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Análise crítica dos critérios para a avaliação de biossimilares de heparina de baixo peso molecular

PONTO DE VISTA

Análise crítica dos critérios para a avaliação de biossimilares de heparina de baixo peso molecular

Valdair F. Pinto; Miguel Antonio Moretti; Antonio Carlos P. Chagas

Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG - Brasil

Correspondência Correspondência: Valdair F. Pinto Alameda dos Aicás, 229 - 04086-000 Indianópolis - São Paulo, SP - Brasil E-mail: valdairpinto@hotmail.com

Palavras-chave: Produtos biológicos, similar/efeitos de drogas, heparina de baixo peso molecular, diretrizes, avaliação de medicamentos.

Produtos biológicos são produtos farmacêuticos, cujos princípios ativos são obtidos de processos biotecnológicos e diferem dos medicamentos convencionais por ser misturas de moléculas complexas, de caracterização química difícil e, muitas vezes, incompleta. Para essa classe de medicamentos, o conceito clássico de genéricos não se aplica, e o termo biossimilar é utilizado para qualificar os produtos desenvolvidos em semelhança ao original que podem ser considerados clinicamente equivalentes dentro de uma margem estabelecida.

As Heparinas de Baixo Peso Molecular (HBPM) são classificadas como produtos biológicos, cuja complexidade molecular deve-se à origem diversa do material de extração (heparina não-fracionada de origem animal) e aos processos de fracionamento e produção. A utilidade clínica das HBPM está muito bem estabelecida no tratamento e na prevenção de trombose arterial e venosa.

A International Society on Thrombosis and Haemostasis (ISTH) reconhece que a existência de biossimilares de HBPM contribui para a redução do custo de tratamento, mas é também fonte de preocupação, porque diferenças bioquímicas e biológicas podem afetar a eficácia e a segurança desses produtos. Com o objetivo de definir características do produto original que devem ser demonstradas nos biossimilares, a ISTH estabeleceu um consenso para assegurar a qualidade de biossimilares de HBPM1. Recomendando a realização de estudos clínicos, prospectivos, randomizados, duplo-cegos para mostrar a não inferioridade do biossimilar em relação ao produto original.

Diretrizes específicas e mais detalhadas sobre esse assunto foram publicadas pela Agência Regulatória de Medicamentos da União Europeia (EMEA), por meio do Comitê de Medicamentos de Uso Humano (CHMP)2. É importante ressaltar nessas recomendações: a correlação pobre entre os marcadores farmacodinâmicos e a eficácia clínica; e a recomendação de estudos em prevenção nas cirurgias ortopédicas de alto risco de tromboembolismo (artroplastia de joelho e quadril), como modelo clínico de maior sensibilidade para detectar potenciais diferenças de eficácia. A incidência de eventos nessas indicações é mais alta e razoavelmente bem conhecida, o que permite um melhor planejamento do estudo. Estima-se que, em cirurgias ortopédicas de grande porte, o risco de tromboembolismo venoso sem prevenção é da ordem de 40 a 70%3 e que o uso de HBPM reduz esse risco em cerca de 60%4. Assim, pode-se estimar que, em estudos de prevenção nesses casos, a incidência de eventos deve ser da ordem de 15 a 25% e que, nessas condições, estudos de não inferioridade com uma margem de 5 a 10% devem requerer estudos clínicos com 600 a 1.200 pacientes. Se a incidência esperada de eventos reduz para, por exemplo, 5%, como ocorre em intervenções de baixo risco, o tamanho da amostra necessária ao estudo, mantendo as mesmas propriedades estatísticas, será da ordem de 3.700 pacientes.

Outra diretriz sobre esse mesmo tema foi editada pela South Asian Society on Atherosclerosis & Thrombosis (SASAT)5. Essa organização basicamente endossa a posição da EMEA, sendo, no entanto, mais exigente em relação aos estudos clínicos, prescrevendo a necessidade de se incluírem dois estudos duplo-cegos e randomizados - um em tromboembolismo venoso e outro em tromboembolismo arterial.

