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Associação entre ácido úrico e variáveis de risco cardiovascular em uma população não hospitalar

Resumos

FUNDAMENTO: A associação entre ácido úrico (AU) e as variáveis de risco cardiovascular permanece controversa em estudos epidemiológicos. OBJETIVO: Avaliar a associação entre o AU, pressão arterial (PA), índices antropométricos e variáveis metabólicas em população não hospitalar estratificada por quintis de AU. MÉTODOS: Em estudo observacional transversal, foram avaliados 756 indivíduos (369M), com idade de 50,3 ± 16,12 anos, divididos em quintis de AU. Foram obtidos PA, índice de massa corporal (IMC), circunferência abdominal (CA), AU, glicose, insulina, HOMA-IR, colesterol (CT), LDL-c, HDL-c, triglicerídeos (TG), creatinina (C). Foi calculada a taxa de filtração glomerular estimada (TFGE) e considerada hipertensão arterial (HA) quando a PA > 140x90 mmHg, sobrepeso/obesidade (S/O) quando IMC > 25 kg/m² e síndrome metabólica (SM) de acordo com a I Diretriz Brasileira de SM. RESULTADOS: 1) Não houve diferença entre os grupos na distribuição por sexo e faixa etária; 2) Os maiores quintis de AU apresentaram maiores médias de idade (p < 0,01), IMC, CA (p < 0,01), PAS, PAD (p < 0,001), CT, LDL-c, TG (p < 0,01), C e TFGE (p < 0,001) e menor média de HDL-c (p < 0,001); 3) O grupo com maior quintil de AU mostrou maiores prevalências de HA, S/O e SM (p < 0,001); 4) Maiores percentuais dos menores quintis de insulina (p < 0,02) e de HOMA-IR (p < 0,01) foram encontrados nos menores quintis de AU; 5) Em análise de regressão logística, o AU e as variáveis que compõem a SM apresentaram-se associados à ocorrência de SM (p < 0,01). CONCLUSÃO: Maiores quintis de ácido úrico associaram-se a pior perfil de risco cardiovascular e a pior perfil de função renal na amostra populacional não hospitalar estudada.

Doenças cardiovasculares; ácido úrico; hipertensão; fatores de risco; síndrome metabólica


BACKGROUND: The association between uric acid (UA) and cardiovascular risk variables remains a controversial issue in epidemiological studies. OBJECTIVE: To evaluate the association between UA, blood pressure (BP), anthropometric indices and metabolic variables in a non-hospitalized population stratified by UA quintiles. METHODS: A cross-sectional observational study evaluated 756 individuals (369 males), aged 50.3 ± 16.12 years, divided in UA quintiles. BP, body mass index (BMI), abdominal circumference (AC), UA, glucose, insulin, HOMA-IR, total cholesterol (TC), LDL-c, HDL-c, triglycerides (TG) and creatinine (C) levels were obtained. The estimated glomerular filtration rate (eGFR) was calculated and arterial hypertension (AH) was considered when BP > 140x90 mmHg, overweight/obesity (OW/O) was considered when BMI > 25 kg/m² and metabolic syndrome (MS) was established according to the I Brazilian Guideline of MS. RESULTS: 1) There was no difference between the groups regarding the distribution by sex and age range; 2) The highest UA quintiles presented higher mean age (p < 0.01), BMI, AC (p < 0.01), SBP, DBP (p < 0.001), TC, LDL-c, TG (p < 0.01), C and eGFR (p < 0.001) and lower mean HDL-c (p < 0.001); 3) The group with the highest UA quintile showed higher prevalence of AH, OW/O and MS (p < 0.001); 4) Higher percentages of the lowest quintiles of insulin (p < 0.02) and HOMA-IR (p < 0.01) were observed with the lowest quintiles of UA; 5) A logistic regression analysis showed that UA and the variables that compose MS were associated with the occurrence of MS (p < 0.01). CONCLUSION: Higher quintiles of uric acid were associated with a worse cardiovascular risk profile and a worse kidney function profile in the non-hospitalized population sample studied.

