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Implantação de um sistema de telecardiologia em Minas Gerais: projeto Minas Telecardio

Resumos

FUNDAMENTO: Embora as doenças cardiovasculares sejam a maior causa de morbimortalidade em todo Brasil, o acesso das populações de cidades pequenas à eletrocardiografia e à avaliação cardiológica é limitado. O uso da telecardiologia para facilitar o acesso da população de municípios remotos à eletrocardiografia e à segunda opinião em cardiologia é promissora, entretanto não foi formalmente testada. OBJETIVO: Avaliar a viabilidade de se implantar o sistema público de telecardiologia de baixo custo em pequenas cidades brasileiras. MÉTODOS: Foram selecionadas 82 cidades do Estado de Minas Gerais, com população < 10.500 habitantes, > 70% de cobertura pelo Programa Saúde da Família (PSF), com interesse do gestor e acesso pela internet. Em cada município foi instalado um aparelho de eletrocardiógrafo (ECG) digital, com subsequente treinamento da equipe. A implantação foi coordenada pelo HC/UFMG, em conjunto com outros quatro hospitais universitários mineiros (UFU, UFTM, UFJF e UNIMONTES). Os ECGs foram realizados nos municípios e enviados pela internet para análise imediata em plantão de telecardiologia. Realizaram-se discussões de casos médicos on-line e off-line e cursos de atualização via web. RESULTADOS: No período de implantação, foram treinados 253 profissionais de saúde. De julho de 2006 a novembro de 2008, o projeto atendeu 42.664 pacientes, realizando 62.865 ECGs. Foram efetuados 2.148 atendimentos de urgência e 420 teleconsultorias. A avaliação intermediária apontou boa aceitação da tecnologia implantada e uma diminuição de 70% de encaminhamentos de pacientes para outros centros de referência. CONCLUSÃO: É factível a utilização de recursos habituais de informática para facilitar o acesso de populações de cidades pequenas à eletrocardiografia e avaliação cardiológica especializada.

Eletrocardiografia; informática médica; doenças cardiovasculares; telemedicina


BACKGROUND: Although cardiovascular diseases are the main cause of morbimortality in Brazil, the access of small-town populations to electrocardiography and cardiology assessment is limited. The use of telecardiology to assist the access of distant towns to electrocardiography and a second opinion in cardiology is promising; however, it has not been formally assessed. OBJECTIVE: To assess the feasibility of implementing a low-cost public telecardiology system in small Brazilian towns. METHODS: A total of 82 towns in the state of Minas Gerais, with a population < 10,500 inhabitants, presenting > 70% coverage by the Family Health Program (Programa Saude da Familia - PSF), local government compliance and internet access, were selected. Each town was supplied with digital electrocardiography (ECG) device and a team was trained. The implementation was coordinated by HC/UFMG, together with four university hospitals in the state of Minas Gerais (UFU, UFTM, UFJF and UNIMONTES). The ECG assessments were carried out in the towns and sent through the Internet for prompt analysis by an on-duty telecardiology team. Online and offline discussions on the medical cases were carried out through the Internet, as well as refreshment courses. RESULTS: During the implementation period, a total of 253 health professionals were trained. From July 2006 to November 2008, the project assisted 42,664 patients, with a total of 62,865 ECG assessments being performed. A total of 2,148 emergency cases were treated, as well as 420 teleconsultations. The intermediate evaluation showed good acceptance of the implemented technology and a 70% decrease in patient referrals to other reference centers. CONCLUSION: The use of the customary resources in informatics to assist the access of small-town populations to electrocardiography and specialized cardiology assessment is feasible.

