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Caso 1: mulher de 58 anos, hipertensa e com nódulos hepáticos, apresentou dispneia e derrame pleural uma semana após episódio de tromboembolia pulmonar

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Caso 1 - mulher de 58 anos, hipertensa e com nódulos hepáticos, apresentou dispneia e derrame pleural uma semana após episódio de tromboembolia pulmonar

Tânia Marie Ogawa; Ricardo Mauro Ghetti Cabral; Vera Demarchi Aiello

Instituto do Coração (InCor) HC-FMUSP, São Paulo, Brasil

Correspondência Correspondência: Vera D. Aiello InCor - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP E-mail: anpvera@incor.usp.br

Palavras-chave: Trombose venosa, derrame pleural, choque, parada cardíaca, pneumotórax.

Mulher de 58 anos de idade apresentou há três anos (março 2002) episódio de dor retroesternal sem relação com esforços. Na época procurou atendimento médico, foi submetida a avaliação clínica e laboratorial e recebeu a informação diagnóstica de ser portadora de hipertensão arterial e hipercolesterolemia. Recebeu orientação dietética e foram prescritos 20 mg diários de sinvastatina.

Em junho de 2005, apresentou vômitos e dor abdominal. Procurou atendimento médico em outro Serviço. Nesse Serviço foi submetida a avaliação laboratorial (22 jun. 2005), que revelou colesterol 132 mg/dL (HDL-colesterol 54 mg/dL, LDL-colesterol 70 mg/dL), triglicérides 41 mg/dL; glicose 116 mg/dL. A ressonância magnética (22 jun. 2005) revelou nódulos em ambos os lobos hepáticos, um dos quais com realce centrípeto e homogeneização tardia, compatível com hemangioma. A vesícula biliar estava normal, não havia alteração do pâncreas, do baço, dos rins, dos vasos ou adenomegalia. Ainda na mesma internação, a colonoscopia (19 jul. 2005) revelou hemorroidas, sem outras alterações em cólon e reto. Foi feito o diagnóstico de hemangioma hepático e a paciente recebeu alta hospitalar.

Cerca de dois meses após, houve aumento de volume do membro inferior esquerdo e a paciente procurou atendimento médico de emergência neste Hospital (31 ago. 2005).

O exame físico (31 ago. 2005) revelou pressão arterial de 160/100 mmHg, frequência cardíaca 100 bpm. O exame dos pulmões, do coração e do abdome não demonstrou alterações. Havia edema de membro inferior esquerdo.

O eletrocardiograma (31 ago. 2005) revelou taquicardia sinusal, frequência 116 bpm e discretas alterações de repolarização ventricular (fig. 1).


Os exames laboratoriais (2 set. 2005) revelaram hemoglobina 12,4 g/dL, hematócrito 38%, leucócitos 20700/mm3 (2% metamielócitos, 12% bastões, 67% segmentados, 1% basófilos, 5% linfócitos e 13% monócitos), plaquetas 244000/mm3, creatinina 0,4 mg/dL, ureia 17 mg/dL, potássio 4 mEq/L, sódio 133 mEq/L, INR 1,3 e relação de tempos tromboplastina parcial ativada 1,39.

A radiografia de tórax revelou elevação de cúpula diafragmática direita.

O exame por ultrassonografia (1º set. 2006) foi sugestivo de trombose recente de veias femoral comum e superficial e da veia poplítea esquerda.

Foi feito o diagnóstico de trombose venosa profunda e iniciada enoxaparina administrada por via subcutânea.

O ecocardiograma (6 set. 2005) revelou ventrículo esquerdo de dimensões normais (43 mm na diástole e 25 mm na sístole), fração de ejeção 73%, aorta, átrios esquerdo e direito e ventrículo direito normais; não havia sinais de hipertensão pulmonar.

A tomografia de tórax de alta resolução (8 set. 2005) revelou redução da vascularização na topografia da artéria interlobar descendente direita e esquerda e derrame pleural direito com opacidade irregular do parênquima adjacente.

Foi feito o diagnóstico de tromboembolismo pulmonar.