Cardiovascular diseases; uric acid; hypertension; risk factors; metabolic syndrome


FUNDAMENTO: La asociación entre ácido úrico (AU) y las variables de riesgo cardiovascular permanece controvertida en estudios epidemiológicos. OBJETIVO: Evaluar la asociación entre el AU, presión arterial (PA), índices antropométricos y variables metabólicas en población no hospitalaria estratificada por quintiles de AU. MÉTODOS: En estudio observacional transversal, se evaluaron a 756 individuos (369 hombres), con promedio de edad de 50,3 ± 16,12 años, divididos en quintiles de AU. Se obtuvieron PA, índice de masa corporal (IMC), circunferencia abdominal (CA), dosis de AU, glucosa, insulina, HOMA-IR, colesterol (CT), LDL-c, HDL-c, triglicéridos (TG), creatinina (C). Se calculó la tasa de filtración glomerular estimada (TFGE) y considerada como hipertensión arterial (HA) cuando la PA > 140 x 90 mmHg, sobrepeso/obesidad (S/O) cuando IMC > 25 kg/m² y síndrome metabólico (SM) de acuerdo con la I Directriz Brasileña de SM. RESULTADOS: 1) no hubo diferencia entre los grupos en la distribución por sexo y grupo de edad; 2) los mayores quintiles de AU presentaron mayores promedios de edad (p < 0,01), IMC, CA (p < 0,01), PAS, PAD (p < 0,001), CT, LDL-c, TG (p < 0,01), C y TFGE (p < 0,001) y menor promedio de HDL-c (p < 0,001); 3) el grupo con mayor quintil de AU reveló mayores prevalencias de HA, S/O y SM (p < 0,001); 4) mayores porcentuales de los menores quintiles de insulina (p < 0,02) y de HOMA-IR (p < 0,01) fueron encontrados en los menores quintiles de AU; 5) en análisis de regresión logística, el AU y las variables que componen la SM se presentaron asociados a la ocurrencia de SM (p < 0,01). CONCLUSIÓN: Mayores quintiles de ácido úrico se asociaron a un peor perfil de riesgo cardiovascular y a un peor perfil de función renal en la muestra poblacional no hospitalaria estudiada.

Enfermedades cardiovasculares; ácido úrico; hipertensión; factores de riesgo; síndrome metabólico


Associação entre ácido úrico e variáveis de risco cardiovascular em uma população não hospitalar

Monica Cristina Campos Barbosa; Andréa Araujo Brandão; Roberto Pozzan; Maria Eliane Campos Magalhães; Érika Maria Gonçalves Campana; Flavia Lopes Fonseca; Oswaldo Luiz Pizzi; Elizabete Viana de Freitas; Ayrton Pires Brandão

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil

Correspondência Correspondência: Andréa Araujo Brandão Rua General Tasso Fragoso, 24/503 - Lagoa 22470-170 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil E-mail: aabrandao@cardiol.br, andreaabrandao@terra.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: A associação entre ácido úrico (AU) e as variáveis de risco cardiovascular permanece controversa em estudos epidemiológicos.

OBJETIVO: Avaliar a associação entre o AU, pressão arterial (PA), índices antropométricos e variáveis metabólicas em população não hospitalar estratificada por quintis de AU.

MÉTODOS: Em estudo observacional transversal, foram avaliados 756 indivíduos (369M), com idade de 50,3 ± 16,12 anos, divididos em quintis de AU. Foram obtidos PA, índice de massa corporal (IMC), circunferência abdominal (CA), AU, glicose, insulina, HOMA-IR, colesterol (CT), LDL-c, HDL-c, triglicerídeos (TG), creatinina (C). Foi calculada a taxa de filtração glomerular estimada (TFGE) e considerada hipertensão arterial (HA) quando a PA > 140x90 mmHg, sobrepeso/obesidade (S/O) quando IMC > 25 kg/m2 e síndrome metabólica (SM) de acordo com a I Diretriz Brasileira de SM.

