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Caso 4: Mulher de 77 Anos com insuficiência cardíaca, função sistólica normal do ventrículo esquerdo e sinais de cardiopatia restritiva

Insuficiência cardíaca; disfunção ventricular; amiloidose; cardiomiopatia restritiva

CORRELAÇÃO ANATOMO-CLÍNICA

Caso 4 - Mulher de 77 Anos com insuficiência cardíaca, função sistólica normal do ventrículo esquerdo e sinais de cardiopatia restritiva

Mônica Samuel Ávila; André Cogo Dalmaschio; Luiz Alberto Benvenuti

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP; São Paulo -Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca, disfunção ventricular, amiloidose, cardiomiopatia restritiva.

Uma mulher de 77 anos de idade apresentou-se para tratamento clínico com história de dispneia aos esforços há anos e que se intensificara há 6 meses, até aparecer mesmo no repouso, com ortopneia e edema de membros inferiores (Set/2008).

A paciente apresentou dor precordial há cerca de 20 anos e foi submetida à cinecoronariografia e angioplastia. Além disso, sabia ser portadora de hipertensão arterial e hipotireoidismo.

Em abril de 2008, houve piora da dispneia, agora presente aos mínimos esforços e com ortopneia. Além disso, havia queda do estado geral, inapetência, febre e expectoração mucosa.

Os diagnósticos de insuficiência cardíaca descompensada e broncopneumonia foram feitos. A paciente recebeu tratamento com antibióticos e medicação para insuficiência cardíaca com melhora dos sintomas.

Os exames laboratoriais (abr/2008) revelaram 12,8 g/dl de hemoglobina, hematócrito de 38,0%, 4.800 de leucócitos/mm³ (sendo 69,0% de neutrófilos, 18,0% de linfócitos e 13,0% de monócitos), plaquetas de 134.000/mm³, creatinina de 0,8 mg/dl, potássio de 3,2 mEq/l, sódio de 139 mEq/l e dímero D de 1339 ng/ml. O exame de urina revelou proteinúria de 3,35 g/l, leucócitos de 11.000/ml e hemácias de 50.000/ml.

Na consulta médica ambulatorial (maio/2008), a frequência cardíaca foi de 65 bpm e a pressão arterial foi de 150/90 mmHg. Havia aumento da pressão venosa jugular, estertores crepitantes em bases pulmonares. O ritmo cardíaco foi irregular, compatível com fibrilação atrial. Havia sopro sistólico ++/4+ em área mitral. O fígado foi palpado a 2,0 cm da reborda costal direita e havia edema acentuado de membros inferiores.

Avaliação laboratorial (jun/2008) revelou colesterol de 157 mg/dl, HDL-colesterol de 34 mg/dl, LDL-colesterol de 107 mg/dl, triglicérides de 83 mg/dl, TSH de 0,595 mUI/ml, glicose de 92 mg/dl, aspartatoaminotransferase (AST) de 29 UI/l, e alanina-aminotransferase (ALT) de 28 UI/l.

O ecocardiograma (jun/2008) revelou diâmetros de aorta de 28 mm, átrio esquerdo de 43 mm, diastólico de ventrículo esquerdo de 45 mm, sistólico de ventrículo esquerdo de 32 mm, fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 56,0%, espessura de septo e de parede posterior de 11 mm. Havia derrame pericárdico discreto e a pressão sistólica de artéria pulmonar foi estimada em 61 mmHg.

A cinecoronariografia (23/jun/2008) não revelou lesões coronárias obstrutivas. Em julho de 2008, a paciente foi reinternada para investigação de dispneia aos esforços, associada à derrame pleural direito e edema de membros inferiores.

O ECG (26/jul/2008) revelou ritmo sinusal com frequência cardíaca média de 80 bpm, baixa voltagem dos complexos QRS no plano frontal, SÂQRS acima de -60º, para trás (Figura 1).


A cintilografia de perfusão e a ventilação pulmonar (28/jul/2008) não foram sugestiva de tromboembolismo pulmonar. Havia hipoperfusão e hipoventilação concordantes de lobos médio e inferior direitos, achado sugestivo de atelectasia, além de sinais indiretos de derrame pleural do mesmo lado.

A ultrassonografia de abdome (28/jul) revelou hepatomegalia homogênea, dilatação de veia cava inferior, derrame pleural bilateral e derrame pericárdico.

A pesquisa de fatores antinúcleo foi positiva até diluição 1/1280 com padrão nucleolar.

