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Glicemia perioperatória e complicações pós-operatórias em cirurgia cardíaca pediátrica

Resumos

FUNDAMENTO: Anestesia para cirurgia cardíaca pediátrica é sistematicamente realizada em pacientes graves sob condições fisiológicas anormais. No intraoperatório, existem variações significativas da volemia, temperatura corporal, composição plasmática e fluxo sanguíneo tecidual, além de ativação da inflamação, com consequências importantes. Medidas seriadas da glicemia podem indicar estados de exacerbação da resposta neuroendocrinometabólica ao trauma servindo como marcadores prognóstico de morbidade nessa população. OBJETIVO: Correlacionar os níveis de glicemia do período perioperatório de crianças submetidas a cirurgia cardíaca com a ocorrência de complicações no pós-operatório e comparar os níveis intraoperatórios de glicemia de acordo com as condições perioperatórias. MÉTODOS: Informações referentes ao procedimento anestésico-cirúrgico e condições perioperatórias dos pacientes foram coletadas em prontuário. Comparações das médias dos valores perioperatórios da glicemia nos grupos de pacientes que apresentaram, ou não, complicações pós-operatórias e as frequências referentes às condições perioperatórias foram estabelecidas conforme cálculo da razão de chances e em análises univariáveis não paramétricas. RESULTADOS: Valores mais elevados de glicemia intraoperatória foram observados nos indivíduos que apresentaram complicações pós-operatórias. Prematuridade, faixa etária, tipo de anestesia e caráter do procedimento não apresentaram influência na média glicêmica do intraoperatório. O emprego de Circulação Extracorpórea (CEC) esteve associado a maiores valores de glicemia durante a cirurgia. Nos procedimentos com CEC, maiores níveis glicêmicos foram observados nos indivíduos que evoluíram com infecção e complicações cardiovasculares, nas cirurgias sem CEC essa mesma associação ocorreu com complicações infecciosas e hematológicas. CONCLUSÃO: Níveis intraoperatórios mais elevados de glicemia estão associados com maior morbidade no pós-operatório de cirurgia cardíaca pediátrica.

Cardiopatias congênitas; cirurgia torácica; complicações pós-operatórias; glicemia


BACKGROUND: Anesthesia for pediatric cardiac surgery is systematically performed in severely ill patients under abnormal physiological conditions. In the intraoperative period, there are significant variations in blood volume, body temperature, plasma composition, and tissue blood flow, in addition to activation of inflammation, with important consequences. Serial measurements of blood glucose levels can indicate states of exacerbation of the neuroendocrine-metabolic response to trauma, serving as prognostic markers of morbidity in that population. OBJECTIVE: To correlate perioperative blood glucose levels of children undergoing cardiac surgery with the occurrence of postoperative complications, and to compare intraoperative blood glucose levels according to perioperative conditions. METHODS: Information regarding the surgical/anesthetic procedure and perioperative conditions of patients was collected from the medical records. The mean perioperative blood glucose levels in the groups of patients with and without postoperative complications and the frequencies of perioperative conditions were compared by use of odds ratio and non-parametric univariate analyses. RESULTS: Higher intraoperative blood glucose levels were observed in individuals who had postoperative complications. Prematurity, age group, type of anesthesia, and character of the procedure did not influence the mean intraoperative blood glucose level. The use of extracorporeal circulation (ECC) was associated with higher blood glucose levels during surgery. In procedures with ECC, higher blood glucose levels were observed in individuals who had infectious and cardiovascular complications. In surgeries without ECC, that association was observed with infectious and hematological complications. CONCLUSION: Higher intraoperative blood glucose levels are associated with higher morbidity in the postoperative period of pediatric cardiac surgery.