RESULTADOS: 1) Não houve diferença entre os grupos na distribuição por sexo e faixa etária; 2) Os maiores quintis de AU apresentaram maiores médias de idade (p < 0,01), IMC, CA (p < 0,01), PAS, PAD (p < 0,001), CT, LDL-c, TG (p < 0,01), C e TFGE (p < 0,001) e menor média de HDL-c (p < 0,001); 3) O grupo com maior quintil de AU mostrou maiores prevalências de HA, S/O e SM (p < 0,001); 4) Maiores percentuais dos menores quintis de insulina (p < 0,02) e de HOMA-IR (p < 0,01) foram encontrados nos menores quintis de AU; 5) Em análise de regressão logística, o AU e as variáveis que compõem a SM apresentaram-se associados à ocorrência de SM (p < 0,01).

CONCLUSÃO: Maiores quintis de ácido úrico associaram-se a pior perfil de risco cardiovascular e a pior perfil de função renal na amostra populacional não hospitalar estudada. (Arq Bras Cardiol. 2011; [online].ahead print, PP.0-0)

Palavras-chave: Doenças cardiovasculares/epidemiologia, ácido úrico, hipertensão, fatores de risco, síndrome metabólica.

Introdução

Embora os fatores de risco clássicos já tenham seu papel bem estabelecido no contexto das DCV, diversas condições emergentes, denominadas marcadores de risco, ainda não têm esta associação definitivamente comprovada. Estudos se fazem necessários para compreender o verdadeiro papel que desempenham nesse cenário e se de fato poderão agregar valor na identificação precoce de indivíduos sob risco de desenvolver DCV. Dentre estes estudos, destaca-se o do ácido úrico, que tem se comportado como um fator de risco cardiovascular em vários estudos longitudinais1-5. Entretanto, a presença de variáveis de confusão, como obesidade, consumo de álcool, idade, diabete e uso de diuréticos, dificultaram, até o presente momento, estabelecer de forma inequívoca o papel do ácido úrico como um fator de risco independente para eventos cardiovasculares.

A associação entre hiperuricemia e hipertensão arterial vem sendo observada há mais de um século1, mas permanece obscuro se a hipeuricemia tem um papel causal na hipertensão arterial ou se é meramente um marcador do processo fisiopatológico. Recentes pesquisas no campo experimental estabeleceram possíveis mecanismos pelos quais a hiperuricemia poderia causar hipertensão. Em modelos animais, o ácido úrico causou diminuição da óxido nítrico sintetase, injúria da arteríola aferente, aumento na produção de renina e lesão tubular renal6,7. Mais ainda, em ratos, também foi demonstrada estreita correlação entre hiperuricemia e síndrome metabólica por provável mecanismo envolvendo a inibição da função endotelial8. Sabe-se que a insulina necessita de óxido nítrico para estimular a captação da glicose e a disponibilidade do óxido nítrico está diminuída quando ocorre hiperuricemia9.

Neste contexto, a inserção do AU como variável para a estratificação de risco cardiovascular pode ser interessante, por ser um exame de fácil realização e de baixo custo, podendo ser útil na prática clínica, especialmente em portadores de síndrome metabólica e hipertensão arterial.

O presente estudo tem por objetivo avaliar a associação entre o ácido úrico e as variáveis de risco cardiovascular em uma população não hospitalar, brasileira, com ampla variação de idade.

Métodos

Estudo transversal cuja amostra foi obtida a partir de um banco de dados de uma população não hospitalar do setor de hipertensão arterial do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A amostra foi originada de pacientes submetidos a exames admissionais, pré-operatórios de cirurgias não cardíacas e avaliação clínica para atividade física regular. Foram considerados elegíveis para inclusão nesse estudo, indivíduos de ambos os sexos com mais de 20 anos, que tivessem em seus registros dados demográficos, de história clínica e de exame físico, além de avaliação laboratorial com dosagem de ácido úrico, glicemia, lípides séricos e creatinina.

A amostra foi constituída por 756 indivíduos com mais de 20 anos (média de 50,3 anos), sendo 369 do sexo masculino (48,8%). Os pacientes foram distribuídos por estratos de 20 anos.