Electrocardiography; medical informatics; cardiovascular diseases; telemedicine


FUNDAMENTO: Aunque las enfermedades cardiovasculares sean la mayor causa de morbimortalidade en todo Brasil, el acceso de las poblaciones de ciudades pequeñas a la electrocardiografía y a la evaluación cardiológica es limitado. El uso de la telecardiología para facilitar el acceso de la población de municipios remotos a la electrocardiografía y a la segunda opinión en cardiología es promisoria, sin embargo no fue formalmente testado. OBJETIVO: Evaluar la viabilidad de implantar el sistema público de telecardiología de bajo costo en pequeñas ciudades brasileñas. MÉTODOS: Fueron seleccionadas 82 ciudades del Estado de Minas Gerais, con población < 10.500 habitantes, > 70% de cobertura por el Programa Salud de la Familia (PSF), con interés del gestor y acceso por internet. En cada municipio fue instalado un aparato de electrocardiógrafo (ECG) digital, con subsecuente entrenamiento del equipo. La implantación fue coordinada por el HC/UFMG, en conjunto con otros cuatro hospitales universitarios mineros (UFU, UFTM, UFJF y UNIMONTES). Los ECGs fueron realizados en los municipios y enviados por internet para análisis inmediato en guardia de telecardiología. Se realizaron discusiones de casos médicos on-line y off-line y cursos de actualización vía web. RESULTADOS: En el período de implantación, fueron entrenados 253 profesionales de la salud. De julio de 2006 a noviembre de 2008, el proyecto atendió 42.664 pacientes, realizando 62.865 ECGs. Fueron efectuadas 2.148 atenciones de urgencia y 420 teleconsultorías. La evaluación intermediaria señaló buena aceptación de la tecnología implantada es una disminución de 70% de encaminamientos de pacientes para otros centros de referencia. CONCLUSIÓN: Es factible la utilización de recursos habituales de informática para facilitar el acceso de poblaciones de ciudades pequeñas a la electrocardiografía y evaluación cardiológica especializada.

Electrocardiografía; informática médica; enfermedades cardiovasculares; telemedicina


ARTIGO ORIGINAL

EPIDEMIOLOGIA

Implantação de um sistema de telecardiologia em Minas Gerais: Projeto Minas Telecardio

Antonio Luiz P. RibeiroI; Maria Beatriz AlkmimI; Clareci Silva CardosoII; Gláucio Galeno R. CarvalhoI; Waleska Teixeira CaiaffaI; Monica Viegas AndradeI; Daniel Ferreira da CunhaIII; Andre Pires AntunesIV; Adélson Geraldo de A. ResendeV; Elmiro Santos ResendeVI

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG

IIUniversidade Federal de São João Del Rei - UFSJ, São João Del Rei, MG

IIIUniversidade do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG

IVUniversidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros

VUniversidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG

VIUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG - Brasil

Correspondência Correspondência: Antônio Luiz Pinho Ribeiro Rua Campanha, 98/101 - Carmo 30310-770 - Belo Horizonte, MG - Brasil E-mail: antonior@cardiol.br, antonior@uai.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Embora as doenças cardiovasculares sejam a maior causa de morbimortalidade em todo Brasil, o acesso das populações de cidades pequenas à eletrocardiografia e à avaliação cardiológica é limitado. O uso da telecardiologia para facilitar o acesso da população de municípios remotos à eletrocardiografia e à segunda opinião em cardiologia é promissora, entretanto não foi formalmente testada.

OBJETIVO: Avaliar a viabilidade de se implantar o sistema público de telecardiologia de baixo custo em pequenas cidades brasileiras.

MÉTODOS: Foram selecionadas 82 cidades do Estado de Minas Gerais, com população < 10.500 habitantes, > 70% de cobertura pelo Programa Saúde da Família (PSF), com interesse do gestor e acesso pela internet. Em cada município foi instalado um aparelho de eletrocardiógrafo (ECG) digital, com subsequente treinamento da equipe. A implantação foi coordenada pelo HC/UFMG, em conjunto com outros quatro hospitais universitários mineiros (UFU, UFTM, UFJF e UNIMONTES). Os ECGs foram realizados nos municípios e enviados pela internet para análise imediata em plantão de telecardiologia. Realizaram-se discussões de casos médicos on-line e off-line e cursos de atualização via web.