Heart defects, congenital; thoracic surgery; postoperative complications; blood glucose


Glicemia perioperatória e complicações pós-operatórias em cirurgia cardíaca pediátrica

Rodrigo Leal AlvesI, III; Macius Pontes CerqueiraI; Nadja Cecília de Castro KraycheteI, II; Guilherme Oliveira CamposI, II; Marcelo de Jesus MartinsI; Norma Sueli Pinheiro MódoloIV

IHospital São Rafael, Salvador, BA - Brasil

IIHospital Ana Neri, Salvador, BA - Brasil

IIIUniversidade Federal da Bahia, Salvador, BA - Brasil

IVFaculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Rodrigo Leal Alves Rua Sargento Astrolíbio, 209, apt 1202, Ed. Paolo Passolini - Pituba 41810-340 -Salvador, BA - Brasil E-mail: peres@mail.com, rlalves@ufba.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Anestesia para cirurgia cardíaca pediátrica é sistematicamente realizada em pacientes graves sob condições fisiológicas anormais. No intraoperatório, existem variações significativas da volemia, temperatura corporal, composição plasmática e fluxo sanguíneo tecidual, além de ativação da inflamação, com consequências importantes. Medidas seriadas da glicemia podem indicar estados de exacerbação da resposta neuroendocrinometabólica ao trauma servindo como marcadores prognóstico de morbidade nessa população.

OBJETIVO: Correlacionar os níveis de glicemia do período perioperatório de crianças submetidas a cirurgia cardíaca com a ocorrência de complicações no pós-operatório e comparar os níveis intraoperatórios de glicemia de acordo com as condições perioperatórias.

MÉTODOS: Informações referentes ao procedimento anestésico-cirúrgico e condições perioperatórias dos pacientes foram coletadas em prontuário. Comparações das médias dos valores perioperatórios da glicemia nos grupos de pacientes que apresentaram, ou não, complicações pós-operatórias e as frequências referentes às condições perioperatórias foram estabelecidas conforme cálculo da razão de chances e em análises univariáveis não paramétricas.

RESULTADOS: Valores mais elevados de glicemia intraoperatória foram observados nos indivíduos que apresentaram complicações pós-operatórias. Prematuridade, faixa etária, tipo de anestesia e caráter do procedimento não apresentaram influência na média glicêmica do intraoperatório. O emprego de Circulação Extracorpórea (CEC) esteve associado a maiores valores de glicemia durante a cirurgia. Nos procedimentos com CEC, maiores níveis glicêmicos foram observados nos indivíduos que evoluíram com infecção e complicações cardiovasculares, nas cirurgias sem CEC essa mesma associação ocorreu com complicações infecciosas e hematológicas.

CONCLUSÃO: Níveis intraoperatórios mais elevados de glicemia estão associados com maior morbidade no pós-operatório de cirurgia cardíaca pediátrica.

Palavras-chave: Cardiopatias congênitas, cirurgia torácica, complicações pós-operatórias, glicemia.

Introdução

O perioperatório da cirurgia cardíaca pediátrica representa um momento crucial na evolução de crianças portadoras de cardiopatias congênitas e adquiridas. Nesse período, os pacientes são submetidos a variações significativas na volemia, temperatura corporal, composição plasmática e fluxo sanguíneo tecidual com consequências fisiopatológicas importantes1. Agressões adicionais, por vezes inevitáveis, como circulação extracorpórea (CEC) e parada circulatória total, contribuem para agravar ainda mais o desarranjo orgânico no intraoperatório1. O estresse gerado pela cirurgia evoca diversos mecanismos de defesa do organismo, definidos como "Resposta Neuro-Endócrino-Imuno-Metabólica ao Trauma", com o intuito de sobreviver ao evento lesivo inicial. As modificações endócrinas e as respostas imunológicas deflagradas levam a um conjunto de alterações metabólicas para proteger as principais funções fisiológicas2. No entanto, à semelhança de outros mecanismos adaptativos, a exacerbação dessa resposta pode contribuir na perpetuação do estado patológico e na ocorrência de complicações clínico-cirúrgicas3.

As variações hormonais ao estresse, como elevações de catecolaminas circulantes, glucagon, cortisol e hormônio do crescimento, desencadeiam um estado de resistência tecidual ao efeito da insulina com gliconeogênese e catabolismo da massa magra4,5. A hiperglicemia gerada, por muito tempo menosprezada e tida como um evento secundário, é hoje reconhecida como fator preditivo de mal prognóstico no paciente crítico6,7. Estudos em adultos que investigaram a elevação intraoperatória da glicemia em cirurgia cardíaca também evidenciaram uma correlação positiva com morbimortalidade pós-operatória tanto em indivíduos diabéticos como em não diabéticos8-10.

