Acessibilidade / Reportar erro

Caso 3/2011: homem fumante, hipertenso e etilista, com insuficiência cardíaca rapidamente progressiva

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 3/2011 - homem fumante, hipertenso e etilista, com insuficiência cardíaca rapidamente progressiva

Fábio Figueirêdo Costa; Fernando Côrtes Remisio Figuinha; Luiz Alberto Benvenuti

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca, fatores de risco, alcoolismo, hipertensão, cardiomiopatia dilatada.

JV, masculino, 42 anos, proprietário de bar, natural de Canto do Buriti (PI); encaminhado para tratamento cirúrgico de insuficiência cardíaca.

Há um ano apareceu dispneia aos esforços moderados, e há alguns meses, surgiram episódios de dispneia paroxística noturna; mais recentemente, surgiram ortopneia e edema de membros inferiores. Negou dor precordial e palpitações.

Era tabagista com consumo de 20 cigarros diários por 20 anos, e etilista. Os pais estavam vivos, sendo o pai hipertenso.

Fazia uso de 0,25 mg de digoxina; 60 mg de furosemida; 25 mg de espironolactona; e 10 mg de enalapril diários.

O exame físico (18/11/2009) revelou peso de 57,1 kg; altura, 1,71 m; índice de massa corpórea, de 19,5 kg/m2; frequência cardíaca, 100 bpm; pressão arterial, 100 x 80 mmHg; aumento de pressão jugular; ausculta pulmonar sem alterações; o exame do coração: bulhas rítmicas normofonéticas, com SS++ área mitral; abdome sem anormalidades; sem edema e pulso periféricos presentes e simétricos.

Os exames laboratoriais revelaram hemoglobina, 14,1 g/dl; hematócrito, 41%; creatinina, 1,04 mg/dl; sódio, 143 mEq/l; e potássio, 4,1 mEq/l. A sorologia para Doença de Chagas foi negativa.

A radiografia de tórax revelou cardiomegalia acentuada.

O ECG inicial revelou ritmo sinusal com frequência cardíaca de 114 bpm; BAV 1º grau (PR = 240 ms); duração QRS 100 ms; sobrecarga de câmaras esquerdas; distúrbio de condução intraventricular do estímulo; área eletricamente inativa anterior e inferior; com supradesnivelamento de ST de V2 a V4 (Fig.1).


O ecocardiograma de sete meses antes (13/4/2009) revelou: átrio esquerdo de 39 mm; septo com 8 mm; parede posterior de 7 mm; o ventrículo esquerdo era dilatado com diâmetros diastólico de 85 mmHg e sistólico, de 77 mm; e fração de ejeção de 19% por hipocinesia difusa acentuada. Não havia alteração valvar.

A ultrassonografia de abdome (3/9/2009) revelou esteatose hepática e colecistopatia claculosa.

A cinecoronariografia (jan. 2010) não revelou obstruções coronarianas.

A digoxina foi diminuída para 0,125 mg; aumentados furosemida para 80 mg, enalapril para 20 mg e foram acrescentados 12,5 mg de carvedilol.

Na evolução, esteve internado por descompensação da insuficiência cardíaca e em consulta ambulatorial (12/5/2010) queixava-se de dispneia aos pequenos esforços.

A pressão arterial era 76 x 60 mmHg; frequência cardíaca 92 bpm; havia hipertensão venosa jugular; a ausculta pulmonar era normal; a ausculta cardíaca revelou bulhas normofonéticas e sopro sistólico ++ em área mitral; o exame do abdome foi normal e havia edema discreto em membros inferiores.

Foi indicado transplante cardíaco.

Procurou atendimento médico em 15/6/2010 por piora do edema de membros inferiores, tosse seca e piora da dispneia acompanhada de hemoptise.

Ao exame, estava consciente, tolerando bem o decúbito, com extremidades frias, a frequência cardíaca era 90 bpm; a pressão arterial, 110 x 70 mmHg; a ausculta pulmonar revelou estertores crepitantes em bases; o exame do coração revelou presença de terceira bulha e sopro sistólico mitral ++/4+. O fígado foi apalpado a 3 cm do rebordo costal e havia edema ++/4+ até metade das pernas.

O paciente foi internado e foram administrados dobutamina e furosemida endovenosas e enoxaparina subcutânea.