Foi realizado toracocentese diagnóstica de derrame pleural, a qual foi compatível com transudato. A paciente recebeu alta hospitalar para continuar tratamento ambulatorial.

Em consulta médica ambulatorial, em agosto de 2008, queixava-se dispneia aos esforços moderados. Fazia uso de 20 mg de enalapril, de 40 mg de furosemida, de 25 mg de espironolactona, de 100 mg de ácido acetilsalicílico e de 25 mg de levotiroxina.

Os sintomas voltaram a piorar e a paciente foi trazida ao hospital (2/set/2009).

No exame físico, a frequência cardíaca foi de 93 bpm e a pressão arterial estava inaudível; havia roncos respiratórios difusos, as bulhas cardíacas eram arrítmicas e não havia sopro cardíaco. O abdome não apresentava anormalidades e havia edema +++/4+ em membros inferiores.

O eletrocardiograma (set/2008) revelou fibrilação atrial e baixa voltagem dos complexos QRS (Figura 2).


Os exames laboratoriais revelaram leucocitose, plaquetopenia e aumento da creatinina (Tabela 1).

Em novo ecocardiograma (1/set/2008), a paciente apresentou diâmetros de átrio esquerdo de 43 mm, ventrículo esquerdo (diástole/sístole de 40/25 mm e fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 68%), espessura de septo de 15 mm e de parede posterior de 14 mm. Ventrículos direito e esquerdo demonstravam função sistólica normal; havia insuficiência mitral moderada e a pressão de artéria pulmonar foi estimada em 40 mmHg.

A radiografia de tórax revelou cardiomegalia e derrame pleural volumoso à direita.

A tomografia de crânio (2/set/2008) revelou tênue hipoatenuação cortical e subcortical à esquerda compatíveis com isquemia aguda. Não havia fraturas ou sangramentos.

A tomografia de tórax (2/set/2008) revelou moderado derrame pleural bilateral maior à direita, com atelectasia à direita. A imagem radiográfica foi descrita como "com aspecto de vidro fosco" em lobos inferiores, médio e na língula. Havia consolidação em lobo superior direito.

Houve necessidade de intubação orotraqueal para suporte respiratório, administração de noradrenalina endovenosa, antibioticoterapia com ceftriaxona e claritomicina, depois substituídas por imipinem, posteriormente, novamente substituída por vancomicina e tazobactam e reposição volumétrica. Dois dias depois, foram reduzidas as drogas vasoativas, com manutenção de frequência cardíaca em 106 bpm e pressão arterial em 113/70 mmHg. Foi realizada paracentese de pleura direita com retirada de 800 ml de líquido amarelo-citrino.

Houve piora da função renal e foi indicada diálise no 5º dia de internação (Tabela 1). Houve regressão da insuficiência renal.

A ressonância magnética (19/set/2008) do coração revelou aumento biatrial, ventrículos com função sistólica normal, hipertrofia concêntrica de ventrículo esquerdo, regurgitação mitral, derrame pericárdico discreto e pequeno derrame pleural bilateral. Não foi possível a interpretação da sequência de realce tardio, devido à incapacidade de ajuste dos parâmetros de varredura que poderia sugerir doença de depósito. O exame foi de difícil realização pela condição clínica da paciente, que estava sem capacidade de manter pausa respiratória (os múltiplos artefatos de movimentos reduzem a sensibilidade do método).

A pesquisa de paraproteínas na urina (9/set; com resultado em 23/set/2008) revelou imunoglobulina classe lambda de 3,9 mg/dl (normal até 1 mg/dl) e imunoglobulina classe kappa de 5,2 mg/dl (normal até 1,4 mg/dl).

No 18º dia de internação, houve hipotensão arterial e piora da função renal, sendo a paciente submetida à nova diálise. Os exames laboratoriais são apresentados na Tabela 1. O quadro clínico evoluiu posteriormente com hipotensão arterial refratária, choque cardiogênico e falecimento (29/set/2008).

Aspectos clínicos

O caso apresenta paciente de 77 anos, portadora de hipotireoidismo, doença arterial coronariana e hipertensão arterial sistêmica, com quadro de insuficiência cardíaca (IC) com fração de ejeção preservada e proteinúria. Entre os sinais e sintomas, destacam-se: dispneia, edema de membros inferiores, derrame pleural e pericárdico, com piora significativa nos 6 meses que antecederam o óbito.