Espera-se que, à semelhança de adultos, a elevação da glicemia em crianças seja um marcador biológico precoce de evolução clínico-cirúrgica, possibilitando a identificação de grupos de risco ainda no intraoperatório. A interpretação e o manejo dessas alterações, no entanto, são adaptações de conclusões e observações generalizadas sem a devida comprovação em pediatria. O presente estudo tem como objetivo analisar os níveis glicêmicos perioperatórios em crianças submetidas a cirurgia cardíaca de baixo e moderado risco e compará-los conforme as condições anestésico-cirúrgicas e a ocorrência de complicações infecciosas, cardiovasculares, respiratórias, renais, neurológicas, hematológicas e óbito no pós-operatório.

Métodos

Após aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa Médica, estudamos retrospectivamente 160 cirurgias cardíacas consecutivas realizadas em crianças diferentes de até 16 anos de idade nos hospitais São Rafael e Ana Neri em Salvador (BA) nos anos 2007 e 2008. Foram selecionados para a pesquisa todos a os procedimentos dos tipos 1, 2 e 3 segundo classificação de Risk Adjustment for Congenital Heart Surgery (RACHS-1)11.

As variáveis perioperatórias foram coletadas em ficha padronizada com informações referentes a dados demográficos, condições pré-operatórias, tipo e complexidade do procedimento realizado, tipo de anestesia, emprego e duração de CEC e utilização de hemocomponentes. Todos os pacientes foram submetidos a cateterismo arterial para medição contínua da pressão arterial e coletas de amostras foram empreendidas em pelo menos dois momentos do intraoperatório (logo após o cateterismo arterial e ao final do procedimento) com outras amostragens no decorrer da cirurgia conforme discrição da equipe anestésico-cirúrgica. Diurese, perdas insensíveis e o volume de cristaloides e coloides administrados foram computados no cálculo final do balanço hídrico, assim como o peso de compressas e gases, volume de aspirador, perda estimada no circuito de CEC, e volume de hemocomponentes administrados foram utilizados no balanço de sangue.

Quanto às condições pré-operatórias, foram coletadas informações referentes a gênero, idade, prematuridade, peso, cardiopatia primária (com maior impacto clínico na criança), doenças associadas (incluindo cardiopatias secundárias), presença de cianose, hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca congestiva ou ventilação mecânica antes da cirurgia e caráter do procedimento (eletivo ou emergencial). Foram levantados também os últimos exames laboratoriais do pré-operatório, incluindo a glicemia de jejum.

No intraoperatório foram coletadas informações referentes ao ato anestésico-cirúrgico como: tipo de anestesia (anestesia geral isolada x anestesia geral com raquianestesia), cirurgia realizada, dados da CEC, administração de hemocomponentes e a utilização de drogas vasoativas, insulina e corticoesteroides, além da administração de glicose em qualquer forma ou diluição. Os exames laboratoriais do período foram efetuados em processador automático de gasometria (Radiometer Medical ABL 700, Copenhagen), mesma marca e modelo nos dois hospitais pesquisados, com amostras sanguíneas colhidas a partir do sistema de pressão arterial invasiva ou da linha arterial da CEC. O referido gasômetro mensura não só o perfil gasométrico da amostra (pH, PCO2, PO2, HCO3- e BE), como nível glicêmico, eritrograma (hematócrito e hemoglobina), lactatemia e eletrólitos (sódio, potássio, cálcio e cloro). Em razão da grande variabilidade de número e momentos das amostras intraoperatórias, foram registrados os valores iniciais e máximos da glicemia durante a cirurgia e a média dos valores glicêmicos coletados nesse período.

