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Acometimento cardíaco em Casos de Doença de Chagas Aguda da Amazônia

Resumos

Descreve-se o acometimento cardíaco em cinco pacientes autóctones da Amazônia com diagnóstico de Doença de Chagas Aguda (DCA). Quatro desses pacientes apresentaram provável transmissão oral. Todos apresentaram algum grau de acometimento cardíaco, não havendo nenhum óbito.

Doença de Chagas; sucos; açaí; cardiomiopatia chagásica


The cardiac involvement of five patients from the Amazon region with Acute Chagas' Disease (ACD) is described. Four of these patients presented probable oral transmission. All of them presented some degree of cardiac involvement, but there were no deaths.

Chagas' disease; juices; açaí; Chagas' cardiomyopathy


RELATO DE CASO

Acometimento cardíaco em Casos de Doença de Chagas Aguda da Amazônia

João Marcos Barbosa-FerreiraI; Jorge Augusto de Oliveira GuerraII; Franklin Simões de Santana FilhoII; Belisa Maria Lopes MagalhãesII; Leíla I.A.R.C. CoelhoII; Maria das Graças Vale BarbosaII

IHospital Universitário Francisca Mendes (UFAM)

IIFundação de Medicina Tropical do Amazonas, Manaus, AM - Brasil

Correspondência Correspondência: João Marcos Barbosa Ferreira Rua Ramos Ferreira, 199, Apartamento 1501 - Aparecida 69010-120 - Manaus, AM - Brasil E-mail: jmbemfica@hotmail.com

RESUMO

Descreve-se o acometimento cardíaco em cinco pacientes autóctones da Amazônia com diagnóstico de Doença de Chagas Aguda (DCA). Quatro desses pacientes apresentaram provável transmissão oral. Todos apresentaram algum grau de acometimento cardíaco, não havendo nenhum óbito.

Palavras chave: Doença de Chagas, sucos, açaí, cardiomiopatia chagásica.

Introdução

O Brasil foi certificado em 2006 pela Organização Panamericana de Saúde como livre da transmissão vetorial da Doença de Chagas (DC), pelo Triatoma infestans. Este fato confirmou uma importante diminuição dessa forma de transmissão no país1.

Por outro lado, a Amazônia, que sempre foi considerada área de baixo risco para transmissão, vem apresentando aumento no número de casos agudos e crônicos. No período de 1997 a 2008, 617 casos agudos foram notificados na região em pequenos surtos ou em casos isolados. Esses surtos são muitas vezes relacionados a transmissão oral por ingestão de sucos de frutas da região como, por exemplo, o açaí2. No estado do Amazonas, foram identificados dois surtos de DCA por provável transmissão oral. O primeiro em Tefé, com nove casos em 20043 e o segundo em Coari, com 25 casos em 20074.

Existem poucos estudos descrevendo a morbidade da DCA transmitida por via oral. A presença de cepas silvestres de Trypanosoma cruzi e a forma de transmissão oral podem causar características peculiares do acometimento cardíaco da DC na Amazônia5,6.

No período de Janeiro de 2006 a Dezembro de 2007, foram atendidos cinco pacientes com diagnóstico de DCA na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, em Manaus. No presente relato, é descrito o acometimento cardíaco desses cinco pacientes.

Relato dos Casos

Caso 1

MCLR, 45 anos, sexo feminino, procedente da comunidade de Mojuí dos Campos, município de Santarém (PA). Em maio de 2006, iniciou quadro de febre, sendo feito diagnóstico de DCA através de gota espessa positiva para T. cruzi. Após seu diagnóstico foi identificado surto de infecção aguda em sua comunidade de origem provavelmente relacionado a transmissão oral após ingestão de açaí, o qual a paciente também ingeriu.

Referia dispneia aos esforços, ortopneia e dor torácica. O eletrocardiograma apresentava bloqueio divisional anterossuperior e o ecocardiograma, derrame pericárdico moderado.

Foi tratada para insuficiência cardíaca (IC) com inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA), betabloqueador e diurético e feito tratamento etiológico para DC com benzonidazol. Após o tratamento houve persistência do bloqueio divisional anterossuperior e desaparecimento do derrame pericárdico. As medicações foram suspensas gradativamente.

Caso 2

FTRJ, 12 anos, sexo masculino, procedente da comunidade de Mojuí dos Campos, município de Santarém (PA). É um dos pacientes pertencentes ao surto descrito acima também referindo ingestão do suco de açaí. Em maio de 2006 apresentou quadro de febre, recebendo diagnóstico de DCA por gota espessa positiva para T. cruzi.

Não apresentava queixas cardiológicas. O eletrocardiograma era normal e o ecocardiograma apresentava derrame pericárdico moderado. Após o tratamento com benzonidazol houve resolução completa do derrame pericárdico.