Os exames laboratoriais (14/6/2010) revelaram hemoglobina, 17,8 g/dl; hematócrito, 55%; leucócitos, 10.700/mm3 (75% neutrófilos, 16% linfócitos e 9% monócitos); plaquetas 112.000/mm3; ureia, 72 mg/dl; creatinina, 1,33 mg/dl; AST, 52 U/l; ALT, 47 U/l; gamaGT, 366 U/l; FA, 127 U/l; bilirrubinas totais, 2,26 mg/dl; bilirrubina direta, 1,78 mg/dl; sódio, 142 mEq/l; potássio, 4,8 mEq/l; TP (INR), 1,7; TTPA, (rel) 1,19; dímero D, 3.553 ng/ml; lactato, 18 mg/dl; CK-MB, 7,8 ng/ml; e troponina I, 0,24 ng/ml. A gasimetria arterial revelou pH 7,53; pO2, 84,7 mmHg; pCO2, 28,9 mmHg; saturação de O2, 97,4%; bicarbonato, 24,2 mEq/l; e excesso de bases, 3 mEq/l.

O ECG (14/6/2010) era semelhante ao 1º ECG e revelou ritmo sinusal; frequência cardíaca de 118 bpm; BAV 1º grau (PR = 240 ms); duração QRS 100 ms; sobrecarga de câmaras esquerdas; distúrbio de condução intraventricular do estímulo; área eletricamente inativa anterior e inferior, com supradesnivelamento de ST de V2 a V4.

O ecocardiograma revelou comprometimento difuso e acentuado de ambos os ventrículos; insuficiência mitral acentuada e hipertensão arterial pulmonar (tab. 1).

A ultrassonografia venosa de membros inferiores (18/6/2010) revelou sinais de trombose de veias femorais superficiais bilateralmente; não havia sinais de trombose em veias femorais profundas, poplíteas, tibiais e fibulares.

O cateterismo direito (1º/7/2010) revelou pressões de artéria pulmonar (S/D;M) 22/12/15 mmHg; capilar pulmonar, 12 mmHg; e de ventrículo direito (S/diast inicial;/diast final), 22/0/5 mmHg. A arteriografia pulmonar não revelou sinais sugestivos de tromboembolismo pulmonar.

O paciente evoluiu com necessidade de dobutamina, mesmo após administração de levosimendana.

Houve episódios de bradicardia, o ECG revelou bloqueio atrioventricular 2º grau Mobitz 1.

O paciente foi submetido a transplante cardíaco ortotópico pela técnica bicaval (11/8/2010).

O paciente evoluiu no pós-operatório imediato com estabilidade hemodinâmica e ficou intubado algumas horas após chegar à UTI de recuperação cardíaca.

A biopsia endomiocárdica de 20/8/2010 apontou rejeição aguda celular grau 2 R (moderada, grau intermediário).

No 11º dia pós-transplante, apresentou distensão abdominal; houve piora da função renal com creatinina, 2,23 mg/dl; e ureia, 97 mg/dl; sódio, 145 mEq/l; potássio, 1,22; hemoglobina, 8,7%; e hamatócrito, 26%; leucocitose, 24.000/mm3; e plaquetas, 313.000/mm3.

Alguns dias depois foi constatado derrame pleural em hemitórax esquerdo, que foi drenado com saída de 1.250 ml de líquido hemático; contudo, houve aparecimento de derrame pleural à direita, drenados 400 ml.

Não houve melhora da distensão abdominal, havia drenagem de "líquido biliar" pela sonda nasogástrica e aparecimento de diarreia. A coprocultura foi negativa para Clostridium difficile e a colonoscopia foi negativa para colite pseudomembranosa. A sorologia para citomegalovírus também foi negativa.

A partir de um mês após o transplante, houve insuficiência respiratória com necessidade de intubação orotraqueal, sepse, falência múltipla de órgãos, anemia (hemoglobina 8 g/dl e plaquetopenia 18.000/mm3), e o paciente faleceu em assistolia (9/10/2010).

Aspectos clínicos

O paciente jovem descrito apresentou-se com sintomas e sinais sugestivos de síndrome de insuficiência cardíaca (IC). Era procedente de zona endêmica de Doença de Chagas1 e apresentava como fatores de risco cardiovascular o tabagismo de 20 anos/maço e etilismo (não quantificado).