No pós-operatório, analisamos a ocorrência de morte e complicações, a partir de descrição de eventos em evolução médica, até a alta hospitalar do paciente. Os tipos de complicações foram registrados em grupos correlatos conforme definições preestabelecidas. Infecção: situações confirmadas ou suspeitas de sítio infeccioso com uso de antibióticos. Complicações cardiovasculares: ocorrência de arritmias, bloqueio atrioventricular total, tamponamento cardíaco, uso de droga vasoativa por um período superior a 24 horas(infusões acima de 15mcg/Kg/min de dopamina ou qualquer valor de infusão contínua de noradrenalina e/ou adrenalina), uso de droga inotrópica por um período superior a 24 horas (infusões até 15mcg/Kg/min de dopamina ou qualquer valor de infusão contínua de dobutamina ou milrinona), baixo débito cardíaco e hipertensão arterial sistêmica com requerimento de nitroprussiato de sódio para controle pressórico por um período superior a 24 horas. Complicações respiratórias: embolia, edema pulmonar, ventilação mecânica por mais que 48 horas no pós-operatório e lesão pulmonar aguda. Complicações renais: insuficiência renal aguda (elevação maior ou igual a duas vezes o valor basal da creatinina sérica) e/ou requerimento de diálise. Complicações neurológicas: coma, convulsão, déficit neurológico e acidente vascular cerebral. Complicações hematológicas: coagulopatia (tempos de protrombina e tromboplastina parcial ativada superior a duas vezes o valor normal e ou fibrinogênio menor que 100mg/dL e/ou contagem plaquetária inferior a 80.000/mm3), eventos hemorrágicos com ou sem coagulopatia e necessidade de retorno ao centro cirúrgico para revisão de hemostasia. Foi considerada como evento combinado a ocorrência de pelo menos uma das complicações listadas.

Nas unidades de terapia intensiva foram levantadas as dosagens de rotina da glicemia do pós-operatório obtidas com glicosímetros digitais (fita reagente - método glicose oxidase). Os valores de admissão e a média dos valores dessas medidas no 1º dia pós-operatório foram empregados na análise por conta da variabilidade do horário de dosagem (realizadas ao menos quatro vezes ao dia). As unidades nos hospitais estudados tinham como rotina jejum oral de pelo menos 24 horas após a cirurgia com administração de glicose (taxa de infusão entre 5 e 10mg/Kg/minuto) na solução venosa de reposição hidroeletrolítica nesse ínterim. Insulinoterapia para controle da glicemia nas instituições era empregada conforme discrição do médico plantonista, sendo habitualmente iniciada a partir de valores superiores a 250mg/dL.

O efeito da glicemia pré-operatória, inicial, máxima e média do intraoperatório e média do 1º dia pós-operatório sobre a chance de complicação foi calculado por regressão logística binária, ajustada conforme o risco estimado (RACHS-1), e os valores foram expressos na forma de razão de chances com respectivos intervalos de confiança de 95%. As comparações dos diferentes valores da glicemia média intraoperatória de acordo com prematuridade, tipo de anestesia, caráter da cirurgia e utilização de CEC foram feitas pelo teste de Mann-Whitney. As comparações das glicemias médias intraoperatórias conforme a faixa etária e grupo de risco foram feitas pelo teste de Kruskall-Wallis. O teste do Qui-quadrado foi empregado nas comparações das frequências relativas de emprego de CEC e taxas de complicação conforme grupos de risco. Efeitos e diferenças foram considerados estatisticamente significativos se p < 0,05.

Resultados

Dos 160 pacientes estudados, 85 eram do sexo masculino (75 femininos), 90 apresentavam alguma doença associada, e apenas 5 nasceram prematuros. As medianas de idade e peso foram de 36 meses e 13 Kg, respectivamente, com ampla faixa de variação na amostragem (15 dias a 16 anos de vida e 2,3 a 67 Kg de peso). Os procedimentos realizados foram considerados eletivos na maioria das situações (81% dos casos) sendo a anestesia geral isolada a mais empregada (76,8% das anestesias) em oposição a anestesia combinada (geral com raquianestesia). Circulação Extracorpórea foi utilizada em aproximadamente metade das cirurgias (48%) com duração mediana de 70 minutos e tempo de clampeamento aórtico mediano de 55 minutos. Em 62,5% dos casos, transfusão de algum tipo de hemocomponente foi necessária e os pacientes apresentaram uma mediana de diurese intraoperatória de 3,67 mL.Kg-1 com mediana de balanço hídrico e de sangue de + 140 mL e + 20 mL. O uso pré-operatório de corticoesteroide e a administração intraoperatória de glicose ou insulina foram eventos pouco comuns na amostragem. Por conta do protocolo cirúrgico de uso de metilprednisolona (30mg/Kg) na CEC, a taxa de administração intraoperatória de corticoide foi idêntica à taxa de utilização de CEC (Tabelas 1 e 2).

