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Caso 4/2011 - agranulocitose e sepse em mulher no puerpério após uso de ceftriaxona

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 4/2011 - agranulocitose e sepse em mulher no puerpério após uso de ceftriaxona

Haliana Muzio Candido; Maria Rita Bortolotto; Tânia Mara Varejão Strabelli; Luiz Alberto Benvenuti

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Agranulocitose, leucopenia, choque séptico, infecções oportunistas.

Mulher de 34 anos de idade foi internada na enfermaria obstétrica na 34ª semana de gestação, com queixa de dispneia progressiva até ocorrer no decúbito há dois dias e edema de membros inferiores.

A história obstétrica da paciente incluía um aborto espontâneo quatro anos antes e um parto há dois anos. Fazia acompanhamento pré-natal em Unidade Básica de Saúde, em uso de suplementação vitamínica. A paciente sabia ser portadora de sopro cardíaco. Há três dias, recebeu ceftriaxona por via intramuscular para tratamento de pielonefrite.

O exame físico revelou paciente corada, hidratada, dispneica, peso de 56 kg, altura de 1,70 m, frequência cardíaca de 116 batimentos por minuto, pressão arterial de 110/70 mm Hg. O exame dos pulmões revelou murmúrio vesicular presente bilateralmente, sem ruídos adventícios. O exame do coração revelou bulhas rítmicas, sopro sistólico ++/6 e ruflar diastólico em área mitral. Havia edema em membros inferiores ++/4.

O exame obstétrico revelou taquicardia fetal (170 bpm) e redução do líquido amniótico (oligoâmnio).

Os exames sorológicos para diagnóstico de infecção por HIV, hepatites e doença de Chagas foram negativos. O hemograma revelou leucocitose de 18.360 células/mm3.

O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal, frequência de 70 batimentos por minuto, eixo elétrico de QRS a +120º, componente final de onda P negativa em V1, entalhada e bífida em II, onda S profunda em V1, V2 e V3, alterações do segmento ST e da onda T em V2,V3 e V4. (Figura 1)


A radiografia de tórax demonstrou área cardíaca aumentada ++/4 e sinais de congestão pulmonar em ambos os pulmões (Figura 2).


O ecocardiograma evidenciou aorta de 26 mm, átrio esquerdo de 56 mm, ventrículo esquerdo de 44 mm (diástole) e 33 mm (sístole), fração de ejeção do ventrículo esquerdo a 63%. A valva mitral estava espessada com fusão comissural. O gradiente transvalvar máximo foi avaliado em 32 mm Hg, e o gradiente médio foi estimado em 19 mm Hg. A área valvar foi estimada em 1,05 cm². Não havia insuficiência mitral. As valvas aórtica e tricúspide mostravam refluxo discreto. A pressão sistólica de artéria pulmonar foi estimada em 93 mm Hg.

O exame ultrassonográfico do aparelho urinário foi normal.

A paciente foi medicada com propranolol 40 mg e furosemida 40 mg, ambos duas vezes ao dia, com melhora dos sintomas. Após 15 dias de tratamento, suspendeu-se a ceftriaxona, e iniciou-se a administração de macrodantina em caráter profilático.

Nessa ocasião, com idade gestacional de 37 semanas e exames obstétricos que confirmavam o oligoâmnio e a restrição de crescimento intrauterino, foi indicado parto por via cesárea.

Neste dia, apresentava tosse com expectoração clara, que piorava ao se deitar, com tiragem intercostal e em fúrcula. Na ausculta pulmonar, havia sibilos inspiratórios difusos que melhoraram com inalação com agonista beta-2.

Depois do parto, recebeu ocitocina (15 u) e óxido nítrico (20 ppm). Foi reintroduzida ceftriaxona 2 g/dia em função de traqueobronquite. Evoluiu sem intercorrências obstétricas. O recém-nascido pesava 2070 g, foi considerado pequeno para a idade gestacional e evoluiu sem complicações.

No quarto dia de pós-parto, a paciente apresentou dispneia intensa, tosse, odinofagia, palidez cutânea e febre. A ausculta pulmonar revelava estertores nos dois terços inferiores de ambos os hemitórax, mais acentuados à esquerda, bem como sibilos.