Antes da realização do exame físico e dos exames complementares, fazia-se importante diagnóstico diferencial com doença pulmonar obstrutiva crônica; porém, a presença de estase jugular e achados ecocardiográficos tornam mais provável cardiopatia estrutural como a causa da sintomatologia do quadro acima. A ausência de crepitações pulmonares em portadores de insuficiência cardíaca (IC) crônica não afasta a possibilidade de retenção hídrica, sendo, portanto, um achado do exame físico de baixo valor preditivo positivo. A principal causa para a ausência desse achado costuma ser o emprego da terapêutica diurética2.

Os exames laboratoriais bioquímicos e hematológicos frequentemente solicitados em pacientes em investigação de IC servem tanto para auxiliar no diagnóstico da IC, por exemplo: BNP, como para detectar a presença de doenças ou fatores de risco associados e até mesmo a etiologia, por exemplo: hormônios tireoidianos, sorologia para Doença de Chagas, dosagem de lipides.

O eletrocardiograma revelou área eletricamente inativa anterior, o que pode sugerir etiologia isquêmica para a cardiopatia. Havia distúrbio de condução pelo ramo esquerdo e BDAS associados, que juntos à zona inativa anterior são fortes preditores de disfunção sistólica (DS)2. Em razão da presença de BDAS, seria necessária a realização de vetorcardiograma para melhor caracterização de uma zona inativa inferior.

O ecocardiograma é o exame mais comumente utilizado para a documentação de disfunção ventricular, a qual guarda correlação com o prognóstico em pacientes com IC2. O 1º exame realizado pelo paciente demonstrou dilatação intensa de câmara ventricular esquerda com DS acentuada associada. A presença de hipocinesia difusa, sem comprometimento segmentar da função ventricular, por ser achado inespecífico, não nos permite descartar nenhum tipo de cardiopatia como causa da IC, mesmo aquelas que costumam cursar predominantemente com comprometimento segmentar, como a isquêmica.

A forma dilatada da cardiomiopatia (CMP) corresponde a cerca de 90% das cardiomiopatias3 e é caracterizada por dilatação e prejuízo da contração do ventrículo esquerdo (VE), ou de ambos os ventrículos, definição essa que se encaixa perfeitamente no caso desse paciente. Constitui um grupo amplo e heterogêneo de doenças que podem representar o estágio final comum de diferentes formas de agressão cardíaca3. Pode ser idiopática, familiar/genética, viral e/ou imune, alcoólica/tóxica, ou pode estar associada com doença cardiovascular reconhecida. A histologia é inespecífica. A CMP dilatada costuma evoluir com IC progressiva. Tromboembolismo, arritmias e morte súbita podem ocorrer em qualquer estágio do processo3.

No caso apresentado, poderíamos pensar em cardiopatia alcoólica, uma vez que o paciente trabalhava em um bar e era etilista. O consumo de mais de 90 g/dia de álcool por homens durante período superior a cinco anos pode levar ao desenvolvimento de cardiopatia estrutural4. Doença isquêmica, hipertensão (HAS), miocardites, comprometimento valvar, cardiopatias congênitas e outras cardiomiopatias devem ser afastadas. O tratamento utilizado para o controle da IC não difere do utilizado para os de outras causas2.

A cardiomiopatia de origem isquêmica entra no diagnóstico diferencial do quadro clínico acima, apesar de cineangiocoronariografia inicial com coronárias normais. Paciente era tabagista, e poderia ter apresentado eventos trombóticos ou embólicos prévios que levassem a disfunção ventricular segmentar a princípio, mas que em fase avançada poderia se apresentar como hipocinesia difusa acentuada. Durante a evolução, a descompensação da IC apresentada poderia ser atribuída a evento isquêmico coronariano de fonte embólica, complicação não tão rara relatada em doentes com CMP dilatada avançada3.

A despeito de pressão arterial normal no exame físico inicial, a cardiomiopatia hipertensiva em fase mais avançada também poderia ser lembrada, já com dilatação e disfunção ventricular importante. Causas mais raras, como a doença cardíaca do Beribéri por deficiência de tiamina, poderiam ser cogitadas, pela associação com o etilismo. A apresentação clássica é de IC predominantemente direita e com débito cardíaco elevado, com extremidades quentes, edemas periféricos, taquicardia sinusal, pulsos amplos, B3 e sopro sistólico apical; porém, em estágios avançados, pode evoluir com redução do débito cardíaco, vasoconstricção periférica e piora progressiva da IC, como no caso citado. Há melhora rápida do quadro clínico com a reposição de tiamina3.