Foi associado o tratamento anticoagulante por via oral com varfarina e tratamento anti-hipertensivo. A paciente recebeu alta depois de 15 dias, com prescrição de meias elásticas, enalapril 10 mg, atenolol 50 mg e varfarina 2,5 mg diários.

A ultrassonografia de abdome (20 set. 2006) revelou fígado de dimensões aumentadas e bordas rombas, textura heterogênea. Foram diagnosticados múltiplos nódulos bilobares medindo, o maior deles, cerca de 1,4 cm. Observou-se ainda extensa área hipoecogênica no lobo direito, que poderia ser secundária a distúrbio perfusional.

Nove dias depois, a paciente retornou ao pronto-socorro com quadro de dispneia intensa, mesmo em repouso e dor abdominal.

O exame físico (23 set. 2006) revelou paciente taquipneica, pressão arterial 110/ 70 mmHg, frequência cardíaca 72 bpm. O exame dos pulmões revelou semiologia de derrame pleural, comprometendo 2/3 inferiores do hemitórax direito. O exame do coração foi normal. O exame mostrava ainda abdome distendido e doloroso à palpação de hipocôndrio direito e edema de membro inferior esquerdo.

O eletrocardiograma (26 set. 2005) revelou ritmo sinual, 69 bpm, alterações de repolarização ventricular (fig. 2).


A radiografia de tórax revelou grande derrame pleural à direita.

Os exames laboratoriais (23 set. 2005) revelaram leucocitose (tab. 1).

A ultrassonografia de abdome (26 set. 2006) revelou hepatomegalia, sem outras alterações.

A tomografia de tórax (26 set. 2005) revelou volumoso derrame pleural à direita, com atelectasia subtotal do pulmão. O fígado revelou dimensões aumentadas e com densidade do parênquima heterogênea.

O hemitórax direito foi puncionado (27 set. 2005) com saída de 1.700 mL de líquido amarelo citrino. Os exames bioquímicos no líquido pleural revelaram: glicose 51 mg/dL, desidrogenase lática 508 UI/L, albumina 1,3 g/dL.

Houve aparecimento de icterícia, e dois dias mais tarde a paciente acordou prostrada, com pressão arterial inaudível e cianose das extremidades. Foi inserido cateter intravenoso central pela veia subclávia direita.

Algumas horas após, apresentou hipóxia seguida de parada cardiorrespiratória em atividade elétrica sem pulso durante a intubação orotraqueal. Havia pneumotórax à direita, que já havia sido diagnosticado na radiografia controle da instalação do cateter venoso central. Quando o pneumotórax foi aliviado por punção no segundo espaço intercostal, houve reversão da parada. Posteriormente, o pneumotórax foi tratado com drenagem no quarto espaço intercostal direito.

A evolução laboratorial é apresentada na tabela 1.

A paciente evoluiu com choque e foi iniciada antibioticoterapia de amplo espectro inclusive para anaeróbios (ampicilina, metronidazol e ceftriaxone). Houve necessidade de doses crescentes de noradrenalina para manutenção da pressão arterial. A paciente evoluiu com anúria e acidose metabólica intensa (lactato 100 mg/dL, pH 7,08, paCO2 19 mmHg, saturação de O2 95,5%, paO2 135 mmHg, bicarbonato 5,3 mEq/L e excesso de bases -23 mEq/L). Foi iniciada hemodiálise lenta, contudo houve agravamento da hipotensão arterial e a hemodiálise foi interrompida.

Por causa da anemia (tab. 1), a paciente recebeu várias unidades de concentrado de hemácias. Na manhã seguinte (1º out. 2005), apresentou parada cardíaca irreversível em assistolia.

Aspectos clínicos

Mulher de 58 anos, hipertensa e dislipidêmica, com achado de hemangioma hepático em exame de imagem, procurou serviço de emergência por dor abdominal e vômitos.