RESULTADOS: No período de implantação, foram treinados 253 profissionais de saúde. De julho de 2006 a novembro de 2008, o projeto atendeu 42.664 pacientes, realizando 62.865 ECGs. Foram efetuados 2.148 atendimentos de urgência e 420 teleconsultorias. A avaliação intermediária apontou boa aceitação da tecnologia implantada e uma diminuição de 70% de encaminhamentos de pacientes para outros centros de referência.

CONCLUSÃO: É factível a utilização de recursos habituais de informática para facilitar o acesso de populações de cidades pequenas à eletrocardiografia e avaliação cardiológica especializada.

Palavras-chave: Eletrocardiografia, informática médica, doenças cardiovasculares, telemedicina.

Introdução

As doenças cardiovasculares constituem a principal causa de morte no Brasil, sendo responsáveis por cerca de 1/3 dos óbitos. Embora comumente associadas ao modo de vida das grandes cidades, são também a principal causa de morte em cidades de pequeno e médio portes, onde se observa elevada prevalência dos fatores de risco cardiovasculares. Em Bambuí, cidade do oeste de Minas Gerais, com pouco mais de 20 mil habitantes, 1/4 dos indivíduos são hipertensos1, sendo também frequentes outros fatores de risco, como obesidade, hiperlipidemia, tabagismo e diabetes2.

A maioria dos serviços de cardiologia e cirurgia cardiovascular se concentra em grandes centros urbanos, de modo que é difícil o acesso dos habitantes de cidades pequenas a métodos diagnósticos simples, como o eletrocardiograma. Dessa forma, frequentemente é necessário deslocar-se por longas distâncias.

Minas Gerais é o estado brasileiro com o maior número de municípios no país: 853, sendo que 526 tinham menos que 10.500 habitantes em 2005. A estrutura de saúde em muitos desses municípios reflete importante iniquidade no acesso a métodos básicos de avaliação cardiológica e, provavelmente, a outros métodos propedêuticos e terapêuticos mais avançados. Como exemplo, não foi encontrado registro de realização de eletrocardiograma no sistema público de saúde em 423 cidades mineiras no ano de 2004 (<www.datasus.gov.br>, acessado em 20/11/2005).

A eletrocardiografia é um método de investigação do aparelho cardiovascular, com valor diagnóstico e prognóstico estabelecido, de fácil realização, baixo custo e grande utilidade clínica. O conhecimento da possibilidade de se transmitir o eletrocardiograma é tão antigo quanto a própria técnica3. O ECG transmitido à distância pode ser usado em diferentes situações clínicas, por métodos distintos, como linha telefônica e internet. Embora existam diversas experiências de tele-eletrocardiografia no Brasil e no mundo, são limitados os dados acerca da viabilidade de sua implantação no sistema público de saúde, em apoio à atenção básica.

A hipótese do presente estudo é que a implantação de sistema de telecardiologia de baixo custo em pequenas cidades do interior do Brasil é factível e viável, sendo possível reduzir encaminhamentos desnecessários, melhorando a qualidade da assistência e reduzindo o custo da atenção à saúde.

Métodos

O projeto Minas Telecardio foi planejado em resposta ao edital 08/2005 da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), voltado para o financiamento de estudo de efetividade e avaliação de custo de um Sistema Piloto de Telecardiologia em Minas Gerais. Para tal, foi formada a Rede Mineira de Telecardiologia, denominada Minas Telecardio, por meio do consórcio de hospitais universitários públicos de Minas Gerais: das universidades federais da capital mineira (UFMG, em Belo Horizonte), de Juiz de Fora (UFJF), de Uberlândia (UFU) e do Triângulo Mineiro (UFTM, em Uberaba), além da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). O projeto foi aprovado nos Comitês de Ética de cada uma das instituições participantes.

