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Treinamento físico na distrofia muscular de becker associada à insuficiência cardíaca

Resumos

A distrofia muscular de Becker (DMB) integra as distrofinopatias que ocorrem devido a mutações genéticas que expressam a proteína distrofina no cromossomo X. O início dos sintomas neuromusculares normalmente precede o comprometimento da função cardíaca, podendo acontecer inversamente pela insuficiência cardíaca (IC). O treinamento físico é bem estabelecido na IC, porém, quando associada à DMB, é controverso e sem fundamento científico. Apresentamos o caso de um paciente com DMB associada à IC em fila de transplante cardíaco submetido a um programa de treinamento físico.

Insuficiência cardíaca; distrofia muscular de Duchenne; exercício; eletromiografia


Becker muscular dystrophy (BMD) integrates dystrophy occurring due to genetic mutations that express the dystrophin protein in chromosome X. The onset of neuromuscular symptoms usually precedes the impairment of cardiac function, and may conversely happen by heart failure (HF). Physical training is well established in HF, however, when combined with BMD, it is controversial and without any scientific basis. This study presents the case of a patient with BMD associated with HF in cardiac transplant waiting list undergoing a physical training program.

Heart failure; muscular dystrophy, Duchenne; exercise; electromyography


La distrofia muscular de Becker (DMB) integra las distrofinopatías que ocurren debido a mutaciones genéticas que expresan la proteína distrofina en el cromosoma X. El inicio de los síntomas neuromusculares normalmente precede el compromiso de la función cardíaca, pudiendo acontecer inversamente por la insuficiencia cardíaca (IC). El entrenamiento físico es bien establecido en la IC, sin embargo, cuando está asociada a la DMB, es controvertido y sin fundamento científico. Presentamos el caso de un paciente con DMB asociada a la IC en fila de transplante cardíaco sometido a un programa de entrenamiento físico.

Insuficiencia cardíaca; distrofia muscular de Duchenne; ejercicio; electromiografía


RELATO DE CASO

Treinamento físico na distrofia muscular de becker associada à insuficiência cardíaca

Jean Marcelo RoqueI,II; Vitor Oliveira CarvalhoI,II; Lucas Nóbilo PascoalinoI,II; Silvia Ayub FerreiraI; Edimar Alcides BocchiI; Guilherme Veiga GuimarãesI,II

ILaboratório de Insuficiência Cardíaca e Transplante - Instituto do Coração HCFMUSP, São Paulo, SP - Brasil

IILaboratório de Atividade Física e Saúde - Centro de Práticas Esportivas - USP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Guilherme Veiga Guimarães Rua Dr. Baeta Neves, 98 - Pinheiros 05444-050 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: gvguima@usp.br

RESUMO

A distrofia muscular de Becker (DMB) integra as distrofinopatias que ocorrem devido a mutações genéticas que expressam a proteína distrofina no cromossomo X. O início dos sintomas neuromusculares normalmente precede o comprometimento da função cardíaca, podendo acontecer inversamente pela insuficiência cardíaca (IC). O treinamento físico é bem estabelecido na IC, porém, quando associada à DMB, é controverso e sem fundamento científico.

Apresentamos o caso de um paciente com DMB associada à IC em fila de transplante cardíaco submetido a um programa de treinamento físico.

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca, distrofia muscular de Duchenne, exercício, eletromiografia.

Introdução

A distrofia muscular de Becker (DMB) faz parte das distrofinopatias que ocorrem devida mutações no gene que expressa à proteína distrofina, localizado no cromossomo X1. A distrofina está presente no citoesqueleto muscular e sua deficiência causa instabilidade e rompimento do sarcolema. Esse parece ser o principal fator da miopatia ocorrida na DMB, resultando em fraqueza muscular progressiva2.

O comprometimento da função cardíaca ocorre na maioria dos casos de DMB, com o miocárdio afetado pelo processo miopático, sendo sua progressão imprevisível e com papel determinante na sobrevida de tais pacientes1. Normalmente, o início dos sintomas neuromusculares precede o comprometimento cardíaco, mas, em alguns casos, isto pode acontecer de maneira inversa. A gravidade da disfunção cardíaca neste grupo de pacientes pode levar ao transplante deste órgão3.