O hemangioma hepático é o tumor hepático benigno mais comum, com incidência que varia de 0,4% a 20% em séries de necropsia1. É identificado geralmente como achado incidental de exames de imagem ou laparoscopias em mulheres (60% a 80% dos casos) entre a terceira e a quinta décadas de vida - uma faixa etária pouco mais jovem que a paciente em questão. A grande maioria dos hemangiomas é pequena, solitária e não causa sintomas. Lesões maiores de 4 cm e 10 cm são sintomáticas, respectivamente, em 40% e 90% dos casos. A dor em andar superior do abdome é o sintoma mais frequente, sendo resultado de infartos e necrose, pressão sobre estruturas adjacentes, distensão da cápsula hepática, ou alto fluxo sanguíneo. Sintomas compressivos podem ocorrer em hemangiomas gigantes1.

A Ressonância Magnética (RNM) dessa paciente revelou nódulos em ambos os lobos hepáticos, um deles apresentando realce centrípeto tardio e homogeneização tardia, que é característico do hemangioma hepático aos exames de imagem (ressonância magnética, tomografia computadorizada de abdome e ultrassonografia abdominal com Doppler colorido), que mostram captação centrípeta precoce, periférica e progressiva com fase venosa retardada ao exame contrastado. Na maioria dos pacientes com hemangioma, os sintomas gastrointestinais são devidos a outras causas, como síndromes dispépticas e gastroenterites.

Os hemangiomas são geralmente solitários, mas tumores múltiplos podem ocorrer em até 10% dos pacientes1. Normalmente se localizam no lobo hepático direito e os tumores maiores podem ser pedunculados. Nessa paciente há nódulos em ambos os lobos hepáticos, porém somente um deles apresentou padrão clássico de hemangioma aos exames de imagem. No entanto, como já exposto, não se pode afastar a possibilidade de que os demais nódulos correspondam a hemangiomas múltiplos de diferentes tamanhos.

Como diagnóstico diferencial impõem-se os demais tumores benignos do fígado, destacando-se: 1) Adenoma hepatocelular: pouco provável para essa paciente, visto que está claramente associado ao uso de anticoncepcionais e mulheres em idade fértil, e a RNM mostra padrão de captação arterial, diferente do hemangioma; 2) Hiperplasia nodular focal: também são lesões únicas, porém em 7% a 20% dos casos são múltiplas2. Em 5% a 10% dos casos associa-se ao hemangioma hepático, ocorrendo geralmente em mulheres na mesma faixa etária, e sua relação com o uso de anticoncepcionais orais ainda não está bem estabelecida. Os exames de imagem mostram sinais arteriais no interior do tumor, diferente da captação periférica e centrípeta que ocorre no hemangioma e que foi o padrão apresentado na RNM da paciente.

Outros diagnósticos diferenciais são os tumores malignos primários do fígado (pouco provável, pelo menos nessa fase da evolução, pois a paciente não apresenta sintomas consumptivos e em mais de 80% dos casos estão associados a cirrose hepática) e metástases hepáticas de neoplasias de outros sítios3-7. Pensando-se na possibilidade de que os nódulos no fígado pudessem corresponder a metástases hepáticas e associando-se os sintomas gastrointestinais da paciente, a paciente foi submetida a uma colonoscopia à procura de neoplasia de cólon, que revelou somente doença hemorroidária.

Na evolução a paciente recebeu alta hospitalar com seguimento clínico do hemangioma. Essa conduta é amplamente respaldada pela literatura, visto que a maioria dos pacientes não se torna sintomática e nem apresenta crescimento ou complicações do tumor no seguimento em longo prazo. A terapêutica cirúrgica é indicada somente nos pacientes muito sintomáticos ou na vigência de complicações (2% dos casos)1.

Após dois meses, a paciente procurou novamente o atendimento de emergência por causa de edema e aumento de volume do membro inferior esquerdo. Apresentava pressão arterial elevada (160 x 100 mmHg) e taquicardia (FC 116 bpm), que se mostrou sinusal ao eletrocardiograma (ECG). Não apresentava outras alterações significativas ao exame físico.

Nesse caso, impõe-se o diagnóstico de trombose venosa profunda do membro inferior esquerdo, que foi confirmado pela ultrassonografia com Doppler venoso, sendo prontamente iniciada terapia anticoagulante com heparina. O ECG mostrava taquicardia sinusal (FC 116 bpm) com discreta alteração de repolarização ventricular em parede inferior.