A CMP dilatada idiopática, por fim, foi aventada para o caso, já que não se pôde atribuir a alteração estrutural e funcional cardíaca a nenhuma doença associada. Essa não apresenta estatísticas confiáveis3 de sua incidência no Brasil, porém há relatos de que essa forma possa ser responsável por até 37% dos casos de CMP dilatada5. Tipicamente acomete indivíduos entre 18 e 50 anos, podendo ocorrer em crianças e idosos. É mais frequente em homens e negros, e pelo menos 25% dos casos apresentam transmissão genética da doença. Acredita-se que fatores genéticos associados a alterações da resposta imunológica e fatores infecciosos agiriam de forma sinérgica no desenvolvimento das alterações estruturais e consequente aparecimento das manifestações clínicas. Estima-se que entre 10%-20% dos casos de CMP idiopática sejam causados por sequela de infecção viral prévia6. O prognóstico da CMP dilatada idiopática, assim como para outras formas de CMP dilatada, é determinado, principalmente, pelo grau de disfunção ventricular e pelas manifestações clínicas apresentadas (classe funcional NYHA, arritmias, fenômenos tromboembólicos e outros)3. O tratamento da IC, da disfunção ventricular, das arritmias e das outras manifestações assemelha-se ao tratamento da IC por outras cardiomiopatias, já que a indefinição etiológica impossibilita o tratamento específico da doença2.

Na reavaliação ambulatorial, após ajuste terapêutico, o paciente apresentou-se hipotenso, com baixa pressão de pulso (PA de 76 x 60 mmHg), o que impediu o aumento das doses das medicações para IC. Mantinha CF III/IV, apesar de terapêutica otimizada ao máximo de tolerância. O paciente não apresentava indicação de outros tipos de terapêutica para IC avançada, como ressincronização cardíaca, uma vez que apresentava QRS em torno de 100 ms. Outros tratamentos cirúrgicos alternativos ao transplante não foram aventados por possuírem indicação questionável ou ainda em estudo para pacientes com IC refratária ao tratamento habitual otimizado2. O uso de dispositivos de assistência ventricular, a despeito do número cada vez maior de publicações demonstrando seus benefícios7, tanto para terapia de destino quanto para ponte para o transplante, tem sua utilização restrita em nosso meio pelo seu alto custo.

Enquanto aguardava inclusão em fila de transplante cardíaco, o paciente apresentou descompensação da IC (jun./2010). O principal diagnóstico diferencial da causa da descompensação que se fazia necessário, após realização de história clínica, exame físico e exames complementares iniciais, era com tromboembolismo pulmonar (TEP), já que exame de triagem inicial - D-dímero - apresentava valores sugestivos. A despeito de prova de triagem sugestiva do diagnóstico proposto, a ultrassonografia de membros inferiores não revelou trombose venosa profunda e a arteriografia pulmonar realizada não demonstrou sinais sugestivos de TEP, fortalecendo a possibilidade, anteriormente comentada, de piora do quadro por embolização para circulação coronariana e consequente infarto do miocárdio, que pode ser corroborada pela presença de marcadores de necrose aumentados e piora dos parâmetros ecocardiográficos.

A presença de IC persistente CF III/IV e o desenvolvimento de IC refratária com dependência de drogas vasoativas apresentadas pelo doente constituíam duas indicações objetivas para transplante cardíaco8, que acabou sendo realizado durante a internação da descompensação.

A dificuldade do desmame de dobutamina apresentada pelo paciente no pós-operatório pode, inicialmente, ser explicada pela ocorrência da rejeição aguda celular 2R (sem achados de rejeição humoral), mesmo com ecocardiograma dois dias prévios à realização da biópsia sem evidência de alterações significativas. Mesmo com os avanços da terapia imunossupressora, a rejeição ainda é uma das principais causas de mortalidade no primeiro ano após transplante cardíaco, sendo a rejeição aguda celular a mais frequente8. A maioria dos episódios de rejeição celular é assintomática em sua fase inicial ou pode apresentar sintomas inespecíficos. Manifestações de insuficiência cardíaca com sinais de congestão, baixo débito cardíaco e disfunção sistólica no ECO são mais tardios e geralmente indicam rejeição grave com alto potencial de falência do enxerto. No tratamento da rejeição celular, devem-se levar em conta, além dos achados histológicos, fatores de risco para rejeição, dados imunológicos pré-transplante, parâmetros de função sistólica e diastólica no ecocardiograma e efeitos colaterais das terapêuticas mais agressivas8. A biopsia endomiocárdica pós-pulsoterapia e o ajuste de dose de imunossupressor revelaram que o ajuste das doses foi eficiente.

