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Uso do octreotide no tratamento do quilotórax e quiloperitôneo

Resumos

Relato de três casos de quilotórax e um caso de ascite quilosa em crianças em pós-operatório de cirurgia cardíaca, que evoluíram sem resposta ao tratamento clínico habitual, baseado em jejum e nutrição parenteral prolongada. Tratamento com octreotide na dose inicial de 1,0 mcg/kg/h foi escolhido, com aumento progressivo de 1,0 mcg/kg/h/dia até a dose máxima de 4,0 mcg/kg/h. Todos os casos tiveram resposta favorável, com redução progressiva do débito do dreno, até resolução do quadro, sem efeito colateral significativo.

Quilotórax; octreotide; cirurgia torácica; ascite quilosa; criança


Relato de tres casos de quilotórax y un caso de ascitis quilosa en niños en postoperatorio de cirugía cardíaca, que evolucionaron sin respuesta al tratamiento clínico habitual, basado en ayuno y nutrición parenteral prolongada. Fue elegido tratamiento con octreotide en dosis inicial de 1,0 mcg/kg/h , con aumento progresivo de 1,0 mcg/kg/h/día hasta la dosis máxima de 4,0 mcg/kg/h. Todos los casos tuvieron respuesta favorable, con reducción progresiva del débito del drenaje, hasta resolución del cuadro, sin efecto colateral significativo.

Quilotórax; octreotide; cirugía torácica; ascitis quilosa; niño


Report of three cases of chylothorax and one case of chylous ascites in children who had undergone cardiac surgery with no response to routine clinical treatment, based on fasting and long-term parenteral nutrition. Treatment with octreotide at an initial dose of 1.0 mcg/kg/h was chosen, with a gradual increase of 1.0 mcg/kg/hr/day until a maximum dose of 4.0 mcg/kg/h. All cases had a favorable response, with gradual reduction of drainage output until prognosis improvement with no significant side effects.

Chylothorax; octreotide; chilous Ascites; thoracic surgery; child


RELATO DE CASO

Uso do octreotide no tratamento do quilotórax e quiloperitôneo

Cristiane Felix Ximenes Pessotti; Ieda Biscegli Jatene; Paulo Emanuel Uhrovcik Buononato; Patrícia Figueiredo Elias; Anna Carolina Domingues Pinto; Maria Fernanda Jensen Kok

Hospital do Coração - Associação do Sanatório Sírio, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Cristiane Felix Ximenes Pessotti Rua Desembargador Eliseu Guilherme, 147 - Paraíso 04003-905 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: crisximenes08@gmail.com, crisximenes@uol.com.br

RESUMO

Relato de três casos de quilotórax e um caso de ascite quilosa em crianças em pós-operatório de cirurgia cardíaca, que evoluíram sem resposta ao tratamento clínico habitual, baseado em jejum e nutrição parenteral prolongada. Tratamento com octreotide na dose inicial de 1,0 mcg/kg/h foi escolhido, com aumento progressivo de 1,0 mcg/kg/h/dia até a dose máxima de 4,0 mcg/kg/h. Todos os casos tiveram resposta favorável, com redução progressiva do débito do dreno, até resolução do quadro, sem efeito colateral significativo.

Palavras-chave: Quilotórax / terapia, octreotide, cirurgia torácica / complicações, ascite quilosa / terapia, criança.

Introdução

O quilotórax é o acúmulo de líquido linfático rico em quilomícrons na cavidade pleural, por obstrução e dificuldade de escoamento da linfa, como ocorre nas malformações linfáticas, no aumento da pressão ou na laceração do ducto torácico, sendo as causas mais comuns, as neoplasias, o trauma, a infecção e a trombose venosa.

Esse tipo de lesão tem sido descrito principalmente nos procedimentos cirúrgicos realizados no estreito torácico superior esquerdo e em procedimentos diagnósticos, como a arteriografia translombar e a cateterização venosa central em veias jugular ou subclávia esquerdas1.

Consiste em complicação rara no pós-operatório de cirurgia cardíaca, com incidência em torno de 0,5% a 2%2-4, o que aumenta a morbidade e a mortalidade do procedimento, prolongando o tempo de hospitalização.