Os exames complementares mostravam leucocitose com desvio à esquerda, até metamielócitos ao hemograma e radiografia de tórax com elevação da cúpula diafragmática direita. Pelo somatório dos dados anteriores foi realizada investigação para Tromboembolismo Pulmonar (TEP) com angiotomografia computadorizada que revelou TEP bilateral. O ecocardiograma não mostrava sinais de sobrecarga de câmaras direitas ou hipertensão pulmonar8,9.

Em casos de TEP, o ECG não costuma confirmar o diagnóstico, sendo o achado mais comum a taquicardia sinusal (achado pouco específico). Mesmo em casos de TEP maciço o ECG pode ser completamente normal. A leucocitose é um achado inespecífico que pode ocorrer no TEP. Não existem dados na literatura sobre qual o nível de aumento dos leucócitos aceitável no TEP. Sabe-se que em casos de estresse ou reação inflamatória aguda podem-se ter contagens tão elevadas quanto 25.000 leuc/mm3. A leucocitose secundária à reação de estresse ocorre por mobilização dos leucócitos da periferia e maior liberação dos leucócitos da medula óssea, por efeito de catecolaminas ou glicocorticoides. O dado mais importante nesse caso é a evolução, com queda rápida da contagem dos leucócitos - dado que não está disponível no caso. No entanto, um aumento de 20.700 leucócitos/mm3 com aparecimento de formas jovens na periferia sempre deve levantar a suspeita de processo infeccioso agudo. A ausência de outros dados para corroborar a hipótese de infecção, como febre e queda do estado geral, além da boa evolução até a alta hospitalar praticamente afastam o diagnóstico de infecção10.

A radiografia de tórax é um exame inicial muito utilizado para se afastar diagnósticos diferenciais de TEP. No caso, a elevação da cúpula diafragmática direita, correlacionada com os dados prévios da paciente, poderia ser decorrente de infarto pulmonar secundário ao TEP (sinal de Hampton); ou levantar a suspeita de processo expansivo ou inflamatório em hipocôndrio direito. Porém, sem outras alterações de exame físico ou quadro clínico não podemos estabelecer definitivamente esse diagnóstico. O pequeno derrame pleural à direita visto à tomografia é perfeitamente compatível com o diagnóstico já estabelecido de TEP, sendo um achado inespecífico10.

O tratamento do TEP foi realizado com terapia anticoagulante, inicialmente com heparina de baixo peso molecular e, após, com varfarina. No caso dessa paciente, não havia indicação de fibrinolítico, pois ela estava hemodinamicamente estável, oligossintomática, e ao ecocardiograma não apresentava disfunção de câmaras cardíacas direitas. É importante salientar que a presença de hemangioma hepático não é contraindicação para realização do trombolítico caso houvesse necessidade; apenas malformações vasculares de localização cerebral constituem contraindicação absoluta9-15.

É ainda interessante notar que essa paciente não apresenta, até o momento, fatores de risco clássicos para TVP e TEP, exceto pela idade maior que 40 anos. Não há descrição de uso de anticoncepcionais ou uso de terapia de reposição hormonal, comuns nessa idade. Não há relação descrita na literatura entre hemangiomas hepáticos e trombose; portanto, esses não se constituem um fator de risco. Nesse momento, deve-se pensar em duas hipóteses: 1) Os nódulos hepáticos da paciente correspondem à neoplasia maligna; ou 2) Essa paciente apresenta alguma trombofilia. Como a história clínica e os exames evidenciam tumores de localização hepática, deve-se iniciar pesquisa de neoplasia maligna de localização hepática.

Ambulatorialmente, a paciente realizou um exame ultrassonográfico do abdome, que revelou fígado com dimensões aumentadas, aspecto heterogêneo e com múltiplos nódulos. Acrescenta-se que havia ainda extensa área hipoecogênica no lobo hepático direito que poderia corresponder a distúrbio perfusional.