No dia seguinte, apresentou pressão arterial de 57/29 mm Hg, que não se elevou com a administração de solução salina 0,9%. Foi iniciado o tratamento com noradrenalina e, na sequência, dobutamina. Evoluiu com oligúria, e foi iniciada a ventilação não invasiva (BIPAP).

Apareceram lesões orais compatíveis com monilíase oral, e o hemograma revelou leucopenia (340 células/mm3).

A radiografia de tórax revelou opacidade homogênea em terço superior de hemitórax esquerdo.

Foram suspensas a ceftriaxona e a dipirona, e iniciou-se o tratamento com imipenem, ganciclovir, nistatina oral e fator humano estimulador de formação colônia de granulócitos recombinante.

O exame obstétrico não revelou sangramento, a loquiação foi normal, e a ferida operatória encontrava-se em bom estado.

No dia subsequente (6º dia pós-operatório), evoluiu com piora do estado geral, febre intermitente de até 39ºC, frequência cardíaca de 130 bpm e pressão arterial de 100/70 mm Hg.

Na evolução, apresentou períodos de agitação, desconforto respiratório e queda de saturação de oxigênio. Seguiu-se crise convulsiva, com rebaixamento do nível de consciência. Foram necessárias a intubação orotraqueal e a ventilação mecânica assistida para suporte ventilatório.

A avaliação por tomografia de crânio revelou parênquima cerebral normal, cisternas e sulcos preservados, sem desvio de estruturas da linha média.

A tomografia de tórax revelou áreas de condensação no lobo superior esquerdo, língula e lobo inferior esquerdo com broncograma aéreo. Havia sinais sugestivos de perfusão em mosaico do parênquima pulmonar bilateral e espessamento pleural focal no ápice esquerdo.

O exame ultrassonográfico do abdome revelou vias biliares sem alterações e rins de dimensões preservadas, com discreta hiperecogenicidade bilateral. O útero apresentou dimensões aumentadas, textura finamente heterogênea e pequena quantidade de conteúdo anecoico na cavidade endometrial. O baço e o pâncreas não demonstravam alterações. Havia pequena quantidade de líquido livre na cavidade abdominal, espessamento parietal e distensão de alças de jejuno.

O mielograma revelou consistência óssea inalterada e hemodiluição discreta; a relação granulócitos /eritroblastos foi de 1,6/1,0 (normal, de 2/1 a 4/1).

O exame de série granulocítica revelou hipocelularidade absoluta e relativa, com escalonamento maturativo e parada em maturação em promielócitos. Havia 85% de eosinófílos (normal até 5,5%) e presença de granulócitos com alterações displásicas.

O exame da série vermelha revelou hipercelularidade relativa e escalonamento maturativo preservado. O exame da série linfocitária revelou 35% de linfócitos (normal até 17%) e 2% de plasmócitos, série monocitária e megacariocítica (plaquetogênese) conservados. Havia aumento do número de macrófagos. Não foram observados elementos estranhos à medula óssea.

A pesquisa de DNA de citomegalovírus e parvovírus por reação da polimerase em cadeia foi positiva; a pesquisa de Mycobacterium tuberculosis foi negativa.

A cultura (meios aeróbio e anaeróbio) foram negativas, bem como a cultura para fungos e microbactérias.

O exame do líquor foi normal.

A antibioticoterapia foi ampliada com administração de vancomicina e claritromicina.

No oitavo dia de pós-operatório, apresentou choque com acidose metabólica, insuficiência renal aguda e necessidade de concentrações progressivamente maiores de drogas vasoativas. Foi indicado balão intraórtico e introduzido antifúngico (anfotericina). Contudo a paciente sofreu parada cardiorrespiratória em assistolia refratária às manobras de reanimação e faleceu.

Aspectos clínicos

Considerando-se o potencial de complicações em gestante portadora de doença cardíaca, o ciclo gravídico-puerperal deve ser dividido em três momentos distintos: (1) a gestação, que inclui os três trimestres iniciais; (2) o parto; e (3) o puerpério imediato (primeiras 48h pós-parto) e tardio (até seis semanas)1,2.

O presente caso situa-se no terceiro momento, puerpério imediato, e refere-se à mulher portadora de estenose mitral grave, admitida na unidade de terapia intensiva do InCor em estado de choque. Nessa situação, é obrigatório considerar se o choque é hipovolêmico, obstrutivo, cardiogênico ou séptico.