No Brasil, não existe uma diretriz oficial específica para a avaliação de HBPM, mas, de forma genérica, a ANVISA regulamenta o registro de produtos biológicos por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 315 de 26 de outubro de 20056. Esse documento instrui, com detalhes, o processo burocrático de submissão de um pedido de registro de um produto biológico e indica de forma sumária, não obstante muito clara, os requerimentos pré-clínicos e clínicos. Estabelece a necessidade de um relatório de experimentação terapêutica, contendo dados de toxicidade, atividade mutagênica e oncogênica e estudos clínicos de fases I, II e III. Além disso, especifica que, no caso de produtos biológicos não novos (i.e., biossimilares), o solicitante do registro pode apresentar, alternativamente, estudos clínicos de não inferioridade como demonstração da atividade terapêutica e da segurança. Recentemente, três HBPM biossimilares à enoxaparina receberam aprovação regulatória pela ANVISA. Os dados clínicos que suportaram essa submissão foram tornados públicos, o que permite analisá-los à luz das diretrizes acima apresentadas.

Aparentemente, o primeiro produto7 teve sua aprovação baseada em um único estudo farmacodinâmico, em que 59 pacientes portadores de insuficiência renal crônica, em regime de hemodiálise, foram tratados com o biossimilar e a enoxaparina padrão por 12 sessões de hemodiálise. A avaliação foi feita por meio da dosagem de dois marcadores, TTPa e anti-Xa. O relatório desse estudo não contém os resultados medidos dos marcadores, apenas faz menção de que "foram utilizados testes estatísticos de intercambiabilidade clínica entre as formulações", sem maiores detalhes. O estudo declara equivalência ou não inferioridade sem ter sido planejado para esse tipo de comparação; ademais, usa modelo clínico inadequado com marcadores substitutos que sabidamente não constituem demonstração de eficácia clínica.

O segundo produto8 foi também aprovado com uma documentação clínica baseada em um estudo de farmacodinâmica, tendo como variável primaria o anti-Xa. O estudo avaliou tratamento e profilaxia de tromboembolismo arterial e venoso em 100 pacientes portadores de condições clínicas diversas em unidade de terapia intensiva. Foram incluídos 50 pacientes em regime de profilaxia e 50 pacientes em regime de tratamento. Para cada um deles, os pacientes foram randomizados em dois grupos de 25 pacientes, que receberam biossimilar ou enoxaparina padrão. Os resultados medidos do marcador não mostraram diferenças significativas entre os grupos, e erroneamente se concluiu pela equivalência. Apenas um paciente em cada grupo apresentou trombose venosa profunda, número total de eventos insuficiente para avaliar os tratamentos. Da mesma forma que o caso anterior, as medidas de anti-Xa não deveriam ser utilizadas como alternativa de comprovação de eficácia clínica.

Um terceiro produto9 foi avaliado em um estudo clínico realizado com 200 pacientes submetidos a cirurgias abdominais e pélvicas não especificadas, mas seguramente de baixo risco, pois, ao final do estudo, a incidência de eventos tromboembólicos foi muito baixa, da ordem de 1% (2/200). O estudo foi comparativo, multicêntrico e aberto, em que os pacientes foram alocados por procedimento determinístico, não aleatório (alternância sistemática) em dois grupos de tratamento, enoxaparina padrão e biossimilar. A duração do tratamento foi de sete a dez dias, compatível, portanto, com procedimentos de baixo risco. Os desfechos clínicos foram imprecisamente definidos e a tolerabilidade foi avaliada pela ocorrência de hemorragias maiores ou menores, mas sem uma caracterização clara.

Sinais e sintomas de trombose venosa profunda foram reportados em dois pacientes do grupo enoxaparina padrão (2% em intenção de tratamento) e em nenhum paciente do grupo que recebeu o biossimilar (0%). Eventos adversos classificados como sérios foram relatados em seis pacientes do grupo enoxaparina padrão e em sete pacientes do grupo biossimilar. Sangramentos referidos como menores ocorreram em quatro pacientes do grupo enoxaparina padrão e em três pacientes do grupo biossimilar. Essas diferenças entre os grupos não são significativas.

O estudo foi inconclusivo principalmente por incluir um número insuficiente de pacientes e com uma incidência muito baixa de eventos. Além disso, o estudo foi reportado incorretamente como de não inferioridade - não houve definição de margem de não inferioridade, não houve controle de sensibilidade de ensaio, tampouco foi calculado o tamanho da amostra para essa modalidade de estudo. Conforme se mencionou anteriormente, um estudo de não inferioridade em profilaxia de tromboembolismo venoso, em cirurgia de alto risco, com uma aceitável margem de não inferioridade exigiria um número mínimo de pacientes de três a seis vezes superior ao número recrutado neste estudo. Ademais, houve uma seleção incorreta de pacientes (risco muito baixo de tromboembolismo venoso), alocados entre os grupos de forma determinística, e o tamanho da amostra sendo insuficiente tornou o estudo sem sensibilidade e com baixo poder estatístico. A grande maioria dos critérios de avaliação de biossimilares de HBPM não foi observada.