Há ainda controvérsias no tratamento do quilotórax. O tratamento conservador consiste em drenagem pleural e dieta isenta de lípides com triglicérides de cadeia média, ou jejum e nutrição parenteral prolongada. A abordagem cirúrgica fica normalmente reservada para falência do tratamento conservador por duas semanas. De forma semelhante, o quiloperitônio ou ascite quilosa é o acúmulo de linfa, produzida nos linfáticos do intestino delgado por absorção dos produtos da digestão da gordura, na cavidade peritoneal. A maior parte dos casos tem causa congênita ou idiopática, sendo 10% de causa traumática.

Recentemente, o octreotide (análogo sintético da somatostatina) tem sido usado no tratamento conservador do quilotórax, ainda com pouca experiência na literatura mundial.

Descrevemos aqui o relato de três casos de uso de octreotide no tratamento do quilotórax e um da ascite quilosa, todos em pós-operatório de cirurgia cardíaca.

Relato do Caso

CASO 1

S.N., um dia de vida, sexo masculino, pardo, com diagnóstico de transposição das grandes artérias, comunicação interatrial e persistência do canal arterial. No segundo dia de vida, foi submetido à atriosseptostomia por cateter-balão e, aos 11 dias de vida, à cirurgia de Jatene. No 9º dia após a operação, apresentou quiloperitôneo, com triglicérides no líquido peritoneal de 428,0 mg/dl, sendo iniciado tratamento conservador com jejum e nutrição parenteral, sem melhora após 12 dias. Então, optou-se por iniciar octreotide na dose de 1,0 mcg/kg/h com aumento progressivo até 4,0 mcg/kg/h, com resolução do quadro em 5 dias. Teve alta hospitalar em dois meses, devido a complicações infecciosas.

Caso 2

E.M.C.J., dois anos, sexo masculino, branco, portador de Síndrome de Down, com diagnóstico de atresia pulmonar com comunicação interventricular e persistência do canal arterial. Admitido em nosso serviço para realização de cirurgia de Rastelli, com ampliação da artéria pulmonar esquerda. No 21º dia pós-operatório, apresentou quilotórax com triglicérides no líquido pleural de 2.196,0 mg/dl. Jejum e nutrição parenteral foram iniciados sem melhora após 10 dias. Foi iniciado uso de octreotide (1 até 4 mcg/kg/h), sendo apresentado aumento de enzimas hepáticas com regressão espontânea, mesmo após manutenção do uso da medicação. Houve boa resposta ao tratamento instituído e resolução do quadro em 8 dias, evoluindo para a retirada do dreno pleural em 15 dias e alta hospitalar após 18 dias do início do tratamento com octreotide.

CASO 3

J.M.U.S., 4 meses, sexo masculino, negro, portador de Síndrome de Down e desnutrição energético protéica grau III, com diagnóstico de coarctação de aorta, persistência do canal arterial e fístula da artéria pulmonar para ventrículo esquerdo. Foi submetido à istmoplastia aórtica com secção e sutura do canal arterial. No 2º dia pós-operatório, apresentou quilotórax com triglicérides de 594 mg/dl. Apresentou resolução no quadro após 4 dias de nutrição parenteral e jejum, sendo, então, iniciada progressão lenta da oferta de lípides na dieta. Após 10 dias, a criança voltou a apresentar desconforto respiratório, sendo diagnosticado quilotórax à direita (Figura 1.a) com triglicérides no líquido pleural de 4.954 mg/dl. Optou-se por ligadura do ducto torácico e nutrição parenteral associada a jejum oral, sem sucesso após 15 dias. Iniciado octreotide (1 a 4 mcg/kg/h), houve aumento do débito urinário (10 ml/kg/h), normalizado com a suspensão do octreotide. O quilotórax foi resolvido em 7 dias, sendo retirado o dreno pleural, após 20 dias do início do uso da droga (Figura 1.b). O paciente teve alta hospitalar em 26 dias.