Em todos, foram colhidos dados demográficos e realizada uma avaliação clínica para coleta de história médica e realização de exame físico constando de aferição de pressão arterial, peso e altura para cálculo do IMC, medida da circunferência abdominal. Ainda foi colhida amostra sanguínea, em jejum de 12 horas, para determinação dos seguintes exames laboratoriais: glicose, insulina, HOMA IR10, ácido úrico, creatinina. Foi também calculada a taxa de filtração glomerular, estimada pela fórmula de Cockroft-Gault (140-idade x peso/ creatinina x72 para os homens, e, para as mulheres, multiplicado pelo fator de correção de 0,85), colesterol total, HDL-c, triglicerídeos e o LDL-c, através da fórmula de Friedwald.

A dosagem de insulina e o cálculo do HOMA-IR foram realizados em 498 pacientes, nos quais a dosagem de insulina foi realizada e o HOMA-IR foi calculado de acordo com a fórmula: insulina de jejum x glicose plasmática de jejum/ 405. O diagnóstico de Síndrome Metabólica foi considerado segundo os critérios da I Diretriz de Síndrome Metabólica11. O diagnóstico de hipertensão arterial foi considerado conforme a V Diretriz Brasileira de Hipertensão Arterial12.

A amostra foi estratificada por quintis de ácido úrico segundo o sexo, tendo sido constituídos 5 grupos de G1 a G5, em ordem crescente dos quintis de ácido úrico. Para o sexo masculino (M), os valores correspondentes aos quintis de ácido úrico foram < 4, 5, > 4,5 e < 5, 2, > 5,2 e < 5, 9, > 5,9 e < 6, 5, e > 6,5 mg/dl. Para o sexo feminino (F), os valores encontrados foram < 3, 26, > 3,26 e < 3, 9, > 3,9 e < 4,5 e > 4,5 e < 5,24 e > 5,24 mg/dl, respectivamente para o primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto quintis de ácido úrico.

Os dados foram analisados através do programa estatístico "SPSS for Windows", versão 8.0.0, Copyright SPSS Inc. 1989 - 1997.

Foram utilizados os seguintes métodos estatísticos, considerando-se 0,05 ou 5,0% (p = 0,05) o nível de rejeição da hipótese de nulidade:

• Análise de variância (F) - utilizada para a comparação das médias das variáveis que apresentam distribuição normal e que tenham homogeneidade de variâncias pelo teste de Bartley.

• Teste de Tukey - usado como complementação da análise de Variância, para a comparação das médias das variáveis 2 a 2.

• Teste do qui-quadrado (c2) - utilizado para a comparação das distribuições de frequência das variáveis categóricas de amostras independentes.

• Teste de Correlação de Pearson - empregado para analisar a correlação entre variáveis contínuas.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Pedro Ernesto, sob número 2322-CEP/HUPE, em 10 de dezembro de 2008.

Resultados

A distribuição dos indivíduos foi uniforme por gênero e por faixas etárias analisadas (Tabela 1).

As médias de PAS, PAD, colesterol total, triglicerídeos e de creatinina aumentaram significativamente quanto maiores foram os quintis de ácido úrico (Tabela 2). Para o HDL-c e para a taxa de filtração glomerular estimada ocorreu o contrário: as maiores médias destas variáveis estavam presentes nos menores quintis de ácido úrico (Tabela 2).

Na amostra total, foi encontrada uma prevalência de 48,3% de hipertensão arterial, 33,6% de síndrome metabólica, 62,4% de sobrepeso e obesidade, 55,9% de hipercolesterolemia, 14,9% de glicemia de jejum alterada, 4,1% de diabete, 24,9% de hipertrigliceridemia e 33,9% de HDL baixo (Tabela 3).

As prevalências de hipertensão arterial, sobrepeso/obesidade (Tabela 3) e síndrome metabólica (Figura 1) foram significativamente maiores nos maiores quintis de ácido úrico (p < 0,0001).


Em relação à insulina e ao HOMA-IR, houve maior predomínio dos maiores quintis de insulina e HOMA-IR nos quintis superiores de ácido úrico com c2 = 35,761 e p = 0,003 para HOMA-IR e c2 = 31,393 e p = 0,012 para insulina (Figuras 2 e 3).