O gráfico 1 mostra a evolução dos valores da glicemia em diferentes momentos do perioperatório nos pacientes que apresentaram, ou não, pelo menos uma das complicações previamente listadas (evento combinado). Observa-se diferença estatisticamente significante nos valores máximos e na média glicêmica do intraoperatório com níveis mais elevados destesentre aqueles que evoluíram com algum evento mórbido. Como a média glicêmica, obtida a partir de todas as amostras durante a cirurgia, provavelmente reflete melhor o estado metabólico que medidas unitárias do pico glicêmico nesse período, optamos por analisar sua associação com complicações pós-operatórias e o impacto de possíveis variáveis de confusão sobre os mesmos.


As tabelas 3 e 4 mostram que prematuridade, caráter da cirurgia, tipo de anestesia e faixa etária não estiveram associados a diferenças na média glicêmica durante a cirurgia. A CEC, com administração concomitante de altas doses de corticoesteroide, no entanto, esteve associada a níveis significativamente mais altos de glicemia nesse período (tab. 4).

O risco cirúrgico estimado RACHS-111 também apresentou influência nesses valores, com níveis mais baixos de glicemia no grupo 1, constituído pelas operações de menor complexidade (tab. 5). Ainda que a classificação RACHS-1 categorize as cirurgias cardíacas pediátricas em seis grupos conforme mortalidade em curto prazo (em ordem crescente), as maiores médias glicêmicas foram evidenciadas no grupo 2, com risco intermediário, e não no grupo 3, com maior risco presumido. Essa ocorrência provavelmente reflete a maior taxa de utilização da CEC nas cirurgias do grupo 2 (tab. 5), que concentrou os procedimentos intracavitários de longa duração, como correção total de tetralogia de Fallot. Na presente amostragem, o grupo 3 foi constituído especialmente por procedimentos vasculares de curta duração, sem CEC, com taxas de complicação semelhantes ao grupo 2, como cerclagem pulmonar e anastomoses sistêmico-pulmonares. Por conta do impacto presumido da CEC nos valores de glicemia do intraoperatório, a amostragem cirúrgica foi subdividida conforme sua utilização para uma melhor análise dos grupos.

Na tabela 6 podemos observar que, nas cirurgias sem emprego de CEC, os pacientes que evoluíram com complicações infecciosas e hematológicas apresentaram maiores médias de glicemia intraoperatória que aqueles que evoluíram sem tais complicações. Nas cirurgias em que a utilização de CEC foi necessária (tab. 7), essa associação foi evidenciada para complicações infecciosas, cardiovasculares e eventos combinados (ocorrência de pelo menos uma das complicações levantadas). A taxa de óbito não esteve associada com a média de glicemia intraoperatória, tanto nos procedimentos com CEC como nos sem CEC.

Discussão

Ainda que, em adultos, valores mais elevados de glicemia intraoperatória e pós-operatória estejam associados a uma maior morbimortalidade em cirurgia cardíaca6-10, pouco se sabe dessa relação na população pediátrica. Um grande número de possíveis fatores de confusão, como prematuridade dos sistemas fisiológicos, maior variabilidade de procedimentos cirúrgicos disponíveis e menor uniformidade de condição clínica pré-operatória, dificulta a obtenção de resultados conclusivos a respeito.

O gráfico 1 mostra a variação perioperatória da glicemia entre os pacientes que evoluíram sem intercorrências e aqueles que cursaram com pelo menos uma das complicações analisadas no pós-operatório. A média dos valores e o valor máximo encontrados durante a cirurgia apresentaram associação estatística positiva com a ocorrência de complicações que não foi evidenciada nas dosagens de admissão na UTI e na média do 1º dia pós-operatório. Tal resultado é o oposto do encontrado no trabalho realizado por Polito e cols.12 no qual os autores não encontraram associação entre complicações graves e glicemia intraoperatória, mas evidenciaram maiores níveis glicêmicos nas 72 horas pós-operatórias entre os que complicaram. Outros estudos13-15 também demonstraram níveis mais elevados de glicemia pós-operatória entre as crianças que cursaram com morbidades após cirurgia cardíaca. Rossano e cols.16, no entanto,observaram que recém-nascidos em recuperação de cirurgia para correção de transposição de grandes vasos que se mantinham por um período longo do 1º dia pós-operatório (maior que 50% do tempo) com a glicemia entre 80 e 110mg/dL apresentavam maior risco de eventos adversos que aqueles que se mantinham com níveis glicêmicos acima de 200mg/dL.