Na avaliação eletromiográfica (EMG) dos pacientes com DMB, mudanças miopáticas são encontradas como potenciais de unidades motoras pequenas e polifásicas com um recrutamento precoce4. Fibrilações e descargas complexas repetitivas são comumente vistas nos músculos em repouso, especialmente nos proximal e paraspinhal5.

A realização de atividade física na DMB é controversa, pois o treinamento de alta intensidade e atividade muscular excêntrica pode ser prejudicial em pacientes com distrofinopatias, no entanto, o exercício de resistência com baixa intensidade é capaz de melhorar a força, a resistência e a fadiga, sem efeitos deletérios muscular6. Contudo, quando se trata de paciente com DMB associada à IC, esses dados não estão totalmente esclarecidos.

Assim, o objetivo desse relato de caso foi avaliar a força e a atividade eletromiográfica muscular, após programa de atividade física, em paciente com DMB em fila de transplante cardíaco.

Relato do Caso

Indivíduo aparentemente saudável do sexo masculino, de 25 anos, sentiu falta de ar e fadiga em 2005, fato que o levou a procurar atendimento médico, onde sendo constatada congestão pulmonar durante a avaliação clínica. Nessa oportunidade, o paciente foi tratado com diuréticos e orientado a diminuir a atividade física até a estabilização do quadro clínico para melhor investigação. No retorno, o paciente referiu dificuldade progressiva para subir escadas e levantar-se. Durante a anamnese, o paciente relatou história familiar de três primos com DMB, sendo encaminhado para um neurologista especialista em distrofias musculares. Com a avaliação clínica associada ao elevado nível de creatina quinase, o paciente foi encaminhado para a realização de exame genético, onde se confirmou a suspeita diagnóstica de DMB.

No final de 2007, o paciente queixou-se de cansaço aos pequenos esforços sendo encaminhado para avaliação cardiovascular. O ecocardiograma mostrou aumento significativo da área cardíaca, insuficiência mitral e fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 20,0%. O estudo de ventriculografia radioisotópica mostrou redução da função dos ventrículos direito e esquerdo em grau moderado e grave, respectivamente. O consumo de oxigênio de pico, avaliado durante o teste de esforço cardiopulmonar em esteira, foi de 10,3 ml/kg/min-1. A inclinação da reta entre ventilação e produção de dióxido de carbono (slope VE/VCO2) foi de 31,8. Com o quadro clínico do paciente e os exames complementares, IC classe funcional IV foi diagnosticada.

Após 6 meses da introdução e otimização medicamentosa (carvedilol 75 mg, losartan 100 mg, digoxina 0,25 mg, aldactone 25 mg, monocardil 80 mg e furosemida 80 mg), o paciente foi reavaliado, porém seu quadro clínico não apresentou boa evolução. Assim, a equipe clínica optou em incluí-lo na fila única de candidatos ao transplante cardíaco. Posteriormente, o paciente solicitou à equipe médica orientação para prática de atividade física, sendo liberado e encaminhado ao Laboratório de Atividade Física e Saúde para reabilitação física.

No início 2008, foram realizados teste de força muscular no quadríceps direito e avaliação da atividade eletromiográfica dos músculos vasto medial e lateral do mesmo membro, antes e depois do treinamento. Para aferição de força, o paciente foi posicionado sentado a uma altura em que os pés não tocassem o solo e, a partir de 90º de flexão do joelho (dominante), foi realizada a extensão do mesmo. Três movimentos foram realizados após o comando verbal ao paciente, e aceito o maior deles. A mensuração foi realizada com um dinamômetro modelo Crow AT (Filizola). No mesmo movimento de extensão de joelho, foi realizada a mensuração da amplitude eletromiográfica de superfície do vasto medial e lateral. Para essa mensuração, um módulo condicionado de sinal eletromiográfico de dois canais (Phoenix USB 2 V4.01 R8) foi utilizado. Eletrodos de superfície foram utilizados para captação da atividade elétrica dos músculos, conforme as recomendações do Surface EMG for the Non-Invasive Assessment of Muscles7.