Entre as hipóteses possíveis para tal piora encontram-se: equivalente isquêmico, o qual foi descartado por cineangiocoronariografia normal; tromboembolismo pulmonar, não confirmado após cintilografia de ventilação-perfusão e a própria evolução da doença de base. Para esse diagnóstico diferencial, buscamos afecções sistêmicas que possuam acometimento cardíaco e renal.

A tríade hipoalbuminemia (2,3 g/dl), edema periférico e proteinúria em níveis nefróticos (3,35 g/l) preenche critérios para síndrome nefrótica. Existem diversas causas de síndrome nefrótica nos adultos, contudo muitas delas se limitam aos rins e não se aplicam ao caso. Uma causa muito importante de síndrome nefrótica com acometimento cardíaco seria o diabetes melito, porém a paciente não apresentou alterações glicêmicas sugestivas para diagnóstico.

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) pode causar derrame pericárdico e pleural, proteinúria e elevação de fator antinúcleo. Suas principais manifestações cardíacas, que geram insuficiência cardíaca, como miocardite e endocardite de Libman-Sachs, não causam IC diastólica, como visto no caso. Pericardite constrictiva, outra manifestação do lúpus, não geraria níveis tão elevados de pressão arterial pulmonar ou espessamento da parede ventricular, além de não haver alterações de pericárdio à ressonância nuclear magnética. Além disso, o início dos sintomas após os 70 anos de idade e a ausência de alterações hematológicas e articulares também falam contra LES1.

Esquistossomose é outra causa de acometimento cardíaco e síndrome nefrótica, com predomínio de manifestações em câmaras cardíacas direitas, hipertensão pulmonar e mesmo cor pulmonale. Não há, contudo, acometimento de ventrículo esquerdo, derrame pericárdico ou insuficiência valvar, como visto na paciente.

O acometimento cardíaco, com sintomas de insuficiência cardíaca e fração de ejeção de ventrículo esquerdo preservada, sugere disfunção diastólica. Tal alteração cardíaca caracteriza-se por modificação do relaxamento ventricular, com enchimento ventricular prejudicado e/ou aumento das pressões de enchimento e maior dependência da fase de contração atrial. A elevação da pressão no átrio esquerdo e, consequentemente, nas veias pulmonares e capilares, assim como a diminuição do volume ejetado, explicam a intolerância aos esforços e mesmo a dispneia em repouso.

Entre as causas principais de disfunção diastólica encontram-se a hipertensão arterial sistêmica (HAS) com hipertrofia de ventrículo esquerdo (HVE), a estenose aórtica com fração de ejeção de ventrículo esquerdo (FEVE) preservada, as cardiomiopatias hipertrófica e restritiva, além da doença arterial coronariana (DAC).

A paciente em questão não possuía estenose aórtica ou critérios para cardiomiopatia hipertrófica à ecocardiografia, além de ter realizado cineangiocoronariografia que não mostrava obstruções arteriais.

No diagnóstico diferencial de HAS com HVE e cardiomiopatia restritiva, destaca-se eletrocardiograma com baixa voltagem no plano frontal, que favorece doença de depósito e consequente restrição ao enchimento ventricular2. Contudo, o derrame pericárdico demonstrado ao ecocardiograma também poderia explicar tal alteração. O exame de ressonância nuclear magnética também favorece a hipótese de doença restritiva.

Entre as doenças que podem causar cardiomiopatia restritiva, citam-se as infiltrativas (amiloidose, sarcoidose), doenças de depósito (hemocromatose e doença de Fabri), doenças endomiocárdicas (endomiocardiofibrose, toxicidade por antraciclina, radiação) e idiopática/familiar. Dentre elas, as infiltrativas e a doença de Fabri causam doença renal. Sarcoidose é uma doença sistêmica que pode estar associada à glomerulonefrite e à doença intersticial renal, além de à hipercalcemia. Em ambas, contudo, é incomum proteinúria em níveis nefróticos.

O quadro clínico associado aos exames complementares descritos sugere cardiopatia restritiva associada à síndrome nefrótica. A hipótese mais provável para tal associação é amiloidose sistêmica.

A amiloidose sistêmica é um grupo de doenças que possui depósito extracelular de proteínas fibrilares insolúveis compostas por subunidades de baixo peso molecular. Clinicamente, costuma ser classificada nas formas: primária (AL), secundária (AA), hereditária e associada à idade avançada (senil). A amiloidose AL é causada pela deposição de proteínas derivadas de fragmentos de cadeia leve, em geral, uma imunoglobulina monoclonal (80,0% dos casos). Pode ocorrer isoladamente ou em associação com mieloma múltiplo (10,0% dos casos). A amiloidose AA pode complicar doenças crônicas que cursem com inflamação recorrente. As fibrilas são compostas por fragmentos de proteína amilóide A, uma proteína de fase aguda. Há ainda a amiloidose hereditária (deposição de fibrilas derivadas da transtirretina), relacionada à diálise e à forma senil (também deposição de transtirretina).