Como previamente exposto, diversas variáveis de confusão devem ser levadas em conta na avaliação dos resultados com subdivisões da amostra para melhor análise. Os dados apresentados no gráfico 1 dizem respeito à população geral estudada e, possivelmente, as diferenças encontradas nas medias dos valores e no valor máximo da glicemia no intraoperatório são explicadas pelo uso de altas doses de corticoide atrelado à utilização de CEC. Esses dois fatores estão associados a complicações inerentes e habitualmente indicam situações clínico-cirúrgicas de maior risco, requerendo uma análise específica dos subgrupos. Quanto à media do valor do 1º dia pós-operatório, que não se mostrou diferente nos pacientes com ou sem intercorrências, outras variáveis não controladas, como o uso de insulina ou taxa de administração de glicose na unidade de terapia intensiva conforme discrição do médico plantonista, podem ter tido influência nos níveis glicêmicos dos dois grupos dificultando sua interpretação e comparação com a literatura.

Na análise de possíveis fatores clínico-cirúrgicos com capacidade teórica de influenciar os níveis de glicemia do intraoperatório, observamos que prematuridade, faixa etária, caráter emergencial ou eletivo do procedimento e tipo de anestesia empregada (geral ou geral com raquianestesia) não estiveram associados a diferenças na média glicêmica do período. O emprego de CEC, no entanto, se associou a níveis significativamente mais elevados desses valores (tab. 4). Ainda que a dose protocolar de corticoesteroide possa explicar essa associação, a CEC, por si, representa um dos maiores desencadeantes de atividade pró-inflamatória na cirurgia, com elevações substanciais de citocinas e interleucinas circulantes17, sendo esperados maiores níveis glicêmicos com sua utilização. Assim, os casos levantados foram subdivididos conforme o emprego de CEC no procedimento cirúrgico para uma análise da relação entre a média glicêmica intraoperatória e a ocorrência de complicações específicas dos grandes sistemas orgânicos em cada situação (tab. 6 e 7).

A partir da análise das taxas de complicações pós-operatórias conforme a utilização de CEC, ficou demonstrado no estudo que complicações infecciosas estavam associadas a maiores valores de glicemia intraoperatória, independentemente do seu uso. Nos procedimentos sem CEC, complicações hematológicas estiveram associadas a maiores médias glicêmicas na cirurgia, enquanto nos procedimentos com CEC essa associação ocorreu com complicações cardiovasculares.

Quando comparado a estudos na população adulta, algumas diferenças na ocorrência dos subtipos de complicações podem ser observadas. Ouattara e cols.9, em análise prospectiva, mostraram que um mau controle intraoperatório da glicemia, quatro valores consecutivos acima de 200mg/dL, estava associado a maiores taxas de óbito e complicações cardiovasculares, respiratórias, renais e neurológicas, mas não infecciosas em adultos diabéticos submetidos a revascularização do miocárdio com CEC. Gandhi e cols.8, em cirurgias de revascularizações miocárdicas, encontraram maiores médias glicêmicas intraoperatórias nos indivíduos que evoluíram a óbito e/ou com distúrbios renais e pulmonares, mas não cardiovasculares, neurológicos e infecciosos. Duncan e cols.18, por sua vez, mostraram associação positiva entre glicemias acima de 200mg/dLdurante cirurgias cardíacas diversas com CEC em adultos e a ocorrência de infecção e ventilação mecânica prolongada, mesmo após análise multivariável com controle de prováveis fatores de confusão. Em crianças, os estudos costumam abordar as complicações em conjunto, como eventos combinados, e, habitualmente, focam no pós-operatório de procedimentos complexos com CEC. Em alguns dos poucos trabalhos nessa população, Ghafoori e cols.19 encontraram maior risco de mediastinite nos indivíduos que apresentaram picos glicêmicos superiores a 130mg/dL nas primeiras 24 horas do pós-operatório, enquanto Székely e cols.14 relataram maior ocorrência de insuficiência cardíaca e infecções graves nas crianças com hiperglicemia após cirurgia cardíaca.