Discussão

Este estudo trouxe contribuições para o melhor entendimento do comportamento do ácido úrico em relação às variáveis clínicas, metabólicas e de função renal associadas a maior risco cardiovascular, mormente por se tratar de um trabalho com um número significativo de indivíduos de origem não hospitalar, em uma população brasileira, cujos dados são pouco disponíveis até o presente momento. Vários estudos populacionais demonstraram ser o ácido úrico variável independente de risco para fatores de risco cardiovasculares2-5,13-25.

A população estudada no presente estudo é uma amostra de conveniência, sem cálculo de tamanho amostral, e, como tal, pode não refletir as características da população em geral. Por outro lado, o fato de ter tamanho representativo e ser de origem não hospitalar pode ter atenuado o possível viés de seleção.

Em relação à média de idade dos indivíduos dessa série (50,3 anos), não há diferenças significativas em relação a maior parte dos estudos sobre o tema3,18, excetuando-se os trabalhos realizados em crianças e adolescentes, como no estudo de Bogalusa14 ou no ensaio conduzido por Forman e cols.26, cuja média de idade foi de 61 anos.

Com relação à presença de fatores de risco, foi observada uma prevalência aumentada de HAS no presente estudo (48,3%), em contraste com a taxa esperada de 31,0% para a região sudeste brasileira. Uma possível explicação para esse fato pode ser a faixa etária desses indivíduos, uma vez que foram incluídos pacientes idosos (acima de 80 anos) e ainda que 30,0% da população do estudo tinham mais de 60 anos de idade, faixa etária na qual a prevalência de hipertensão arterial é reconhecidamente maior.

A SM foi encontrada em 34,5% desses indivíduos, ultrapassando as prevalências descritas em diversas séries24,27. Cabe lembrar a ausência de dados nacionais a tal respeito para efeito de comparação28. Entretanto, diversos estudos têm apontado prevalências de SM que variaram de 8,0% a 70,7%, dependendo da faixa etária. É possível que as taxas observadas no presente estudo devam-se não só a faixa etária mais elevada desses indivíduos, como também por ser esta uma população com mais de 60,0% de prevalência de obesidade.

Para o diabete, foi encontrada uma prevalência semelhante àquela observada em nosso país, que é de 4,0%2 em grandes séries, como o estudo de Framigham2, onde constatou-se 2,7% de diabete na população estudada.

Do ponto de vista hemodinâmico, nota-se que houve maiores médias de pressão arterial nos maiores quintis de ácido úrico, correspondendo aos resultados também encontrados por Conen e cols.29.

Quanto à prevalência de hipertensão arterial pelos quintis de ácido úrico, foi demonstrado claramente haver uma associação significativa entre tais variáveis. Esse tem sido o resultado encontrado em diversas publicações, conforme podemos verificar desde 1994 com o The Olivetti Heart Study23, onde o ácido úrico esteve associado a fatores de risco cardiovasculares, como a hipertensão arterial, ou, como no estudo conduzido por Perlstein e cols.4, durante 21 anos, em 2.062 indivíduos, onde a hipertensão arterial também se associou a maiores quintis de ácido úrico. De forma semelhante, a série de Mellen e cols.3, em seguimento de 9 anos, com 9.104 indivíduos bi-étnicos e de ambos os sexos, revelou que a hipertensão arterial foi mais prevalente nos pacientes com maiores níveis de ácido úrico.

A explicação biológica para tal fato tem como ponto de apoio as pesquisas realizadas em modelo animal com ratos, onde, após a indução de hiperuricemia, houve desenvolvimento de hipertensão arterial por provável redução do óxido nítrico na mácula densa renal e por estímulo direto do sistema renina-angiotensina, sendo ambos os mecanismos causadores de vasoconstrição e, portanto, de elevação da pressão arterial6,7.

No entanto, na outra ponta dessa argumentação, encontra-se a possibilidade de que o aumento do ácido úrico possa estar presente em condições clínicas sabidamente pró-inflamatórias, como a HAS e a SM, por sua ação antioxidante e, portanto, representar apenas um mecanismo bioquímico de defesa30-32 contra a progressão da aterosclerose. Assim, não seria um fator independente de risco para essas síndromes, mas, antes, apenas parte do cortejo clínico.

