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Preservação do aparato da valva mitral e trombose precoce de bioprótese: uma palavra de prudência

PONTO DE VISTA

Preservação do aparato da valva mitral e trombose precoce de bioprótese. Uma palavra de prudência

Paulo Roberto B. Evora; Solange Basseto; Lafaiete Alves Junior; Alfredo J. Rodrigues

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Paulo Roberto Barbosa Évora Rua Rui Barbosa 367/15 Centro - 14015-120 Ribeirão Preto, SP - Brasil E-mail: prbevora@cardiol.br, prbevora@fmrp.usp.br

Palavras-chave: Valva mitral/cirurgia; trombose; bioprótese.

Uma vantagem da substituição da válvula mitral bioprotética em pacientes com ritmo sinusal é evitar a necessidade de anticoagulação de longo prazo. Comumente, a trombose de válvulas prostéticas afeta próteses mecânicas. Tem havido vários relatos de casos de trombose de válvula mitral bioprotética que levou à explantação precoce da válvula. Pelo menos em teoria, a técnica de retenção do aparato da válvula mitral durante a substituição mitral pode levar a um aumento da incidência dessa complicação pouco usual1.

Entretanto, há poucos relatos de casos envolvendo a preservação do aparato da valva mitral e "desproporção" de prótese como fator de predisposição para trombose de válvula bioprotética. Além disso, é mandatório enfatizar que não há evidência na literatura reportando preservação de aparato subvalvar e trombose de bioprótese mitral se a técnica adequada for empregada, sem considerar a associação com a "desproporção" de prótese.

Em um número aleatório de procedimentos cirúrgicos para correção de doença cardíaca valvar, selecionou-se um total de 384 pacientes, dos quais 169 (43%) foram submetidos a procedimento envolvendo a valva mitral (cirurgias de reparo; próteses mecânicas e biológicas). Dentre esses pacientes, não fomos capazes de identificar, retrospectivamente, casos de trombose de bioprótese. A anticoagulação não foi recomendada durante os primeiros meses após a substituição da valva, mesmo em pacientes sem fatores de risco para tromboembolismo. Entretanto, não observamos eventos tromboembólicos em tais pacientes, apesar de não termos adotado esse procedimento nos últimos quinze anos, quando nosso banco de dados de seguimento foi aprimorado, com a ajuda da informática. Dentre os pacientes com doença da valva mitral, 2 (1,18%) apresentaram trombose da bioprótese de pericárdio bovino. Nesses dois casos, uma possível desproporção prótese - paciente e preservação de todo o aparato da valva mitral foram identificados. As pacientes eram do sexo feminino, com 34 e 44 anos, não apresentaram efeitos adversos durante a cirurgia e apresentaram os seguintes gradientes prostéticos pós-operatórios: 12 mmHg (prótese M-25, ASC = 1.672 m2) e 6 mmHg (prótese M-27, ASC = 1.632 m2), respectivamente. Nenhuma das duas pacientes estava recebendo anticoagulação. O caso da paciente mais jovem foi mais dramático, pois ela foi admitida ao PS com histórico que sugeria fibrilação atrial aguda paroxística e sinais neurológicos de embolização 18 dias após a cirurgia. A ecocardiografia transesofágica (ETE) mostrou trombose na aurícula esquerda, parede atrial e face atrial da prótese. Esses dados foram confirmados na reoperação de emergência, quando uma nova prótese mecânica foi implantada com ressecção dos folhetos e fixação anular dos músculos papilares

A "desproporção" prótese - paciente pode ser um preditor independente de mortalidade após a substituição da valva mitral. Diferente de outros fatores de risco independentes, esse problema pode ser evitado ou sua gravidade pode ser reduzida ao utilizar-se uma estratégia prospectiva à época da cirurgia. Para pacientes considerados de risco para "desproporção" grave, todos os esforços devem ser empregados para implantar a prótese com orifício de área maior, a fim de preservar a continuidade entre o ânulo mitral e a parede ventricular esquerda. Ambas as pacientes apresentavam gradientes consistentes com estenose mitral leve a moderada, já ocorrendo no período pós-operatório. Com base em experiência prévia, essa observação foi subestimada ao erroneamente considerar-se que a interferência dos elementos preservados na válvula bioprotética fosse improvável.

Preocupações acerca da possibilidade de interferência da cordoalha mitral sobre os folhetos de próteses mecânicas tem sido relatadas com frequência, mas não quando biopróteses eram utilizadas. Entretanto, a despeito de terem sido relatados separadamente, a preservação de ambos os folhetos da valva mitral pode potencialmente contribuir para uma possível "pseudo-estenose" trombótica e/ou insuficiência precoce da bioprótese1,2.

Finalmente, contra a participação da preservação dos elementos sub-valvares mitrais isolados na predisposição à trombose, há relatos isolados de trombose bioprotética em casos de completa excisão valvar3.