Das neoplasias malignas hepáticas, temos que considerar alguns diagnósticos diferenciais: 1) Angiossarcoma hepático: é um tumor muito raro e que apresenta grande heterogeneidade à tomografia e à RNM; seu curso é rápido e está associado à exposição a arsênicos. Portanto, de baixa probabilidade nesse caso; 2) Linfoma primário do fígado: raríssimo e não apresenta realce vascular à RNM, diferente do padrão apresentado pela paciente; 3) Colangiocarcinoma com invasão hepática: raríssimo nessa localização e quando invade o fígado tem localização mais central no parênquima; 4) Carcinoma hepatocelular: é o tumor primário de fígado mais comum e está associado a cirrose hepática em 80% dos casos. Apresenta rápida evolução, com sobrevida média de 6 a 20 meses após o diagnóstico. A paciente não apresenta condições classicamente associadas ao desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (infecções por vírus B e C da hepatite, etilismo, hemocromatose, exposição a toxinas exógenas ou uso de anticoncepcionais)5. Em áreas não endêmicas, a faixa etária mais comum de aparecimento é de 70 a 80 anos de idade, e a proporção homem/mulher é de 2:1. Portanto, apesar de poder se apresentar como múltiplos nódulos hepáticos e com realce vascular, a epidemiologia não fortalece essa hipótese. Nessa situação, a coleta de alfafetoproteína poderia auxiliar na investigação - valores maiores que 500 são altamente sugestivos de carcinoma hepatocelular; 5) Carcinoma fibrolamelar: é uma variante do carcinoma hepatocelular que pode ser encontrada em pessoas mais jovens com média de idade de 29 anos; não se relaciona ao uso de anticoncepcionais orais ou infecções por vírus B ou C e quase sempre surge em um fígado não cirrótico. Geralmente se apresenta como massa solitária lobulada e calcificada. A ultrassonografia mostra lesões hiperecoicas homogêneas e a RNM revela captação vascular conforme demonstrado nesse caso. Em 55% dos casos apresenta cicatriz central. Esses dados não são compatíveis com os exames dessa paciente; 6) Lesões metastáticas: são a principal causa de tumor hepático maligno. O achado à ultrassonografia é variável, e geralmente as lesões são múltiplas (98% dos casos), pequenas e acometem os dois lobos em 77% das vezes. As principais neoplasias que levam a metástases hepáticas, em ordem decrescente de prevalência, são: cólon, estômago, pâncreas, mama e pulmão. Alguns tipos de tumores podem levar a metástases hepáticas precocemente, mesmo sem sintomas relacionados ao tumor primário.

Nove dias depois da ultrassonografia, a paciente retornou ao pronto-socorro com quadro de dispneia intensa e dor abdominal. Apresentava derrame pleural importante e leucocitose. Diante desse quadro, foi realizada punção do derrame pleural, com a finalidade de pesquisar as características do líquido pleural e proporcionar um alívio respiratório à paciente.

Os derrames pleurais podem surgir secundariamente a doenças da própria pleura, doenças pulmonares adjacentes ou doenças sistêmicas. Os transudatos comumente surgem secundariamente a doenças sistêmicas, como insuficiência cardíaca, síndrome nefrótica, doenças que cursam com hipoalbuminemia, entre outros. Os exsudatos podem surgir associados a neoplasias, infecções, doenças autoimunes, doenças do sistema linfático, movimento de líquido do abdome para o espaço pleural, entre outros. Alguns parâmetros são utilizados para a diferenciação entre transudato e exsudato, como relação entre proteínas do líquido e proteínas séricas (se maior que 0,5 sugere exsudato), relação entre DHL do líquido e DHL sérico (se maior que 0,6 sugere exsudato) e valor isolado de DHL (se maior que 2/3 do limite superior da normalidade para DHL sérico sugere exsudato). A análise da glicose no líquido também é importante no diagnóstico: se glicose no líquido < 60 ou relação entre glicose no líquido e glicemia < 0,5, as hipóteses diagnósticas se reduzem a pleurite reumática; pleurite lúpica; derrame neoplásico; empiema ou derrame parapneumônico complicado; tuberculose pleural e ruptura esofágica16-20.

O derrame pleural da paciente caracteriza-se como um exsudato com glicose baixa. Não apresentou febre e não tinha história de doenças reumatológicas previamente, tornando as hipóteses de pleurite lúpica ou reumática e derrame parapneumônico menos prováveis. Nesse caso, o pH, a amilase e a ADA (Adenosina Deaminase) no líquido e a análise celular contribuiriam para estreitar ainda mais as hipóteses diagnósticas. Ficamos, então, com o diagnóstico provável de derrame pleural neoplásico20.