A evolução do paciente após a realização da biopsia endomiocárdica revelou dados que nos fazem pensar em outro tipo de complicação frequente nesses indivíduos que são submetidos a terapias imunossupressoras potentes - infecção8. As complicações infecciosas no pós-transplante podem ser de natureza diversa, tanto no que diz respeito ao agente etiológico quanto em relação ao sítio de infecção. Causas raras de infecção grave em imunocompetentes podem ser causa de óbitos nos pacientes transplantados imunossuprimidos8. O quadro clínico abdominal apresentado nos faz pensar na hipótese de infecção por CMV, com diagnóstico diferencial principal a colite pseudomembranosa.

Em cerca de 30% dos casos de doença do trato gastrointestinal por CMV a antigenemia pode resultar negativa, ao passo que a PCR em geral é positiva8. Em razão da potencial gravidade da doença no transplante coração-pulmão, sugere-se, pelo menos quinzenalmente, a realização da vigilância da infecção com PCR ou antigenemia e tratamento quando da positivação do teste. A droga de escolha para o tratamento é o ganciclovir venoso nos casos de maior gravidade8, como foi feito para o caso apresentado.

Além do quadro abdominal, foi constatado também derrame pleural em hemitórax esquerdo, e posteriormente também à direita. O derrame pleural poderia ser atribuído ao período pós-operatório em que o paciente se encontrava. Apesar disso, em razão do estado de imunossupressão, a hipótese de complicação infecciosa deveria sempre ser considerada e investigada, no caso com realização de toracocentese e análise bioquímica e microbiológica do líquido.

Mesmo com terapia antibiótica de amplo espectro empregada para o caso, o paciente evoluiu com choque séptico refratário e disfunção de múltiplos órgãos, vindo a falecer cerca de dois meses após o transplante.

Dr. Fábio Figueirêdo Costa,

Dr. Fernando Côrtes Remisio Figuinha

Hipóteses diagnósticas

Miocardiopatia dilatada idiopática avançada, complicada por infarto do miocárdio embólico no pré-transplante e falência de múltiplos órgãos por choque séptico refratário de foco abdominal - infecção do trato gastrointestinal por CMV - e/ou foco pulmonar de etiologia bacteriana.

Dr. Fábio Figueirêdo Costa,

Dr. Fernando Côrtes Remisio Figuinha

Exame anatomopatológico

O coração do paciente, retirado por ocasião do transplante, foi encaminhado para análise anatomopatológica, tendo pesado 632 g após fixação. Apresentava forma globosa e volume muito aumentado, estando destituído de ambos os átrios. O epicárdio era liso e brilhante, com manchas lácteas focais. Aos cortes havia hipertrofia excêntrica de ambos os ventrículos, com acentuada dilatação do esquerdo. O miocárdio era castanho-acinzentado e macio, com extensa área de afilamento e substituição fibrosa transmural da parede lateral do ventrículo esquerdo, estendendo-se até o ápice ventricular (Fig. 2). O endocárdio apresentava áreas esbranquiçadas e discretamente espessadas, localizadas no ápice do ventrículo direito e na via de saída do ventrículo esquerdo, onde se notava área de trombose endocárdica em organização (Fig. 2). As valvas cardíacas e coronarianas epicárdicas não apresentavam anormalidades. O exame histológico revelou hipertrofia difusa dos cardiomiócitos e substituição fibrosa transmural da parede lateral do ventrículo esquerdo (Fig. 3). Adicionalmente, confirmou a área de trombose endocárdica em organização no ventrículo esquerdo e áreas de trombose endocárdica organizada em correspondência às áreas de espessamento esbranquiçado do endocárdico. O exame das artérias coronárias revelou lesões ateroscleróticas incipientes, habituais para a idade, sem lesões obstrutivas (Fig. 4). O paciente não foi submetido a necropsia.


Dr. Luiz Alberto Benvenuti



Diagnósticos anatomopatológicos

Cardiomiopatia dilatada; Infarto transmural cicatrizado do ventrículo esquerdo, extenso, localizado na parede lateral; focos de trombose endocárdica ventricular organizada e em organização; Artérias coronárias normais.