Entre abril e agosto de 2008, iniciou-se o programa de treinamento físico, duas vezes por semana, por um período de três meses em ambiente fechado, com temperatura controlada a 22ºC. O exercício aeróbico foi realizado em esteira elétrica e o paciente foi orientado a controlar a velocidade da caminhada entre 11 e 13 da Escala de Borg8, com duração inicial de dois minutos, evoluindo gradualmente até atingir 12 minutos. O treinamento resistido foi realizado em estação de musculação da marca NAKAGYM com graduação de peso de um a 21 kg. Inicialmente, foi realizada uma série de três repetições de movimento concêntrico ativo assistido e excêntrico ativo resistido com carga mínima, evoluindo para movimento ativo não assistido, mantendo-se o mesmo número de séries, repetições e carga. Os exercícios realizados foram: Leg Extension, Leg Curl, Lat Pulldown, Peck Deck e Press Peitoral. Para a monitorização da frequência cardíaca, frequencímetro de pulso da marca Polar foi utilizado.

Este protocolo teve aprovação do Comitê de Ética e o paciente assinou o termo de consentimento. Os resultados obtidos neste estudo de caso demonstraram que apesar do quadro clínico estável e inalterado, ocorreu aumento discreto no VO2 pico, na força muscular e na atividade eletromiográfica (Tabela 1).

Discussão

Neste estudo, descrevemos de forma pioneira, o efeito do treinamento físico na força muscular esquelética e na atividade eletromiográfica em um paciente com DMB associada à IC.

Na avaliação da força muscular de quadríceps direito após treinamento, observou-se aumento de 20,0% em relação à condição pré-treinamento. Em estudo prévio, foi demonstrado em pacientes com DMB, treinados em ciclo ergômetro, que houve melhora de 40,0% da força de extensão de quadríceps8. Entretanto, neste estudo, os pacientes apresentavam apenas DMB sem comprometimento da função cardíaca associada, mostrando que programa de treinamento físico para paciente com DMB associado à IC pode ter impacto positivo no desempenho muscular. Além disso, também foi mostrado que após treinamento ocorreu aumento de 47,0% no VO2 de pico7. No estudo HF-ACTION, observou-se um ganho de 4,0% no VO2 de pico no grupo de pacientes que realizou atividade física, no entanto, a expectativa era de melhora de 10,0% após treinamento9.

Nosso estudo com DMB associado à IC apresentou uma melhora de 10,0% no VO2 de pico após o período de treinamento, resultado este que é normalmente considerado relevante. Essas diferenças observadas nestes estudos são provavelmente decorrentes da debilidade músculo-esqueléticos, do comprometimento cardíaco e da condição física inicial, ou seja, a melhora da capacidade física é inversamente proporcional às limitações do paciente. Além disso, os pacientes realizaram o teste cardiopulmonar pré e pós com tempos distintos de treinamentos, o que indica que tais diferenças devem ser interpretadas com cautela.

Em estudo prévio, na análise da amplitude eletromiográfica pré e pós treinamento do músculo vasto medial oblíquo, observou-se elevação na microvoltagem, tanto no repouso como no pico da contração muscular, demonstrando que a força muscular na DMB sofre mudanças suaves e compensadas, porém é preservada na maioria dos músculos, pelo menos no início da doença10. O ganho de força muscular e a maior atividade eletromiográfica, avaliada após treinamento neste estudo, podem ser sugestivos de possível retardamento do processo esperado na DMB.

Nosso estudo de caso demonstrou resultados semelhantes obtidos no vasto lateral (Figuras 1A e 1B) e que a atividade física na DMB associada à IC promoveu ganho de consumo de oxigênio, de força muscular e pequena elevação da atividade eletromiográfica. Novos estudos poderão elucidar com mais detalhes as alterações eletromiográficas e cardiológicas na DMB associada à IC.