Caso 3

JRLD, 40 anos, sexo masculino, procedente da cidade de Coari (AM). Em abril de 2007, iniciou quadro de febre, anorexia e mialgia. Aproximadamente neste período foi identificado surto de DCA com 25 casos no município de Coari provavelmente relacionado a ingestão de suco de açaí. O paciente referiu ter ingerido açaí procedente da mesma localidade onde ocorreu o surto. Procurou atendimento em Manaus recebendo diagnóstico de DCA por gota espessa positiva para T. cruzi.

O eletrocardiograma apresentava bloqueio de ramo direito e o ecocardiograma era normal. Após o tratamento etiológico, houve desaparecimento do bloqueio de ramo direito.

Caso 4

JANF, 15 anos, sexo masculino, procedente de comunidade localizada no quilômetro 17 da rodovia AM-010, município de Manaus (AM). Em agosto de 2007, apresentou quadro de febre, palpitações, dispneia e dor torácica. O paciente referiu ingestão de suco de açaí procedente do município de Coari na mesma localidade do surto de infecção descrito acima. Foi feito diagnóstico de DCA por gota espessa positiva para T. cruzi.

O eletrocardiograma apresentava extrassistolia ventricular frequente e o ecocardiograma, disfunção sistólica ventricular esquerda com fração de ejeção de 50%.

Foi tratado para IC com IECA, betabloqueador e diurético e feito tratamento etiológico para DC com benzonidazol. Após o tratamento, os exames foram normais e as medicações foram suspensas gradativamente.

Caso 5

AMO, 46 anos, sexo masculino, procedente do município de Anamã (AM). Em Outubro de 2007, iniciou quadro de febre e palpitações. Foi diagnosticada DCA através de gota espessa positiva para T. cruzi. A história epidemiológica não permitiu suspeita da forma de transmissão da DC.

O eletrocardiograma apresentava ritmo de fibrilação atrial (FA) com frequência ventricular média de 110 bpm. O ecocardiograma transtorácico era normal. Foi iniciado tratamento etiológico para Doença de Chagas com benzonidazol. Com relação a FA, iniciou-se controle da frequência cardíaca com betabloqueador, anticoagulação e foi programada a realização de ecocardiograma transesofágico para posterior cardioversão. Após aproximadamente duas semanas de tratamento etiológico para DC, houve reversão para ritmo sinusal, sem necessidade de cardioversão da fibrilação atrial (Figura 1).


Discussão

Foram descritos, até o momento, apenas seis casos de cardiomiopatia chagásica crônica na região amazônica6-8. Com relação aos casos agudos, são descritas alterações cardíacas semelhantes as encontradas em áreas endêmicas, inclusive com casos fatais secundários a miocardite9. Em estudo recente, Pinto e cols.10 descreveram 233 casos de DCA procedentes dos estados do Pará, Amapá e Maranhão, com cerca de 40% dos pacientes apresentando alguma alteração cardíaca. As alterações mais frequentes foram derrame pericárdico (46,2%), alteração de repolarização ventricular (38,5%), extrassistolia ventricular (5,8%), bloqueio de ramo direito (4,8%), fibrilação atrial (4,8%) e disfunção sistólica ventricular esquerda (3,7%)10.

No presente relato, são descritos dois casos relacionados a um surto de infecção aguda do município de Santarém (PA) e três casos isolados procedentes do estado do Amazonas. Quatro desses pacientes apresentaram história epidemiológica sugestiva de transmissão oral pela ingestão de suco de açaí. Ocorreram, em todos os pacientes, alterações cardíacas como bloqueio de ramo direito, bloqueio divisional anterossuperior, fibrilação atrial, extrassistolia ventricular, disfunção sistólica ventricular esquerda e derrame pericárdico (Tabela 1). A maioria foi revertida e não houve nenhum óbito.

Conclusão

O presente relato descreve alterações cardíacas da DCA em pacientes autóctones da Amazônia, sugerindo morbidade significativa da doença na Amazônia. Isto reforça a necessidade de mais estudos na região e medidas de prevenção de novos casos.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 14/06/09; revisado recebido em 08/10/09; aceito em 27/10/09.

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  • 9. Pinto AYN, Valente SAS, Valente VC. Emerging acute Chagas disease in Amazonian Brazil: case reports with serious cardiac involvement. Braz J Infect Dis. 2004; 8 (6): 454-60.
  • 10. Pinto AYN, Valente SA, Valente VC, Ferreira Júnior AG, Coura JR. Fase aguda da doença de Chagas na Amazônia brasileira: estudo de 233 casos do Pará, Amapá e Maranhão observados entre 1988 e 2005. Rev Soc Bras Med Trop. 2008; 41 (6): 602-14.
  • Correspondência:

    João Marcos Barbosa Ferreira
    Rua Ramos Ferreira, 199, Apartamento 1501 - Aparecida
    69010-120 - Manaus, AM - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      27 Out 2009
    • Revisado
      08 Out 2009
    • Recebido
      14 Jun 2009
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