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Comentários

Caso de homem de 42 anos de idade, com insuficiência cardíaca congestiva, submetido a transplante cardíaco. O exame anatomopatológico de seu coração, retirado por ocasião do transplante, revelou tratar-se de cardiomiopatia dilatada com presença de extensa área de infarto transmural antigo, cicatrizado, localizado na parede lateral do ventrículo esquerdo. As artérias coronarianas eram normais, sem lesões obstrutivas, corroborando o resultado de exame cinecoronariográfico realizado cinco meses antes do transplante. A ocorrência de infarto agudo do miocárdio na evolução da cardiomiopatia dilatada, com coronárias normais, já foi relatada em publicações prévias, podendo agravar sobremaneira a condição hemodinâmica do paciente, acarretando eventualmente sua morte9. Interessante relato prévio descreveu complicação mecânica do infarto nessas condições, com ruptura do músculo papilar póstero-medial da valva mitral10. A patogênese mais aceita para o infarto na cardiomiopatia dilatada, com coronárias normais, é a embolia coronariana a partir de trombos recentes ou em organização localizados nas câmaras cardíacas esquerdas11,12, frequentes na cardiomiopatia dilatada e presente no ventrículo esquerdo do caso atual. Tais tromboêmbolos podem ser totalmente reabsorvidos em seu processo de organização, não deixando evidências de sua presença no exame das artérias coronarianas, como provavelmente ocorreu no presente caso. Finalmente, a etiologia da cardiomiopatia dilatada no caso relatado é discutível; em razão do passado de alcoolismo do paciente, é possível que a mesma esteja relacionada ao consumo excessivo de álcool.

Dr. Luiz Alberto Benvenuti

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br); Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

  • 1. Dias JPC, Coura JR. Epidemiologia. In: Dias JPC, Coura JR. (editores) Clínica e terapêutica da doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1997.p.33-66.
  • 2. Bocchi EA, Marcondes-Braga FG, Ayub-Ferreira SM, Rohde LE, Oliveira WA, Almeida DR, et al / Sociedade Brasileira de Cardiologia. III Diretriz brasileira de insuficiência cardíaca crônica. Arq Bras Cardiol. 2009;93(1 supl.1):3-70.
  • 3. Matsubara BB, Zanati SG, Okoshi K. Cardiomiopatias dilatadas. In: Nobre F, Serrano Jr CV. (editores). Tratado de cardiologia SOCESP. São Paulo: Manole; 2005.p.819-32.
  • 4. Matsubara LS, Ferreira ALA. Cardiomiopatias tóxicas. In Nobre F, Serrano Jr CV. (Eds). Tratado de cardiologia SOCESP. São Paulo: Manole; 2005.p.845-57.
  • 5. Markus MSP, Freitas HFG, Chizzola PR, Silva GT, Lima AC, Mansur AJ. Massa ventricular esquerda em portadores de insuficiência cardíaca. Arq Bras Cardiol. 2004;83(3):227-31,232-6.
  • 6. Babonian C, Treasure T. Meta-analysis of the association of enteroviroses with human heart disease. Heart. 1997;78(6):539-43.
  • 7. Slaughter MS, Rogers JG, Milano CA, Russel SD, Conte JV, Feldman D, et al. Advanced heart failure treated with continuous-flow left ventricular assist device. N Engl J Med. 2009;361(23):2241-51.
  • 8. Bacal F, Souza-Neto JD, Fiorelli AI, Mejia J, Marcondes-Braga FG, Mangini S, et al. / Sociedade Brasileira de Cardiologia. II Diretriz brasileira de transplante cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2009;94(1supl.1):e16-76.
  • 9. Simões MV, Félix PR, Marin-Neto JA. Acute myocardial infarction complicating the clinical course of dilated cardiomyopathy in childhood. Chest. 1992;101(1):271-2.
  • 10. Aiello VD, Mansur AJ, Favaratto D. Rupture of posteromedial papillary muscle as a mechanism of death in dilated cardiomyopathy. Int J Cardiol. 1996;54(1):73-5.
  • 11. Canali G, Girardi P, Barbieri E. Coronary embolus and acute myocardial infarction in a patient with dilated cardiomyopathy and chronic atrial fibrillation. G Ital Cardiol. 2006;7(5):365-8.
  • 12. Krzyzak P, Szymczyk R, Janion M, Tomaszewski P. Left coronary artery embolism resulting from ineffective anticoagulation in a patient suffering from dilated cardiomyopathy as a possible cause of myocardial infarction - a case report. Kardiol Pol. 2007;65(6):698-701.
  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br