sintoma qualquer tenha levado o participante a procurar assistência médica e que a medicação anti-hipertensiva tenha sido indicada a partir de verificação de PA elevada nesse episódio. Entretanto, se o episódio de incapacidade tivesse acarretado o uso posterior de medicação na maior parte dos participantes, teríamos provavelmente encontrado associação também entre uso de droga e incapacidade de menor duração, o que não ocorreu.

Ademais, o relato de uso de medicação em nosso estudo não abrange a informação sobre o grau de adesão ao tratamento, que pode variar consideravelmente. Poucos estudos brasileiros aferiram o grau de adesão à terapêutica anti-hipertensiva, com grande variação dos resultados. O índice de adesão à medicação prescrita encontrado em pacientes pobres em Salvador foi de 11%, enquanto 67% dos pacientes em ambulatório de geriatria em Ribeirão Preto apresentavam adesão completa13; não temos, portanto, como fazer algum tipo de inferência sobre esse aspecto para a população pesquisada. A diferença da relação com incapacidade temporária observada entre os grupos que relataram uso de medicação, mas apresentavam PA < 140/90 mmHg ou > 140/90 mmHg, pode relacionar-se a graus diversos de adesão ao tratamento. É possível que os indivíduos do grupo com PA elevada tenham relatado uso das drogas, mas que seu grau de adesão seja menor, o que justificaria seus maiores valores da PA e menor repercussão das medicações em termos de incapacidade temporária.

Outra explicação possível para a maior prevalência de incapacidade temporária entre os indivíduos com PA elevada que relataram uso de medicação anti-hipertensiva é a adoção de um comportamento de maior "autocuidado" por parte destes, por exemplo com visitas mais frequentes a profissionais de saúde, e consequente "incapacidade" para realização de suas atividades habituais nessas ocasiões. Esse aspecto não foi controlado em nossas análises pela ausência de dados a respeito no estudo. No entanto, consideramos que, se esse fenômeno tivesse sido responsável por maior frequência de incapacidade temporária, tal fato teria ocorrido também para incapacidade por até 7 dias, o que não foi observado.

Em relação à tendência de associação inversa entre PA sistólica elevada e incapacidade por até 7 dias, podemos conjecturar se esta se relaciona ao fenômeno, observado por alguns autores, de hipoalgesia associada à HA. Esse fenômeno foi descrito inicialmente por Zamir e Shuber14 que detectaram limiar mais alto para dor por estímulo na polpa dental de homens hipertensos quando comparados com normotensos. A partir desse relato, vários autores vêm documentando esse fenômeno associado a dor em outros locais e por outros estímulos. Schobel e cols.15 observaram relação inversa entre a percepção de dor por estímulo mecânico cutâneo e o valor da PA média, aferida em momento imediatamente anterior ao estímulo. Duschek e cols.16 observaram menor limiar para dor induzida por estímulo térmico em indivíduos hipotensos quando comparados com normotensos, o que aponta para a existência desse fenômeno inclusive em níveis de PA abaixo daqueles que caracterizam a HA. É possível que a repercussão de eventos que sejam possivelmente causadores de dor no cotidiano dos hipertensos seja menor do que naqueles com PA normal. Hagen e cols.17 encontraram menor prevalência de dor musculoesquelética em várias localizações anatômicas nos indivíduos com PA mais elevada. Tronvik e cols.18 verificaram que maiores valores da PA sistólica e da pressão de pulso estavam associados a uma menor prevalência de cefaleia não migranosa na população geral.

Em nosso estudo, que pode ser considerado de porte médio, as aferições foram realizadas com padronização e controle de qualidade bastante rigorosos, e tais procedimentos são de grande importância para garantir a confiabilidade dos dados obtidos. Diferentemente da maior parte das pesquisas que abordam a repercussão da HA no cotidiano apenas classificando os participantes como hipertensos ou normotensos, utilizamos também o valor aferido da PA. Este estudo também inova ao investigar a repercussão dos níveis pressóricos elevados através de incapacidade temporária para atividades habituais, que consiste em abordagem diversa do enfoque habitual nos eventos graves relacionados à HA.