O estudo geral classifica-se como "quase experimental" (Figura 1)4 e foi dividido em quatro etapas:


1) Antes da implantação, construção de uma linha de base, por meio do diagnóstico de saúde dos 82 municípios incluídos no programa Minas Telecardio, comparado ao diagnóstico de outros 311 municípios de referência, e avaliação de satisfação da equipe nos municípios do programa com o atendimento às doenças cardiovasculares (antes do programa);

2) Implantação e acompanhamento do sistema de telecardiologia, com treinamentos periódicos e avaliação intermediária do programa, incluindo parâmetros de produção e avaliação de satisfação da equipe e do usuário5;

3) Avaliação da efetividade do programa: estudos comparativos pré e pós-intervenção, considerando-se a linha de base, e estudo de seguimento dos pacientes com suspeita de síndrome coronariana aguda (SCA), avaliando-se os preditores de pior prognóstico da evolução clínica, da qualidade de vida e da satisfação com o atendimento;

4) Avaliação de custos do programa - custos relacionados à implantação e ao efeito de custo-redução do programa, sob a perspectiva de redução dos encaminhamentos.

O presente trabalho refere-se à segunda etapa prevista, com avaliação da viabilidade do sistema de telecardiologia, com descrição do processo de implantação e da produção alcançada, assim como da efetividade na redução dos encaminhamentos. A avaliação de custo-efetividade e de outros aspectos do projeto serão objeto de trabalhos específicos subsequentes.

Seleção dos municípios participantes e metodologia de implantação

O projeto Minas Telecardio foi implantado em 82 municípios distribuídos em todo território de Minas Gerais (Figura 2), selecionados a partir dos seguintes critérios, pré-determinados pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES/MG):


  • Taxa de atendimento pelo Programa Saúde da Família (PSF) maior que 70%;

  • População de até 10.500 habitantes;

  • Municípios carentes e com taxas pequenas de morbimortalidade por infarto agudo do miocárdio, como forma de controlar o viés de subnotificação, habitualmente mais expressivo em regiões mais carentes.

Além desses critérios adotados inicialmente, foi necessária, no decorrer do processo de implantação, a inclusão de novos critérios, dentre eles:

  • A existência de interesse do município demonstrado pela participação nas reuniões de sensibilização e testes de conexão;

  • Condições reais do sistema de saúde do município, definindo a necessidade da telecardiologia;

  • Conexão com a internet no município com banda suficiente para implantação do sistema, ou iniciativa local para sua adequação.

Para facilitar as atividades de implantação e manutenção do sistema, os municípios foram divididos pela proximidade geográfica em relação aos polos.

Em cada polo, quando foram identificados os profissionais responsáveis pelo projeto nos municípios participantes, realizaram-se reuniões regionais com os gestores e o corpo clínico dos seus municípios de referência, formados por um responsável geral, um médico, um técnico de pesquisa e um técnico de informática.

A partir da definição dos municípios, foi seguida metodologia para implantação do sistema de telemedicina, compreendendo as seguintes fases: testes de conexão à Internet, visitas técnicas, treinamento das equipes clínicas e técnicas de todos os municípios, entrega dos equipamentos, instalação no local determinado - em conjunto com o gestor municipal - e a equipe clínica.

O fluxograma da implantação do sistema pode ser visto na Figura 36.


Constituição das equipes

Em 2005, constituíram-se as equipes do projeto: a coordenação geral, a coordenação dos pólos universitários, as equipes responsáveis pelo estudo epidemiológico e econômico e as equipe técnica e administrativa. Todas as equipes trabalharam no planejamento e na construção do modelo a ser implantado.

A UFMG, como polo coordenador, constituiu a equipe central de coordenação, a equipe médica, a equipe técnica e a de pesquisadores, e também articulou as atividades do projeto nas instituições envolvidas.

O Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas se responsabilizou pelas atividades de implantação do projeto nos outros quatro polos universitários e nos 82 municípios.

Cada polo universitário constituiu sua equipe incluindo um coordenador, um técnico de referência em pesquisa, um técnico de informática, uma secretária e dois bolsistas de iniciação científica. A equipe clínica foi coordenada pelo Hospital das Clínicas da UFMG, que se responsabilizou pela organização dos plantões de cardiologia e pela definição dos protocolos, além da padronização de condutas.

O estudo epidemiológico teve a coordenação do Observatório de Saúde Urbana de Belo Horizonte, aninhado no Grupo de Estudos em Epidemiologia (OBSUBH-GPE-UFMG). Já o estudo econômico foi coordenado pela equipe da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.

O projeto contou com assessoria do Laboratório de Computação Científica (LCC)/Centro Nacional de Processamento de Alto Desempenho (CENAPAD) da UFMG.

Treinamentos

O treinamento para utilização do sistema, com duração de 8 horas, foi ministrado a três profissionais de cada município: um médico, um técnico de informática e um técnico de pesquisa. Esse treinamento foi específico para cada categoria profissional. Concomitantemente a essas atividades, foram realizados treinamentos no polo coordenador, incluindo os médicos plantonistas, os técnicos de informática e de pesquisa dos polos e os estudantes bolsistas de iniciação científica.

Durante a implantação, foram realizados 7 ciclos de treinamento para os profissionais dos 82 municípios, baseado no Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte, entre junho e setembro de 2006. Na fase inicial do projeto, foram treinados 253 profissionais.

A liberação dos equipamentos para o município era efetivada mediante assinatura de Termo de Adesão pelo município e a participação dos profissionais nos treinamentos. O município integrava-se às atividades do projeto com a instalação local dos equipamentos.

Devido à alta rotatividade dos profissionais designados pelo município para exercer as atividades de pesquisa, novos treinamentos eram agendados, de acordo com a necessidade observada pelos técnicos de pesquisa e por solicitação dos próprios municípios, totalizando 120 treinamentos isolados no período de outubro de 2006 a setembro de 2008.

Infraestrutura tecnológica

O projeto contou com uma estrutura de hardware composta por 12 servidores não só para atender o número de municípios (82), mas também para suportar uma expansão sem comprometer o desempenho e segurança das informações. Os servidores considerados essenciais para os atendimentos foram clusterizados, dando confiabilidade e robustez ao serviço de atendimento clínico à distancia.

Cada polo universitário foi equipado por duas estações de trabalho compostas por microcomputadores, webcam e equipamento de videoconferência. Cada município recebeu um microcomputador de configuração avançada, uma webcam, uma impressora e um eletrocardiógrafo digital de 12 derivações.

A estrutura tecnológica implantada nos polos universitários é mostrada na Figura 4.


Os softwares utilizados pelo projeto foram: 1) software de comunicação comercial para interação via chat, voz, imagem e arquivos entre os usuários, possibilitando também a gravação das atividades para segurança de ambas as partes; 2) software de eletrocardiograma digital de 12 derivações, adaptado especificamente para a coleta prospectiva de dados clínicos e epidemiológicos (Sistema WinCardio, da Micromed, Brasília, Brasil), 3) software web para gerenciamento de teleconsultorias, desenvolvido pela equipe do projeto; e 4) sistema web de Gestão de Telessaúde, desenvolvido pela equipe do projeto responsável pelo gerenciamento das atividades clínicas e administrativas do Centro de Telessaúde.

Dois sites foram desenvolvidos: 1) o <www.minastelecardio.hc.ufmg.br>, com informações e notícias sobre o projeto, parceiros e usuários, que inicialmente representava o acesso ao sistema de teleconsultorias; 2) o <www.telessaude.hc.ufmg.br>, aglutinador de todos os serviços ofertados aos municípios, ou seja, envio e recebimento de eletrocardiogramas, teleconsultorias e programa de educação permanente.