Relatamos a ideia, como "relato de caso", à uma revista altamente interativa e a razão para rejeição foi a ausência de dados, os quais efetivamente poderiam apoiar a hipótese da associação da preservação do aparato da valva mitral com próteses valvulares menores com a ocorrência precoce de trombose de bioprótese mitral.

Um revisor escreveu que estávamos tentando culpar a preservação do aparato sub-valvar como a responsável pela trombose valvar tecidual, também sugerindo que a desproporção tivesse um papel nos dois casos relatados. Em sua opinião, queríamos escrever um artigo para criticar uma técnica bem estabelecida, com bastante evidência científica sólida apoiando-a, como nesse caso, preservação do aparato subvalvar em pacientes na 3ª e 4ª décadas de vida. Essa é uma interpretação parcial das apresentações dos casos. Realmente, a principal ideia era especular sobre o possível "sinergismo" entre o aparato mitral subvalvar e uma possível "desproporção", já que a prótese mitral é frequentemente sub-dimensionada em consequência dessa abordagem cirúrgica. O revisor enfatizou que a partir dos escassos dados apresentados, a razão para a formação do trombo dentro do átrio esquerdo poderia ter sido o estado hemodinâmico daquela paciente em particular: pequena prótese valvar mitral, como declarado por nós, com estenose funcional moderada junto com o início recente de fibrilação atrial em um paciente que pode sofrer um estágio pró-trombótico no início do período pós-operatório, agravado pela ausência de terapia anticoagulante, como geralmente recomendado em todas as diretrizes clínicas. A forte crítica dos revisores foi baseada no fato de que nenhuma terapia antitrombótica foi dada, contra as diretrizes atuais que sugerem um a três meses de anticoagulação. Atualmente, descobriu-se que agentes antiplaquetários são tão efetivos quanto os anticoagulantes logo após a substituição valvular bioprotética, e seriam uma boa opção, levando-se em consideração nosso "problema social" com a anticoagulação.

Um segundo revisor estava absolutamente certo ao considerar que a hipótese de uma relação causa-efeito entre a "desproporção" bioprótese - paciente e as graves complicações de uma trombose valvular não havia sido provada pelos dados apresentados. Apesar de altamente interessante, essa hipótese deveria ser sustentada por maiores detalhes sobre esses pacientes e discutida junto com todas as outras possibilidades de trombose valvular no curso pós-operatório. A apresentação foi baseada nas considerações retrospectivas e, infelizmente, dados extremamente sólidos e inequívocos necessários para sustentar tal argumento estavam faltando, mas mesmo sendo especulativa ou hipotética, a "palavra de prudência" é válida.

A preservação do aparato mitral, rotineiramente preferência do autor, implica na possibilidade de próteses frequentemente sub-dimensionadas. A decisão de preservar o aparato valvar em sua totalidade, em ambos os casos, foi uma decisão baseada inteiramente nas condições anatômicas4. Como auto-crítica, essa foi uma decisão errada em reoperações; a ressecção dos folhetos valvares e fixações do músculo papilar no ânulo da válvula mitral foram possíveis na implantação de próteses mecânicas super-dimensionadas. Esse artigo não pretende sugerir o abandono das técnicas cirúrgicas do aparato valvar ou subvalvar em casos de substituição de valvas. Sempre levando em conta a possibilidade, talvez causada pela experiência negativa com os dois casos relatados, sentimos que essa experiência deveria ser compartilhada, mesmo em caso de hipótese especulativa. Mas os revisores foram sensíveis à ideia e escreveram importantes comentários para cirurgiões cardíacos e cardiologistas, o que motivou a apresentação desse ponto de vista.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 10/08/10; revisado recebido em 18/09/10; aceito em 06/10/10.

  • 1. Korkolis DP, Passik CS, Marshalko SJ, Koullias GJ: Early bioprosthetic mitral valve "pseudostenosis" after complete preservation of the native mitral apparatus. Ann Thorac Surg. 2002,74(5):1689-91
  • 2. Fasol R, Lakew F. Early failure of bioprosthesis by preserved mitral leaflets. Ann Thorac Surg. 2000;70(2):653-4.
  • 3. Thomas B, Carreras F, Borras X, Pons-Lladó G. An unusual case of bioprosthetic mitral valve thrombosis. Ann Thorac Surg. 2001;72(1):259-61.
  • 4. Evora PR, Ribeiro PJ, Brasil JC, Otaviano AG, Reis CL, Bongiovani HL, et al. Experiência com dois tipos de técnicas para o tratamento cirúrgico da insuficiência mitral: I. Prótese com preservação de elementos do sistema valvar; II. Plastia valvar com reconstrução e avanço da cúspide posterior. Rev Bras Cir Cardiovasc. 1988;3(1):36-49.
  • Correspondência:
    Paulo Roberto Barbosa Évora
    Rua Rui Barbosa 367/15
    Centro - 14015-120
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Maio 2011
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