Algumas limitações do estudo devem ser apontadas. O valor da medida da PA que usamos refere-se à média de duas aferições realizadas em um único dia; levando em conta a variação da PA ao longo do tempo, não podemos afirmar que o valor obtido representa necessariamente o valor habitual dos níveis pressóricos nos 15 dias anteriores à verificação. Esta limitação deve ser enfatizada, principalmente considerando que a PA aferida do entrevistado pode ter sofrido influência de alguma mudança de comportamento (como até mesmo o uso de anti-hipertensivos) adotada em período recente.

Dentre as covariáveis utilizadas no modelo, é necessário lembrar que a classificação do indivíduo como portador de comorbidades foi feita com base em morbidade referida pelo participante. Considerando a possibilidade de haver relação entre a incapacidade temporária e as doenças consideradas nessa classificação (em especial o diabete melito, com os sintomas dele decorrentes), não podemos descartar o fato de haver algum grau de confundimento residual, pela possibilidade de o indivíduo não estar ciente de ser portador dessa condição.

Por tratar-se de um estudo seccional, pode ocorrer viés de sobrevivência seletiva, no qual hipertensos mais graves tenham sido excluídos precocemente da população por óbito ou aposentadoria decorrentes de complicações da HA. Portanto, os resultados encontrados não necessariamente se aplicam aos hipertensos com evolução mais desfavorável, e a pesquisa nesse subgrupo demandaria um desenho de estudo diferente do adotado.

Poderia ser cogitada também a hipótese de que determinados indivíduos teriam tendência a subestimar ou omitir voluntariamente a ocorrência de incapacidade temporária, por tratar-se de uma coleta de informações em ambiente de trabalho. Acreditamos que sua ocorrência tenha sido bastante rara, pela ênfase manifestada pela equipe de coleta quanto ao sigilo dos dados, pela explicitação de que se tratava de qualquer das atividades habituais do participante e por um certo efeito de "diluição" pelo fato de a pergunta estar disposta no questionário em meio a outras informações sem relação direta com ela.

Análises subsequentes serão desenvolvidas com base nos resultados apresentados aqui, como a ocorrência de incapacidade temporária em hipertensos em uso de diferentes medicações, o que pode nos fornecer dados importantes sobre opções de tratamento com menor repercussão no cotidiano do indivíduo, e a verificação das prevalências dos diversos motivos relatados de incapacidade, o que permitirá investigar de modo mais direto, nessa população de estudo, a hipótese de hipoalgesia associada à hipertensão arterial.

Conclusão

Em relação aos níveis da PA, nossos achados são consistentes com a hipótese de que maiores valores pressóricos podem determinar menor frequência de incapacidade temporária por período de até 7 dias, e, pelo menos na faixa de valores da PA não muito elevados, os dados sugerem ausência de repercussão negativa dos níveis pressóricos no cotidiano do indivíduo.

Observamos também associação entre o uso de drogas anti-hipertensivas e a maior frequência de incapacidade temporária de maior duração, o que reforça a importância do cuidado na implementação da terapêutica farmacológica anti-hipertensiva.

Agradecimentos

Agradecemos ao professor Michael Reichenheim as contribuições na elaboração deste trabalho.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi parcialmente financiado pelo CNPq e FAPERJ

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Gilberto Senechal de Goffredo Filho pelo Instituto de Medicina Social - Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Artigo recebido em 16/01/09; revisado recebido em 24/07/09; aceito em 10/08/09.

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  • Correspondência:
    Gilberto Senechal de Goffredo Filho
    Rua Henrique Dias, 453 - Retiro - 25680-301 - Petrópolis, RJ - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      16 Jan 2009
    • Revisado
      24 Jul 2009
    • Aceito
      10 Ago 2009
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