Essa estrutura permitia aos municípios o acesso aos serviços de forma rápida e simples, além de obtenção de informações, notícias, agenda e links correlatos.

Fluxo operacional do Projeto Minas Telecardio

O projeto ofereceu atividades clínicas em telecardiologia por meio de plantões realizados exclusivamente por médicos dos hospitais universitários, incluindo docentes e especialistas em cardiologia. Os médicos foram responsáveis pela análise dos eletrocardiogramas enviados e pelas discussões on-line de casos clínicos, justificadas pela complexidade ou urgência do caso, ou ainda pela necessidade do médico solicitante. Foram realizadas também atividades de teleconferência com as equipes de saúde dos municípios envolvidos.

O paciente era atendido no município e seu ECG enviado para avaliação de especialistas do projeto Minas Telecardio. As atividades de telecardiologia foram desenvolvidas por meio da utilização de eletrocardiógrafo digital instalado nos municípios, geralmente nas unidades básicas de saúde. A demanda do exame sempre resultou de pedido médico, já que o programa foi implantado apenas em municípios com ampla cobertura pelo PSF.

O eletrocardiograma realizado foi encaminhado pelo software de comunicação à recepção virtual de plantão, que permaneceu em contato constante com os municípios. Com o aumento crescente da demanda, tornou-se necessária a automação dos processos. O sistema de gestão era responsável pela conferência do ECG recebido, sua distribuição entre os médicos plantonistas por ordem de chegada, priorização dos atendimentos de urgência e disponibilização dos resultados aos municípios em área restrita no site.

Os resultados eram mantidos on-line para consultas a qualquer momento. O plantão virtual em cardiologia funcionou simultaneamente nos diferentes polos universitários, no período de 7 às 19h, de segunda a sexta, e atendeu a todos os municípios participantes, independentemente de sua localização geográfica. O fluxo do atendimento é mostrado na Figura 5.


Havendo necessidade de discussão do caso clínico, o especialista e médico solicitante encontravam-se em uma reunião privada utilizando o software de comunicação. Para maior segurança dos participantes, o acesso dava-se por meio de senha pessoal, sendo devidamente gravado. Todo o processo obedecia a critérios estritamente confidenciais.

Avaliação parcial do funcionamento do projeto

Foi conduzida uma avaliação parcial do projeto por todos os municípios, incluindo os que estavam utilizando o sistema e aqueles municípios com dificuldades operacionais. O protocolo de avaliação incluiu informações sobre a satisfação geral com o funcionamento do sistema, os pontos positivos e os negativos. O protocolo incluiu também informações sobre a repercussão do sistema no município com relação ao encaminhamento dos pacientes ao nível secundário de atenção à saúde e questões relacionadas à facilidade ou dificuldade de operacionalização do sistema.

Aspectos éticos

Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, sob parecer 0507/2006, com consentimento livre e esclarecido para todo participante do estudo, incluindo gestores, equipe de saúde e pacientes. Todos os profissionais envolvidos com manuseio de dados no âmbito desta investigação assinaram um termo de sigilo e confidencialidade, comprometendo-se a resguardar o prontuário eletrônico do paciente.

O Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas, responsável pela implantação do sistema de telecardiologia, encontra-se registrado no Conselho Regional de Medicina, seguindo as normas da resolução CFM n° 1.643/2002.

Resultados

As atividades do plantão em telecardiologia iniciaram-se no dia 20 de junho de 2006, atendendo às primeiras 10 cidades que cumpriram as etapas necessárias à implantação do sistema. Gradativamente, após solucionarem os problemas técnicos locais, as cidades foram aderindo ao programa, de modo que, em março de 2007, todos os municípios estavam aptos a utilizar o sistema.