A amiloidose AA possui acometimento cardiovascular em apenas 5,0% dos casos e não há referência de processo inflamatório sistêmico (apesar de sorologias para hepatite não estarem disponíveis)3.

Os dois subtipos de amiloidose mais prováveis para o caso, portanto, seriam a amiloidose AL e a senil. Há diferenças importantes no prognóstico e velocidade de evolução entre esses subtipos: a sobrevida média após acometimento cardiovascular é, respectivamente, de 11 e de 75 meses4. Além disso, o curso insidioso é a regra para amiloidose senil, enquanto na AL há uma rápida evolução dos sintomas e um muito maior acometimento cardiovascular. Na ausência de confirmação de discrasia de plasmócitos, a diferenciação entre elas faz-se por meio de técnicas de imuno-histoquímica5.

O acometimento cardiovascular nos casos de amiloidose ocorre em um terço dos pacientes. Geralmente ocorre falência ventricular direita, com pouco edema pulmonar apesar das pressões de enchimento elevadas. Ocorrem, portanto, hepatomegalia e edema de membros inferiores. Disfunção autonômica pode ocorrer e gerar hipotensão postural e mesmo síncope6.

A baixa voltagem é a alteração eletrocardiográfica mais comum, predominando no plano frontal. Outras alterações incluem fibrilação atrial, distúrbios de condução e áreas eletricamente inativas. Contudo, bloqueios atrioventriculares de alto grau são incomuns2.

O ecocardiograma é um teste não invasivo importante para o diagnóstico de amiloidose. O espessamento da parede do VE com evidência de disfunção diastólica é a alteração mais precoce, podendo progredir para cardiomiopatia restritiva7. Pode ocorrer aumento biatrial e espessamento das valvas.

A ocorrência de volumosos derrames pleurais, presentes neste caso, ocorre em um a dois por cento dos pacientes com amiloidose. A distinção entre o acometimento pleural direto e o derrame secundário à cardiopatia é difícil, vista a baixa sensibilidade da biópsia pleural e a ausência de alterações específicas aos métodos de imagem8.

A isquemia cerebral descrita à tomografia poderia ter como causas fenômenos tromboembólicos, favorecidos pela fibrilação atrial e pela própria amiloidose cardíaca, que favorece o surgimento de trombos intraventriculares9,10.

Hipotireoidismo pode ocorrer devido à infiltração de amilóide na glândula, contudo é mais comum concomitante a bócio, não descrito no caso11.

Positividade do fator antinúcleo (FAN) já foi descrita na literatura, contudo não é alteração comum12. A paciente possuía FAN positivo (1/1280), sem evidência de doenças do tecido conjuntivo.

Finalmente, foi observado aumento de excreção de cadeias leves de imunoglobulinas na urina da paciente, com manutenção da relação kappa/lambda, não havendo descrição de cadeia monoclonal na urina que fecharia o diagnóstico de amiloidose13.

Em resumo, pelo quadro de cardiomiopatia restritiva e síndrome nefrótica, além dos demais achados clínicos, podemos fazer a hipótese se amiloidose sistêmica com comprometimento renal e cardíaco. Entretanto, pelos exames, essa hipótese não foi confirmada, visto que não foi evidenciada uma gamopatia monoclonal, ou alteração da relação das imunoglobulinas kappa e lambda. A confirmação do diagnóstico de amiloidose poderia ocorrer por biópsia, que pode ser realizada no tecido adiposo subcutâneo (sensibilidade de 65 a 80,0%)14, ou no endomiocárdio (até 97,0%)15 com demonstração de depósitos amiloides nos tecidos, classicamente corados por vermelho do Congo.

Dra. Mônica Samuel Ávila e

Dr. André Cogo Dalmaschio

Hipótese diagnóstica

Amiloidose sistêmica com acometimento cardíaco e renal.

Outros diagnósticos: hipotireoidismo, hipertensão arterial sistêmica, isquemia cerebral aguda.