O choque hipovolêmico, decorrente de hemorragia, é responsável por cerca de 25% das mortes maternas (dessas, 60% ocorrem no puerpério, sendo 45% nas primeiras 24h pós-parto). Entre as causas mais comuns, destacam-se a atonia uterina, presente em, aproximadamente, 80% dos casos, retenção de fragmentos placentários e laceração do canal de parto, complicações que não ocorreram na paciente deste caso3. No puerpério, o choque obstrutivo é uma hipótese que deve ser sempre considerada, porque, durante a gestação, ativam-se os fatores de coagulação a partir do segundo trimestre, culminando, progressivamente, no pós-parto imediato4. Acrescem-se, a esse momento, a estase venosa do plexo uterino e dos membros inferiores e as alterações vasculares no sítio de inserção placentária, fatores que predispõem à trombose. A incidência de tromboembolismo venoso é de 5 a 50 vezes maior em mulheres grávidas, quando comparadas às não grávidas2. Nas últimas décadas, o tromboembolismo pulmonar foi responsável pela incidência de 15 a 20% das mortes maternas, sendo superado apenas pela hemorragia. Grande parte dessas mortes ocorreu por falta de diagnóstico. Sintomas próprios da gravidez e do puerpério, tais como dispneia, dor torácica e hipotensão, contribuem para confundir o diagnóstico clínico do tromboembolismo pulmonar. De qualquer forma, o parto cesáreo, a prematuridade e a valvopatia mitral estiveram presentes neste caso, reforçando, portanto, a hipótese de tromboembolismo pulmonar como causa do óbito materno5.

A embolia por líquido amniótico também deve ser lembrada como causa do choque obstrutivo nesse momento do ciclo gravídico-puerperal6. Com incidência de um para 8.000 a 80.000 partos e fisiopatologia ainda não completamente elucidada, essa obstrução foi relatada pela primeira vez em 1926 por Meyer, chefe do laboratório de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Na maioria das vezes, os exames complementares para o diagnóstico de tromboembolismo pulmonar têm baixa sensibilidade e especificidade5. A gasometria arterial, a dosagem do dímero D, o eletrocardiograma e o ecocardiograma transtorácico apresentam baixa sensibilidade no puerpério. Estima-se que 50% do casos de tromboembolismo pulmonar têm diagnóstico definido pela angiografia. No presente caso, não houve modificação entre os ecocardiogramas realizados na admissão e durante a piora clínica da paciente. Além disso, a tomografia mostrou áreas de condensação no lobo superior esquerdo, língula e lobo inferior esquerdo, identificando broncograma aéreo, altamente sugestivo de broncopneumonia.

O choque cardiogênico, neste caso, precisa ser considerado devido à descompensação materna no puerpério causada pela estenose mitral. Nesse momento do ciclo gravídico-puerperal, ocorre um incremento de 30 a 50% do débito cardíaco, comparado ao pré-parto, à custa das contrações uterinas e da autotransfusão do sangue útero-placentário para o compartimento intravascular, máxima nas primeiras 24h pós-parto. De modo geral, as lesões valvares obstrutivas, como a estenose mitral, apresentam pior evolução clínica quando comparadas às lesões regurgitantes. Através da valva estenótica, o aumento da volemia provoca, bruscamente, elevação do fluxo, do gradiente de pressão e da pressão venocapilar pulmonar.

A hipertensão pulmonar e a área valvar mitral de 1,0 cm², dados obtidos pelo ecocardiograma no presente caso, são parâmetros de mau prognóstico em portadoras de estenose mitral pouco sintomáticas antes da gestação. De fato, a paciente evoluiu para a classe funcional III (New York Heart Association - NYHA) na 34ª semana de gestação, fase de maior incremento do débito cardíaco. Contudo, apresentou melhora clínica ao ser medicada com baixas doses de propranolol e furosemida, mantendo-se estável até o parto. Devido a essa boa resposta ao tratamento clínico, não se cogitou em intervenção, percutânea ou cirúrgica, na valva estenótica7.