No gráfico 1, mostra-se o número mensal dos eletrocardiogramas realizados pelo projeto Minas Telecardio. De junho de 2006 a novembro de 2008 (30 meses), foram realizados 62.865 ECGs referentes a 42.664 pacientes. No mês de início das atividades do projeto (junho/2006), realizaram-se apenas 27 ECGs, o que reflete o pequeno número de municípios ativos no sistema. No último ano, o número médio mensal de ECG manteve-se em torno de 2.500. Dos 62.865 ECGs, 83,3% foram classificados como o primeiro realizado pelo sistema; 12,8% referiam-se à segunda avaliação. Mais de duas avaliações foram realizadas em 3,9% dos casos.


Observou-se uma grande variação do número absoluto de eletrocardiogramas por município. O maior número de ECGs foi realizado pelos municípios de Nova Ponte (2.347), Prudente de Morais (2.008), Araporã (1.886) e Claro das Poções (1.806). Entretanto, a taxa de utilização do sistema por mil habitantes demonstra que o município de Araporã apresentou a maior utilização por habitante (366,0), seguido de Moeda (354,0), Confins (298,4) e Pequi (298,4).

Foram realizados 2.148 atendimentos de urgência e 720 teleconsultorias, sendo 420 discussões de casos clínicos durante os plantões e 300 teleconsultorias off-line (Gráfico 2). Além disso, em 2007, foram feitas teleconferências em cardiologia, com frequência quinzenal e temas definidos com as equipes clínicas dos municípios.


Os municípios consideraram o funcionamento do sistema de telecardiologia como muito bom ou excelente (76,5%); os profissionais de saúde apontaram a oportunidade de realizar diagnóstico precoce, a discussão de casos clínicos e a educação continuada como as principais vantagens do projeto. De acordo com a percepção da equipe de saúde de cada município, o projeto Minas Telecardio possibilitou uma redução em torno de 70,0% no encaminhamento de pacientes para avaliação em centros médicos especializados.

Discussão

Com base nos resultados, observou-se que foi factível a implantação do sistema de telemedicina voltado para a cardiologia em 82 municípios remotos de Minas Gerais, possibilitando o apoio diagnóstico para o médico da atenção básica e permitindo a priorização dos encaminhamentos de casos complexos, além de auxiliar na capacitação permanente de profissionais em municípios remotos. Trata-se de projeto pioneiro no Brasil, considerando-se o caráter público das instituições envolvidas atuando em rede no uso de tecnologia de baixo custo, além do entrelaçamento da atividade assistencial com a produção científica. É pioneiro também se considerarmos a intensa produtividade alcançada. Constitui um exemplo de sucesso de aplicação da telemedicina ao Sistema Único de Saúde.

Como consequência, o projeto foi assimilado pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, tornando-se programa permanente no estado de Minas Gerais, com perspectiva de expansão da cobertura nos próximos anos.

A cardiologia e a eletrocardiografia sempre foram campos privilegiados de aplicação da telemedicina. O próprio Einthoven, fundador da eletrocardiografia moderna, descreveu a transmissão do eletrocardiograma por linha telefônica já em 1906, chegando a cunhar o termo telécardiogramme para o registro eletrocardiográfico transmitido à distância7. As aplicações cardiológicas da telemedicina aumentaram substancialmente após o advento da internet e da telefonia celular, que amplificaram em muito as possibilidades de comunicação e de interação entre os profissionais de saúde.

Entretanto, os avanços e a popularidade da telemedicina, em geral ou na atenção cardiológica, não têm sido acompanhados por estudos sistemáticos, adequadamente desenhados e conduzidos pela avaliação de sua eficácia e custo-efetividade. Roine e cols.8 realizaram revisão sistemática sobre estudos de avaliação da telemedicina, publicados entre 1966 e 2000, encontrando apenas 50 artigos que avaliavam objetivamente a efetividade e a custo-efetividade da telemedicina. A maioria dos mais de mil artigos inicialmente selecionados era de projetos pilotos ou com desfechos de curta duração, sendo ainda a maioria de questionável qualidade metodológica8.