O derrame pleural neoplásico, na maioria das vezes, é causado por metástases. Os tumores primários associados são, em ordem decrescente de prevalência, pulmão, mama, linfoma, câncer de ovário e mesotelioma maligno.

O fato de a paciente apresentar abdome distendido e doloroso com dor à palpação de hipocôndrio direito leva, obrigatoriamente, a se pensar em processo agudo de origem abdominal, com aumento do tamanho do fígado e distensão da cápsula de Glisson. Como a paciente estava em uso de anticoagulante oral e apresentava tempo de protrombina alargado (INR 3,7), devemos pensar em sangramento de origem hepática; porém, a tomografia computadorizada do mesmo dia não revelou presença de sangue na topografia do fígado. Como outras hipóteses, temos: 1) Congestão hepática, porém a paciente não apresentava cirrose ou outros sinais de hipertensão portal; 2) Infarto hepático levando a aumento, inflamação e edema do parênquima, compatível com a imagem tomográfica, porém não temos disponível dados de transaminases da entrada, que costumam estar bastante elevadas. Na evolução, porém, a paciente apresenta níveis pouco elevados de AST e ALT, o que torna a hipótese pouco provável; 3) Aumento da massa tumoral com compressão vascular e das vias biliares.

A paciente evoluiu com quadro de choque, apresentou parada cardiorrespiratória secundária a pneumotórax, com reversão após manobras de ressuscitação. Apresentou choque refratário a agentes vasoativos e queda da hemoglobina sérica sem exteriorização de sangramento. Apresentou leucocitose com desvio à esquerda e plaquetopenia. Houve elevação de enzimas hepáticas e canaliculares, além de aumento de bilirrubinas.

Houve surgimento de quadro de choque na paciente dois dias após pleurocentese com retirada de 1.700 mL de líquido pleural. Nessa situação, uma das causas que devem ser aventadas é a possibilidade de complicação da punção torácica. Houve passagem de cateter venoso central, seguido por Parada Cardiorrespiratória (PCR) e, novamente, a hipótese de pneumotórax iatrogênico deve ser aventada. Após punção pleural, paciente retorna à circulação espontânea. Evoluiu com quadro de choque que, nesse momento, poderia ser causado por resposta inflamatória sistêmica pós-PCR, além das outras causas já conhecidas de choque (séptico, cardiogênico etc.). A presença de anemia e plaquetopenia associada a aumento do tempo de protrombina faz surgir a hipótese de Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD), sangramento ou falência hepática.

O sítio mais provável de sangramento é o tumor hepático decorrente de necrose intratumoral secundária à hipoperfusão tecidual pelo choque. A hipótese de sangramento pelo trato gastrointestinal ou para a cavidade abdominal fica enfraquecida, pois dificilmente um sangramento com tamanha queda de Hb não apresenta exteriorização ou sinais de irritação peritoneal.

Como causa da CIVD, surgem três hipóteses mais importantes: 1) Síndrome de Kasabach-Merrit, que é uma coagulopatia por consumo, intratumoral, apresentada em alguns casos de hemangiomas hepáticos gigantes, que não é o caso dessa paciente; 2) CIVD secundária a infecção/sepse. Há de pensar em colangite para essa paciente em razão do aumento das enzimas canaliculares e bilirrubinas, associado a dor abdominal, toxemia e leucocitose, mesmo sem febre; 3) Síndrome de resposta inflamatória sistêmica pós-PCR, que leva a choque circulatório de padrão hemodinâmico distributivo e pode justificar todas as alterações apresentadas pela paciente, incluindo a falência hepática21.

(Dra. Tânia Marie Ogawa; Dr. Ricardo Mauro Ghetti Cabral)

Hipótese diagnóstica

A hipótese diagnóstica mais provável é de metástases hepáticas secundárias à neoplasia primária de foco indefinido. Associando-se ao fato de a paciente ter apresentado derrame pleural, sugere-se que o sítio primário seja pulmão ou mama.