Os estudos aqui analisados possuem um básico erro de inferência ao assumir a ausência de significância estatística como demonstração de equivalência10. Em um estudo clínico, a não rejeição da hipótese nula não implica sua sustentação como verdadeira. Provar que dois tratamentos são equivalentes é, na realidade, muito mais difícil do que demonstrar diferença entre eles11. A presente análise sugere maior cuidado na aprovação regulatória de produtos biológicos.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

2. European Medicine Agency. EMEA. Committee for Proprietary Medicinal Products for Human Use (CHMP). Guideline on non-clinical and clinical development of similar biological medicinal products containing low-molecular-weight-heparins. March 2009. EMEA/CHMP/BMWP/118264/2007.{Acessed 2009 Nov 20]. Available from

http://www.emea.europa.eu/docs/en_GB/document_library/scientific_guideline

/2009/09/WC500003927.pdf

4. European Medicine Agency. EMEA. Committee for Proprietary Medicinal Products for Human USE (CHMP). Guideline on clinical investigation of medicinal products for prophylaxis of high intra- and post-operative venous thromboembolic risk. November 2007. EMEA/CHMP/EWP/707/98.[Acessed 2008 Oct 12] Available from

http://www.emea.europa.eu/docs/en_GB/document_library/scientific_guideline

/2009/09/WC500003318.pdf

Artigo recebido em 30/07/10; revisado recebido em 19/08/10; aceito em 27/08/10.

  • 1. Harenberg J, Kakkar A, Bergqvist D, Barrowcliffe T, Casu B, Fareld J, et al. (on Behalf of The Subcommittee on Control of Anticoagulation of the SSC of the ISTH). Recommendations on biosimilar low-molecular-weight heparins. J Thromb Haemost. 2009; 7 (7): 1222-5.
  • 3. Hyers TM, Hull RD, Weg JG. Antithrombotic therapy for venous thromboembolic disease. Chest. 1986; 89 (Suppl. 2): 26S-35S.
  • 5. South Asian Society on Atherosclerosis & Thrombosis (SASAT) Proposal for Regulatory Guidelines for Generic Low Molecular Weight Heparins (LMWHs). October 2007 and October 2008 respectively.[Acessed 2009 Feb 15] Available from: http://www.natfonline.org/Nov08SASATpaper.pdf
  • 6. Ministério da Saúde. Anvisa. Resolução RDC 315/05. Regulamento Técnico de Registro. Alterações por Registro e Revalidação de Registro de Produtos Biológicos Terminados. Diário Oficial da União (DOU). Brasília, de 31 de outubro de 2005.
  • 7. Juliato EG. Estudo clínico para avaliação da segurança do uso do fármaco enoxparina sódica produzida pelo Laboratório Blauziegel quando comparada ao Clexane produzida pelo Laboratório Sanofi-Aventis em pacientes com insuficiência renal crônica [pôster]. In: 40ş Congresso Brasileiro de Farmacologia e Terapêutica Experimental. Águas de Lindóia (SP) 16-19 de outubro de 2008.
  • 8. Lage SG, Carvalho R, Kopel L, Bastos JF, Ribeiro MA. Estudo de segurança e eficácia da enoxparina sódica na profilaxia e terapêutica anti-trombótica. Rev Bras Terap Intensiva. 2007; 19 (1): 67-73.
  • 9. Gomes M, Ramacciotti E, Henriques AC, Araujo GR, Szultan LA, Miranda Jr F. Enoxparina Eurofarma versus referencia na prevenção de tromboembolismo venoso após cirurgia abdominal de grande porte. Estudo multicêntrico, prospectivo e randomizado. J Vasc Bras. 2009; 8 (supl. 2): S17-S21.
  • 10. Altman DG, Bland JM. Absence of evidence is not evidence of absence. BMJ. 1995; 311 (7003): 485.
  • 11. Locke GR, Zinsmeister AR. Perils and pitfalls of small negative clinical trials. Am J Gastroenterol. 2006; 101 (10): 2185-6.
  • Correspondência:

    Valdair F. Pinto
    Alameda dos Aicás, 229 - 04086-000
    Indianópolis - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2010
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