Em relação às variáveis metabólicas, as prevalências de colesterol, triglicerídeos e de intolerância à glicose foram significativamente maiores nos maiores quintis de AU. A associação com colesterol e triglicerídeos também foi encontrada na população estudada no Normative Aging Study. Quanto ao HDL-c, este estudo demonstrou associação inversa com os quintis de ácido úrico e o mesmo foi verificado nos 425 pacientes estudados por Zocalli e cols.27.

Na análise da distribuição dos quintis de insulina e HOMA-IR, em relação aos quintis de ácido úrico, este trabalho mostrou de forma significativa uma associação entre maiores quintis de ácido úrico e maiores quintis tanto de insulina como de HOMA-IR, achado consistente com a série conduzida por Forman e cols.26. Para o HOMA-IR, Ishizaka e cols.24 demonstraram maiores prevalências desta variável por quintis de ácido úrico. Quanto à presença de diabete, o presente estudo mostrou que a prevalência desta patologia foi significativamente maior nos grupos com maiores níveis de ácido úrico, resultado consistente com grandes estudos longitudinais, como o estudo de Framingham2 ou a coorte de 9.104 indivíduos do estudo ARIC3. Esses achados sugerem que a hiperuricemia esteja associada à resistência insulínica, condição subjacente à síndrome metabólica.

Em relação à síndrome metabólica, encontrou-se, também, maior prevalência nos grupos com maiores níveis de ácido úrico e, do mesmo modo, a literatura aponta esta associação, como podemos observar no estudo conduzido por Kawadae cols.25, onde 981 trabalhadores japoneses foram avaliados e verificou-se a associação entre síndrome metabólica e hiperuricemia.

O grupo de Ishizaka24 também demonstrou de maneira significativa a associação entre síndrome metabólica e AU, ao estudar, de forma transversal, 8.144 indivíduos de ambos os sexos, estratificados por quartis de ácido úrico. A maior prevalência de síndrome metabólica por níveis crescentes de ácido úrico também foi demonstrada no estudo realizado por Choi e Ford16,17 utilizando dados do NHANES. Em alguns outros trabalhos, como o de Coutinho e cols.33 e Desai e cols.15, nota-se que o ácido úrico esteve associado a componentes que constituem a síndrome metabólica, sendo esta associação tanto maior quanto maior o número de componentes presentes desta síndrome.

Recentemente, em estudo realizado no Brasil por Franco e cols.34, em pacientes hipertensos de Cuiabá, observou-se maior prevalência de SM em pacientes portadores de hiperuricemia34.

Como limitação do presente estudo, destaca-se que esta não é uma amostra de base populacional. Entretanto, o número de indivíduos estudados é bastante expressivo e corresponde a um cenário real de avaliação de fatores de risco cardiovascular em uma população não hospitalar. Dados como o uso de medicamentos, etilismo e presença de menopausa não estavam disponíveis e são fatores que podem interferir, ao menos parcialmente, nos resultados encontrados. Além disso, trata-se de estudo transversal, permitindo tão somente a análise de associação de variáveis, sem inferências temporais.

Conclusões e Perspectivas

O presente estudo indica a possibilidade de que o ácido úrico esteja associado às variáveis de risco cardiovascular e à síndrome metabólica, podendo ser útil na avaliação do risco cardiovascular individual.

A existência de uma base racional fisiopatológica para explicar a relação do ácido úrico com os fatores de risco cardiovascular, aliada à facilidade de mensuração do ácido úrico e da existência de terapia apropriada para tratá-lo, reforçam a necessidade de novas pesquisas para compreender melhor a sua participação no cenário das doenças cardiovasculares.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Monica Cristina Campos Barbosa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Artigo recebido em 09/03/10; revisado recebido em 24/06/10; aceito em 16/07/10.

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  • Correspondência:

    Andréa Araujo Brandão
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Revisado
      24 Jun 2010
    • Recebido
      09 Mar 2010
    • Aceito
      16 Jul 2010
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