CASO 4

A.C.G.C.D., 6 meses, sexo feminino, branca, portadora de desnutrição energético-protéica grau II, com diagnóstico de dupla via de entrada de ventrículo único tipo direito, inversão ventricular, dupla via de saída do ventrículo direito e persistência do canal arterial. Submetida à cirurgia de Glenn bidirecional, ampliação da artéria pulmonar direita e esquerda, bandagem do tronco pulmonar, atriosseptectomia, secção e sutura do canal arterial. Recebeu alta hospitalar no 9º dia pós-operatório. No 15º dia pós-operatório, retornou ao hospital, por desconforto respiratório progressivo há três dias, sendo diagnosticado quilotórax, com melhora após 7 dias de nutrição parenteral exclusiva, e recidiva após introdução de dieta geral. Foram reiniciados jejum e nutrição parenteral com nova recidiva após 23 dias, já em uso de dieta isenta de triglicérides. O tratamento com octreotide foi Iniciado (1-4,0 mcg/kg/h) com aumento do débito urinário (8,0 ml/kg/h) e de enzimas hepáticas, normalizadas através de adequações na nutrição parenteral. O paciente fez uso do octreotide por 12 dias, com resolução do quadro no 13º dia. Retirado dreno após 3 dias e alta hospitalar depois de 7 dias do início da medicação.

Resultados

Nenhuma criança apresentou efeito colateral grave que exigisse a redução ou suspensão do tratamento. A dose utilizada foi baseada na literatura, iniciando em 1,0 mcg/kg/h, com aumento progressivo até 4mcg/kg/h em bomba de infusão contínua, e posterior regressão, sendo que o volume de drenagem pleural mostrou redução progressiva em todos os casos, à medida que se aumentava a infusão da droga (Figura 2).


Discussão

A principal causa do quiloperitônio em crianças é congênita, havendo ainda causas obstrutivas por má rotação, intussepção, hérnia encarcerada, linfangioma, trauma abdominal, hepatopatias e tuberculose2. Sua evolução tem mortalidade de 11,1% a 17%3. A perda de líquido linfático gera hipoalbuminemia, alterações hidroeletrolíticas, de coagulação e imunodeficiências4, com importante comprometimento do quadro clínico da criança e aumento da morbimortalidade.

Tanto para o quilotórax quanto para o quiloperitônio, existem tratamentos conservadores e cirúrgicos, sendo o último normalmente indicado após falência do tratamento conservador, depois de duas a três semanas5. Estudo envolvendo 39 pacientes com quilotórax por diferentes causas, após 45 dias de tratamento conservador, mostrou que o quadro foi resolvido em 77% dos pacientes6. Pego e cols.7 relatam 4 casos de ligadura cirúrgica do ducto torácico, em que todos os pacientes apresentaram melhora importante do quilotórax, após a ligadura do ducto torácico. Concluiu-se que a sua realização precoce poderia descartar as possíveis falhas dos tratamentos conservadores, diminuindo as agressões e o tempo de sofrimento dos pacientes. No entanto, tal procedimento é limitado pelas variações anatômicas da localização do ducto, bem como pela dificuldade em identificar o local de drenagem.

O octreotide é um análogo da somatostatina que inibe a secreção de alguns hormônios hipofisários e gastrointestinais, aumentando a resistência arteriolar esplâncnica, diminuindo o fluxo gastrointestinal e, por consequência, o fluxo linfático8. Esse vem sendo frequentemente relatado na literatura mundial no tratamento tanto do quilotórax quanto do quiloperitônio, com resultados bastante animadores, diminuindo o tempo de tratamento e a necessidade de intervenção cirúrgica5.

Os efeitos colaterais do octreotide estão relacionados à redução da motilidade e da secreção intestinal: hipertensão, má absorção, náuseas, flatulência, disfunção hepática e hiperglicemia9. Embora normalmente sejam poucos os efeitos colaterais encontrados no seguimento de pacientes em uso do octreotide, tal prática já foi associada a sérias complicações, tais como enterocolite necrotisante, sendo seu uso contraindicado em pacientes com antecedentes de doença vascular significativa. Durante seu uso, recomenda-se o controle periódico de função hepática, glicemia e função tireoidiana10.

Conclusão

Os resultados encontrados nos 4 casos são animadores com relação à segurança da droga, facilidade na manipulação e resultado favorável no tratamento do quilotórax e ascite quilosa, nos casos de falência dos tratamentos habituais ou na impossibilidade de intervenção cirúrgica pela má condição clínica da criança.

Um estudo prospectivo e randomizado, avaliando um grupo maior de pacientes, faz-se necessário para confirmar os achados desse pequeno grupo de pacientes.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 17/10/09; revisado recebido em 09/03/10; aceito em 08/04/10.

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  • Correspondência:

    Cristiane Felix Ximenes Pessotti
    Rua Desembargador Eliseu Guilherme, 147 - Paraíso
    04003-905 - São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      17 Out 2009
    • Revisado
      09 Mar 2010
    • Aceito
      09 Abr 2010
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