O choque séptico devido à infeção puerperal é a terceira causa obstétrica de morte materna. A febre que acontece nas primeiras 24h depois do parto e se mantém por dois dias consecutivos, dentro de dez dias do puerpério, é geralmente causada por endometrite, cujos fatores predisponentes são: rotura prematura de membranas, laceração do canal de parto, trabalho de parto prolongado e infecção vaginal8. Nenhum deles esteve presente neste caso, assim como trauma cirúrgico, hematoma na linha de sutura e corpo estranho (fio de sutura) no pós-operatório da cesariana. A ultrassonografia abdominal excluiu potenciais focos de infecção: retenção dos produtos da concepção, abscesso e hematoma intracavitário. A cultura de urina, as hemoculturas e o exame do líquor foram negativos para aeróbios, anaeróbios, microbactérias e fungos.

A paciente evoluiu com resposta inflamatória sistêmica, definida pela presença de dois ou mais dos seguintes critérios: hipertermia (> 38ºC) ou hipotermia (< 36ºC); taquicardia (> 90 bpm); taquipneia (FR > 20 ipm ou PaCO2 < 32 mm Hg ou sob ventilação mecânica); leucocitose (> 12.000 células/mm3) ou leucopenia (< 4000 células/mm3 ou > 10% de formas jovens, bastonetes). Rapidamente, desenvolveu choque sistêmico7.

No presente caso, a sequência dos eventos clínicos reforçou a hipótese de choque séptico com foco infeccioso pulmonar, descartando-se os choques hemorrágico e cardiogênico (apesar de esse último somar-se ao desfecho final). Chamou a atenção a leucopenia severa, com contagem de leucócitos muito baixa (340 células/mm3).

A agranulocitose foi confirmada pelo mielograma, que revelou contagem de neutrófilos menor que 1000/mm3, e estava associada à febre e à infecção. A agranulocitose pode ser secundária à sepse grave, às síndromes mielodisplásicas, ao hiperesplenismo e, em 70 a 90% dos casos, à exposição a fármacos ou produtos químicos. Há evidências de que mecanismos tóxicos e imunoalérgicos estejam relacionados à sua patogênese.

Os critérios para o diagnóstico de agranulocitose induzida por fármacos incluem: queda brusca dos neutrófilos durante o tratamento ou em sete dias de exposição prévia ao mesmo fármaco; recuperação completa, com mais de 1500/mm3 de neutrófilos, após um mês de suspensão do fármaco; recorrência na exposição9,10.

Entre os agentes químicos relacionados à agranulocitose, destacam-se: os analgésicos, os antiinflamatórios não esteroides, os medicamentos de ação cardiovascular (amiodarona, captopril, digoxina, nifedipina, furosemida, propanolol), os antibióticos, as cefalosporinas e a nitrofurantoína. As condutas, nesse caso, são: hospitalização, suspensão imediata de qualquer agente potencialmente nocivo, prevenção de infecções secundárias, tratamento agressivo da sepse com antibioticoterapia de amplo espectro, coleta de culturas, terapia antifúngica, se a febre for persistente, e administração de fatores de crescimento hematopoético11,12.

(Dra. Haliana Muzio Candido)

Hipótese diagnóstica

A hipótese mais provável para o presente caso foi a agranulocitose causada pelo uso de ceftriaxona, porque sua reintrodução no tratamento da traqueobronquite coincidiu com leucopenia, infecção pulmonar, choques séptico e cardiogênico e falência múltipla de órgãos.

(Dra. Haliana Muzio Candido)

Comentário da obstetrícia

A paciente foi internada na clínica obstétrica na 34ª semana de gestação, com insuficiência cardíaca congestiva, sem etiologia definida, na vigência de tratamento de pielonefrite. Na gestação anterior, já havia apresentado dispneia, com suspeita de afecção cardiológica, mas não foi realizada uma investigação adequada. O diagnóstico de cardiopatia em fase adiantada da gravidez, principalmente em descompensação clínica, está relacionado a pior prognóstico tanto materno quanto perinatal. Após o esclarecimento diagnóstico e a terapêutica adequada, foi obtida melhora nas condições clínicas maternas, mas já havia repercussão sobre o concepto (restrição do crescimento fetal). A piora de classe funcional durante a gravidez está associada à maior frequência de complicações perinatais, como a restrição de crescimento, a prematuridade e o sofrimento fetal. Como as demais provas de avaliação da vitalidade fetal estavam preservadas, foi programada a realização do parto após a 37ª semana, evitando-se, assim, a prematuridade. Entretanto, o parto foi adiantado em alguns dias, quando foi evidenciada a presença de oligo-hidramnia e a cesárea foi indicada por apresentação fetal anômala (pélvica). A indicação da época e da via de parto foram obstétricas. Foi indicada anestesia geral devido à estenose mitral grave associada à hipertensão pulmonar.