Pacientes diabéticos representam um grupo com maior risco de infecção no pós-operatório de diversos procedimentos cirúrgicos. Ainda que os efeitos deletérios da hiperglicemia crônica nos sistemas imune e vascular reconhecidamente aumentem a chance de complicações infecciosas, a hiperglicemia aguda também apresenta seus próprios efeitos adversos. Estudos experimentais demonstram supressão de vários aspectos da imunidade como quimiotaxia, fagocitose, geração de radicais livres e capacidade bactericida de macrófagos20 com a elevação aguda da glicemia. Elevação da concentração de citocinas inflamatórias circulantes também é relatada na hiperglicemia aguda21, ocasionando um estado pró-inflamatório com redução da função imune, justificando maiores taxas de infecção nessas situações.

Redução da produção e liberação de óxido nítrico endotelial, aumento dos níveis de angiotensina II e alterações da reatividade vascular, também associadas a hiperglicemia4, podem ocasionar distúrbios nas circulações sistêmica e pulmonar com complicações cardiovasculares decorrentes. Mesmo arritmias e disfunções miocárdicas após cirurgia cardíaca com CEC podem ser atribuídas a alterações inflamatórias no parênquima do coração22, presumivelmente proporcional à intensidade do estado inflamatório.

Disfunções plaquetárias por diminuição do efeito antiagregante induzidos pelo óxido nítrico foram relatadas em pacientes hiperglicêmicos com síndromes coronarianas agudas23, assim como hipercoagulabilidade associada a elevação da glicemia foi demonstrada em situações de endotoxemia induzida em humanos24 e em pacientes com choque séptico25. Essas alterações na coagulação podem explicar a associação observada entre maiores níveis glicêmicos intraoperatórios e coagulopatia no pós-operatório das cirurgias sem CEC, já que esses dois eventos estão relacionados à magnitude do trauma tecidual e tamanho da área cruenta. Nas cirurgias com CEC, a maior intensidade da anticoagulação empregada e o próprio impacto negativo da CEC nos sistemas fisiológicos de hemostasia constituem as principais causas de coagulopatia no pós-operatório1, o que provavelmente encoberta qualquer efeito da glicemia nessas situações.

O presente estudo apresenta as limitações esperadas em um trabalho retrospectivo. Ainda que associações positivas entre hiperglicemia e complicações pós-operatórias tenham sido observadas, não há como estabelecer causalidade. A ausência de protocolos institucionais para medição e controle da glicemia dificultou um acompanhamento mais longo no pós-operatório e a avaliação mais detalhada de possíveis fatores de influência no intraoperatório (relação dos marcadores com variáveis da CEC, impacto de medidas específicas da anestesia ou cirurgia). O impacto de outras variáveis de confusão, que não as apreciadas, também não pode ser descartado na análise dos dados, já que outros elementos podem justificar as associações encontradas.

Indiscutivelmente, uma série de avanços no conhecimento médico e melhorias no cuidado perioperatório vêm contribuindo de forma favorável para redução da morbimortalidade na cirurgia cardíaca pediátrica. O intraoperatório e o pós-operatório imediato representam um momento importante para adoção de medidas e condutas que possam favorecer a evolução clínica dos pacientes. Portanto, marcadores laboratoriais que indiquem prognóstico devem ser ativamente pesquisados para auxiliar, em tempo hábil, a equipe anestésico-cirúrgica no sentido de melhores decisões terapêuticas. Como demonstrado no estudo, níveis glicêmicos mais elevados durante cirurgias cardíacas em crianças não se correlacionaram com mortalidade, mas apresentaram associação com maior ocorrência de complicações infecciosas, cardiovasculares e hematológicas, conforme a utilização, ou não, de CEC no procedimento. No entanto, o impacto de medidas específicas para seu controle, como administração de insulina na hiperglicemia, não está estabelecido de forma consistente na literatura e mais estudos ainda são necessários para sua determinação.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Rodrigo Leal Alves pela Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista.

Artigo recebido em 15/02/11; revisado recebido em 15/02/11; aceito em 26/04/11.

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  • Correspondência:
    Rodrigo Leal Alves
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Fev 2011
    • Revisado
      15 Fev 2011
    • Aceito
      26 Abr 2011
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