(Dra. Tânia Marie Ogawa; Dr. Ricardo Mauro Ghetti Cabral)

Necropsia

O principal achado da necropsia foi uma neoplasia que acometia fígado, pâncreas e pulmões. A maior massa neoplásica situava-se no fígado, que apresentava grande nódulo necrótico no lobo direito e múltiplos nódulos periféricos medindo até 2 cm de diâmetro (fig. 3). Tais massas resultaram em acentuado aumento de volume hepático (peso = 4.028 g) e firmes aderências com o diafragma, além de atrofia por compressão da suprarrenal direita. Na cauda do pâncreas existia área irregular do parênquima com aspecto homogêneo (fig. 4) e esbranquiçado, e nos pulmões encontramos múltiplos pequenos nódulos subpleurais de 0,5 cm de diâmetro em média (fig. 5).




O padrão histológico era de adenocarcinoma, com aspecto tubular moderadamente diferenciado no fígado (fig. 6) e pulmões (fig. 7) e padrão de células em "anel de sinete" no pâncreas (fig. 8).




Havia metástases de adenocarcinoma para linfonodos mesentéricos e implante tumoral em parede muscular gástrica na região correspondente ao piloro.

Em particular, a mucosa gástrica, a vesícula biliar, a papila de Vater e os ductos biliares extra-hepáticos não apresentavam comprometimento neoplásico.

Encontramos ainda trombose da artéria esplênica (fig. 4) e trombose de veias dos membros inferiores, de acordo com os dados clínicos

Não foram identificados infartos pulmonares recentes ou em organização e nem sinais de tromboembolismo pulmonar prévio.

Segmentos de intestino delgado (fig. 9) apresentavam sinais de isquemia recente e os rins mostravam necrose cortical bilateral.


O coração pesou 320 g e não mostrava alterações macro ou microscópicas significativas.

(Dra. Vera Demarchi Aiello)

Diagnósticos anatomopatológicos

Adenocarcinoma de sítio primário indefinido (provável colangiocarcinoma - ver comentários a seguir). Provável acometimento metastático do pâncreas. Metástases neoplásicas subpleurais, para linfonodos mesentéricos e parede muscular gástrica. Trombose venosa profunda em membros inferiores. Necrose cortical renal bilateral e necrose isquêmica de segmentos do intestino delgado, sem identificação de trombose e/ou embolia para as artérias respectivas.

(Dra. Vera Demarchi Aiello)

Comentários

O sítio primário da neoplasia não pôde ser esclarecido com segurança, mas a julgar pelas grandes dimensões da massa hepática é mais provável que se trate de um colangiocarcinoma. Não se pode afastar completamente a possibilidade de carcinoma pancreático primário e múltiplas metástases hepáticas. Os marcadores imuno-histoquímicos disponíveis atualmente não conseguem distinguir entre esses dois tipos de neoplasia epitelial.

A trombose em artéria esplênica, em veias de membros inferiores e o achado de isquemia mesentérica e renal são provavelmente a manifestação de síndrome paraneoplásica. Embora não tenhamos documentado do ponto de vista anatomopatológico o episódio de tromboembolismo pulmonar clinicamente diagnosticado, esse também é parte desta mesma síndrome.

Em um estudo de mais de 500 mil casos de câncer, pesquisadores do Registro de Câncer da Califórnia identificaram e quantificaram eventos de tromboembolismo venoso antes e após o diagnóstico da neoplasia22. Verificaram que 0,11% dos casos de câncer estavam associados com esse tipo de evento dentro do período de um ano do diagnóstico da neoplasia. Dentre os casos com câncer metastático, a razão de incidência padronizada era de 2,3, enquanto para os outros estágios da neoplasia essa razão era de 1,07. Verificaram ainda que havia sete tipos de neoplasia maligna associadas de forma significativa a uma elevada razão de incidência padronizada de tromboembolismo venoso, a saber: leucemia mieloide aguda, linfoma não-Hodgkin, carcinomas renais, ovarianos, pancreáticos, gástricos e pulmonares.

(Dra. Vera Demarchi Aiello)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br) Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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  • Correspondência:

    Vera D. Aiello
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012
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