Em pesquisa subsequente, os mesmos autores realizaram revisão sistemática dos estudos de telecardiologia publicados entre 1992 e 2003. Encontraram 44 referências, sendo a maioria (59%) considerada de qualidade metodológica ruim ou razoável9. No que tange ao uso da tele-eletrocardiografia no suporte ao médico generalista, apenas um estudo foi considerado de qualidade aceitável9,10, sugerindo benefício da interpretação eletrocardiográfica feita por especialista na decisão clínica do médico generalista.

Mais recentemente, em uma revisão sistemática subsequente sobre telecardiologia, Bonacina e cols.11 confirmaram a carência de estudos avaliando a qualidade da intervenção neste tema.

Nesse contexto, o projeto Minas Telecardio, ao avaliar de forma controlada e com estudo de custo-efetividade a implantação de sistema de telecardiologia no Brasil, adquire particular importância. Embora existam sistemas comerciais de tele-eletrocardiografia no país, desconhecemos estudos brasileiros sistemáticos, publicados em periódicos indexados nas bases de dados Medline, SciElo e Lilacs, sobre a efetividade e o custo-efetividade da telecardiologia.

Considerando-se as dimensões continentais do país, a importância clínico-epidemiológica das doenças cardiovasculares em nosso meio e a missão constitucional do Estado brasileiro de prover atenção à saúde com qualidade, de forma igualitária e universal, o estudo Minas Telecardio reveste-se de particular importância e interesse.

O principal achado do presente relato diz respeito à factibilidade da implantação do sistema de telecardiologia em cidades pequenas, remotas e desprovidas de maiores recursos, utilizando tecnologia simples e disponível comercialmente, com custo relativamente baixo. Os profissionais de saúde dos municípios atendidos se adaptaram rapidamente ao eletrocardiograma digital e às ferramentas do sistema, utilizando-o geralmente com facilidade e eficiência. Interfaces computacionais amigáveis, possibilidade de contato direto com o médico plantonista no polo universitário e organização descentralizada e eficiente6, além da importante redução do número de encaminhamentos de pacientes para avaliação em outros centros médicos, foram certamente alguns dos pontos-chaves para o sucesso obtido pelo projeto.

Em conclusão, é factível implantar um sistema de telecardiologia, dentro da área pública de saúde, em municípios de pequeno porte, distantes dos grandes centros, estabelecendo redes de telecardiologia com transmissão de eletrocardiogramas pela internet e outras atividades de telemedicina, utilizando equipamentos comercialmente disponíveis e de custo razoável. Tal sistema é bem avaliado pela equipe médica e reduz substancialmente os encaminhamentos desnecessários. Embora a viabilidade e a boa aceitação do programa tenham sido estabelecidas no presente estudo, é essencial que se proceda a avaliação criteriosa da custo-efetividade da estratégia proposta.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG, processos n0 EDT 2372/05 e PPM-00328-08), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, processo n0 400934/2005-1) pelo financiamento do projeto Minas Telecardio, à FINEP e Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais e a todos os colaboradores dos polos universitários (UFJF, UFTM, UFU, UFMG, UNIMONTES) e municípios envolvidos nesta investigação.

O projeto Minas Telecardio foi agraciado com o prêmio Saúde 2008, da editora Abril, na categoria Saúde do Coração.

ALPR e WTC são bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi financiado por FAPEMIG, FINEP, CNPq e Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 23/01/09

Revisado recebido em 17/05/09

Aceito em 25/06/09.

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  • Correspondência:
    Antônio Luiz Pinho Ribeiro
    Rua Campanha, 98/101 - Carmo
    30310-770 - Belo Horizonte, MG - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Jul 2010

    Histórico

    • Aceito
      25 Jun 2009
    • Revisado
      17 Maio 2009
    • Recebido
      23 Jan 2009
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