O parto foi realizado no InCor, sem intercorrências no intraoperatório. O recém-nascido era pequeno para a idade gestacional, mas teve boa evolução neonatal. A paciente permaneceu na unidade de terapia intensiva no puerpério precoce, até estabilização circulatória, sendo, posteriormente, transferida para a maternidade. Houve melhora da dispneia, mas persistia com tosse (com hipótese diagnóstica de traqueobronquite), motivo pelo qual foi tratada com ceftriaxona. Foi programada alta hospitalar mais tardia, para término da antibioticoterapia e estabilização da cardiopatia. No quarto dia de pós-operatório, voltou à unidade de terapia intensiva, devido à deterioração das condições clínicas (piora da dispneia, taquicardia, hipotensão e choque). A neutropenia foi evidenciada nesse dia.

É importante observar que o puerpério é a etapa em que ocorre a maior parte das mortes relacionadas à cardiopatia materna, não somente pelas profundas alterações hemodinâmicas nesse período, mas também porque as demais condições de morbidade encontradas nessa fase (hemorragias obstétricas, anemia, infecção puerperal e tromboembolismo) podem alterar o delicado balanço cardiocirculatório das pacientes. No presente caso, não houve hemorragia durante ou após o parto, e não foi evidenciado clinicamente qualquer indício de infecção puerperal. A neutropenia e o quadro de sepse evoluíram rapidamente com choque, sem resposta às medidas terapêuticas.

(Dra. Maria Rita Bortolotto)

Comentário da infectologia

Antes do parto, a paciente foi tratada de pielonefrite aguda com ceftriaxona durante 15 dias, sem agente etiológico identificado, demonstrando boa resposta. Atualmente, as cefalosporinas de terceira geração são as drogas de escolha no tratamento empírico dessa infecção, pois as enterobactérias, agentes etiológicos mais frequentes13, têm apresentado resistência crescente a essa classe de antimicrobianos (40-60%).

Na evolução, a paciente teve indicação de parto cesariana, e foi reintroduzida a ceftriaxona. A seguir, evoluiu com infecção pulmonar e leucopenia com neutropenia progressiva. Na discussão das causas de leucopenia, tem-se a reação medicamentosa como uma das hipóteses, sendo a ceftriaxona a droga mais provável por ter sido reintroduzida após uso prolongado e por haver uma relação temporal com o início da neutropenia. A classe das cefalosporinas está entre os antimicrobianos com risco bem estabelecido de evolução para neutropenia, apesar da baixa frequência (< 1%) por mecanismo de hipersensibilidade11.

As infecções graves por bactérias Gram negativas e algumas infecções virais (citomegalovírus, por exemplo) também podem levar à leucopenia. São causas menos prováveis no presente caso, porém, optou-se por cobertura empírica com ganciclovir devido à gravidade, apesar do risco potencial de piora da neutropenia por efeito mielossupressor desse antiviral. A cobertura antimicrobiana também foi ampliada em razão da neutropenia febril.

Na necropsia, foi constatada pneumonia por fungos (Aspergillus sp e haloficomicose), agentes encontrados em hospedeiros imunodeprimidos.

Este caso ilustra a gravidade dos pacientes com neutropenia febril, apesar do fator desencadeante, e o risco de eventos adversos a medicamentos, ressaltando a importância de exames laboratoriais periódicos durante seu uso.

(Dra Tânia Mara Varejão Strabelli)

Necropsia

O coração pesava 436 g. O ventrículo esquerdo era normal, e o direito, hipertrófico e volumoso. Havia estenose mitral de etiologia reumática, com espessamento fibroso das cúspides e fusão das comissuras, associada a espessamento fibroso, fusão e retração das cordas tendíneas (Figura 3). A valva aórtica apresentava espessamento fibroso das semilunares, sem fusão comissural. Não havia calcificação das valvas mitral ou aórtica, e as valvas tricúspide e pulmonar não apresentavam anormalidades.