 




Referências

1. Finsterer J, Stöllberger C. The heart in human dystrophinopathies. Cardiology. 2003;99(1):1-19.

2. Campbell KP. Three muscular dystrophies: loss of cytoskeleton-extracellular matrix linkage. Cell. 1995;80(5):675-9.

3. Hoogerwaard EM, Voogt WG, Wilde AM, van der Wouw PA, Bakker E, van Ommen GI, et al. Evolution of cardiac abnormalities in Becker muscular dystrophy over a 13-year period. J Neurol. 1997;244(10):657-63.

4. Kopeć J, Emeryk-Szajewska B. "Functional-QEMG" a new reliable method in daily routine investigation: electromyography. Clin Neurophysiol. 2002;42(8):495-506.

5. Liguori R, Fuglsang-Frederiksen A, Nix W, Fawcet PR, Andersen K. Electromyography in myopathy. Neurophysiol Clin. 1997;27(3):200-3.

6. Sveen ML, Jeppesen TD, Hauerslev S, Kober L, Krag TO, Vissing J. Endurance training improves fitness and strength in patients with Becker muscular dystrophy. Brain. 2008;131(Pt 11):2824-31.

7. Hermens HJ, Freriks B, Disselhorst-Klug C, Rau G. Development of recommendations for SEMG sensors and sensor placement procedures. J Electromyogr Kinesiol. 2000;10(5):361-74.

8. Carvalho VO, Bocchi EA, Guimarães GV. The Borg scale as an important tool of self-monitoring and self-regulation of exercise prescription in heart failure patients during hydrotherapy: a randomized blinded controlled trial. Circ J. 2009;73(10):1871-6.

9. O'Connor CM, Whellan DJ, Lee KL, Keteyian SJ, Cooper LS, Ellis SJ, et al. Efficacy and safety of exercise training in patients with chronic heart failure HF-ACTION randomized controlled trial. JAMA. 2009;301(14):1439-50.

10. Monti RJ, Roy RR, Edgerton VR. Role of motor unit structure in defining function. Muscle Nerve. 2001;24(7):848-66.

Artigo recebido em 22/06/10; revisado recebido em 21/10/10; aceito em 05/11/10.

  • 1. Finsterer J, Stöllberger C. The heart in human dystrophinopathies. Cardiology. 2003;99(1):1-19.
  • 2. Campbell KP. Three muscular dystrophies: loss of cytoskeleton-extracellular matrix linkage. Cell. 1995;80(5):675-9.
  • 3. Hoogerwaard EM, Voogt WG, Wilde AM, van der Wouw PA, Bakker E, van Ommen GI, et al. Evolution of cardiac abnormalities in Becker muscular dystrophy over a 13-year period. J Neurol. 1997;244(10):657-63.
  • 5. Liguori R, Fuglsang-Frederiksen A, Nix W, Fawcet PR, Andersen K. Electromyography in myopathy. Neurophysiol Clin. 1997;27(3):200-3.
  • 6. Sveen ML, Jeppesen TD, Hauerslev S, Kober L, Krag TO, Vissing J. Endurance training improves fitness and strength in patients with Becker muscular dystrophy. Brain. 2008;131(Pt 11):2824-31.
  • 7. Hermens HJ, Freriks B, Disselhorst-Klug C, Rau G. Development of recommendations for SEMG sensors and sensor placement procedures. J Electromyogr Kinesiol. 2000;10(5):361-74.
  • 8. Carvalho VO, Bocchi EA, Guimarães GV. The Borg scale as an important tool of self-monitoring and self-regulation of exercise prescription in heart failure patients during hydrotherapy: a randomized blinded controlled trial. Circ J. 2009;73(10):1871-6.
  • 9. O'Connor CM, Whellan DJ, Lee KL, Keteyian SJ, Cooper LS, Ellis SJ, et al. Efficacy and safety of exercise training in patients with chronic heart failure HF-ACTION randomized controlled trial. JAMA. 2009;301(14):1439-50.
  • 10. Monti RJ, Roy RR, Edgerton VR. Role of motor unit structure in defining function. Muscle Nerve. 2001;24(7):848-66.
  • Correspondência:

    Guilherme Veiga Guimarães
    Rua Dr. Baeta Neves, 98 - Pinheiros
    05444-050 - São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Revisado
      21 Out 2010
    • Recebido
      22 Jun 2010
    • Aceito
      05 Nov 2010
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