Dra. Mônica Samuel Ávila e

Dr. André Cogo Dalmaschio

Necropsia

Havia cerca de 2.500 ml de líquido amarelo-citrino nas cavidades pleurais e derrame pericárdico de mesmo aspecto, com volume moderado. O coração pesou 510 g, notando-se que as paredes cardíacas estavam espessadas e o miocárdio tinha consistência mais firme que o habitual, além de coloração discretamente amarelada (Figura 3). Os átrios apresentavam-se moderadamente dilatados. O exame histológico do miocárdio revelou acentuada deposição intersticial de material eosinofílico e amorfo, que apresentava nítida polarização esverdeada quando corado pelo vermelho do Congo, caracterizando depósito de substância amilóide (Figura 4).



A pesquisa imuno-histoquímica de imunoglobulinas de cadeia lambda foi fortemente positiva nesses depósitos (Figura 5), ao passo que a pesquisa de cadeia kappa foi negativa. Depósitos de substância amilóide foram também encontrados, porém focalmente, no endocárdio, na parede de vasos da microcirculação de vários órgãos e na língua. Os pulmões pesaram 748 g em conjunto, havendo evidências de congestão passiva crônica e áreas focais de edema e hemorragia alveolar. No lobo inferior do pulmão direito, identificou-se ramo arterial com tromboêmbolo suboclusivo em início de organização e pequeno infarto pulmonar recente (Figura 6). A tireóide estava aumentada de volume, apresentando múltiplas nodulações, fibrose e focos de calcificação.



O exame da medula óssea (esterno e crista ilíaca) não evidenciou número anormal de plasmócitos. O estudo imuno-histoquímico evidenciou fraca marcação celular, devido a provável má preservação antigênica do material, mas foi positivo tanto para cadeias kappa como para cadeias lambda das imunoglobulinas (perfil policlonal). Havia pólipo adenomatoso único no cólon, pedunculado, medindo 1,5 cm. A aterosclerose da aorta era bastante discreta, assim como das artérias coronárias. Não havia lesões no encéfalo. O útero e os ovários não foram encontrados (provável ressecção cirúrgica prévia).

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Diagnósticos anatomopatológicos

Amiloidose primária, com acometimento cardíaco (cardiomiopatia específica por deposição de substância amilóide); Bócio adenomatoso; Pólipo adenomatoso isolado do cólon; Tromboembolismo e infarto pulmonar recente (causa do óbito)16,17.

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Comentários

Caso de mulher de 77 anos de idade que apresentava insuficiência cardíaca progressiva, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo normal e função sistólica ventricular preservada, esta última avaliada por ressonância nuclear magnética realizada cerca de 10 dias antes do óbito.

É interessante ressaltar que a paciente apresentava proteinúria (3,35 g/l) e que a pesquisa de paraproteínas na urina revelou elevação da concentração das cadeias kappa e lambda das imunoglobulinas. A necropsia revelou tratar-se de amiloidose cardíaca, não sendo detectada plasmocitose medular. A amiloidose é classificada nas formas primária, hereditária, senil sistêmica, atrial isolada, reacional ou secundária e relacionada à diálise.

No presente caso, as formas hereditárias (depósito de transtirretina anormal) e relacionada à diálise (depósito de b2-microglobulina) poderiam ser afastadas apenas pela história clínica. A forma atrial isolada (depósito de fator natriurético atrial) não compromete os ventrículos e não está associada ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca, ao passo que a forma reacional (depósito de amilóide A) pode ser afastada pela ausência de doenças inflamatórias crônicas. Restariam a amiloidose primária (depósito de cadeias leve das imunoglobulinas) e a senil sistêmica (depósito de transtirretina normal) como diagnósticos diferenciais.

Apesar da idade avançada da paciente, o que favoreceria a forma senil, a presença de proteinúria significativa apontava para a forma primária da doença4. De forma interessante, no presente caso, pudemos comprovar a relação do depósito amilóide com a cadeia lambda das imunoglobulinas, cuja pesquisa imuno-histoquímica foi fortemente positiva nas áreas de deposição amilóide no miocárdio, comprovando tratar-se da forma primária da amiloidose. Apesar de não detectarmos plasmocitose no exame da medula óssea, não é possível afastar a possibilidade de alguma gamopatia monoclonal de expressão mais discreta ou mesmo de plasmocitoma localizado.

No presente caso, o comprometimento cardíaco da paciente é classificado como cardiomiopatia específica, associada à deposição de substância amilóide16,17. O óbito decorreu de agravamento da insuficiência cardíaca, com tromboembolismo e infarto pulmonar.

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:
    Vera D. Aiello
    InCor
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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