Os pulmões pesaram 1.570 g em conjunto. Apresentavam congestão passiva crônica, com deposição alveolar de macrófagos, contendo pigmento hemosiderótico. Havia broncopneumonia necrotizante multifocal, com componente inflamatório muito escasso, notando-se extensa área de necrose coagulativa no lobo superior do pulmão esquerdo, acompanhada de trombose vascular (Figura 4). Em meio às áreas de necrose, havia numerosas hifas fúngicas pequenas e delgadas, com morfologia sugestiva de hialohifomicose (Figura 5). Em corte histológico de pulmão, encontrou-se infecção fúngica da parede de um brônquio e do parênquima pulmonar adjacente, sem reação inflamatória, com presença de hifas fúngicas com morfologia sugestiva de Aspergillus (Figura 6). O útero estava aumentado de volume, pesava 704 g e apresentava sutura cirúrgica ao nível do colo, sem anormalidades. A cavidade uterina estava recoberta por material hemorrágico, que, ao exame histológico, mostrou restos de endométrio decidual (útero puerperal). Os rins apresentavam cicatrizes irregulares, comprometendo as camadas cortical e medular, com distorção do sistema pielocalicial. Ao exame histológico, havia fibrose das camadas cortical e medular, atrofia e dilatação tubular e discreto infiltrado inflamatório mononuclear. O exame histológico da medula óssea revelou acentuada congestão, edema, focos de hemorragia e deposição de fibrina, além de acentuada hipocelularidade global (25-30% do espaço medular ocupado por elementos hematopoiéticos), com retardo da maturação e presença de micromegacariócitos (Figura 7). A pesquisa imuno-histoquímica de parvovírus e citomegalovírus na medula óssea foi negativa.





(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Diagnósticos anatomopatológicos

Estenose da valva mitral de etiologia reumática; pielonefrite crônica; hipoplasia da medula óssea, de provável natureza tóxica; aspergilose pulmonar localizada; broncopneumonia necrotizante por fungos, com morfologia sugestiva de hialohifomicose (causa do óbito).

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Comentários

Mulher de 34 anos de idade, portadora de estenose da valva mitral de etiologia reumática, apresentou, poucos dias após cesárea, quadro hematológico caracterizado por agranulocitose, com hipocelularidade e parada de maturação da série granulocítica no mielograma. O exame da medula óssea, realizado na necropsia, confirmou tratar-se de hipoplasia acentuada das séries hematopoiéticas, com hemorragia, edema e deposição de fibrina intersticial. Tais características histológicas sugerem ter ocorrido reação tóxica direta ou hipersensibilidade a alguma droga terapêutica utilizada. Além dos quimioterápicos antineoplásicos, diversas outras drogas podem induzir agranulocitose como efeito colateral, como antibióticos, anti-inflamatórios, anticonvulsivantes etc. Saliente-se que a dipirona, droga amplamente utilizada, inclusive no caso em questão, esteve entre as drogas relacionadas em dez ou mais casos de agranulocitose induzida por drogas não quimioterápicas, dentre 980 casos estudados em relato prévio11. Inclusive, drogas de uso frequente em pacientes com moléstias cardiovasculares podem induzir agranulocitose, como diuréticos, agentes antiarrítmicos e outros12. Assim, além da dipirona, a paciente em questão foi medicada com diversas outras drogas que poderiam estar relacionadas à agranulocitose, como antibióticos e diuréticos. Em decorrência da imunodepressão secundária à agranulocitose, a paciente contraiu infecção fúngica oportunista: foi detectada infecção pulmonar inicial, localizada, por Aspergillus e broncopneumonia necrotizante por hialohifomicose, que constituiu a causa terminal do óbito. O representante mais conhecido dessa última categoria de fungos é o Fusarium sp, cuja infecção constitui a fusariose14. Entretanto, apenas a cultura pode caracterizar definitivamente a espécie de fungo envolvida, o que não foi realizado no caso em questão.

(Dr. Luiz Alberto Benvenuti)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
    InCor
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
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