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Manifestação rara de edema agudo de pulmão associado à miocardite lúpica aguda

Resumos

O lupus eritematoso sistêmico (LES) é a mais comum das doenças auto-imunes sistêmicas, ocorrendo com maior freqüência no sexo feminino, usualmente na faixa etária entre 16 e 55 anos1,2. Embora os rins classicamente sejam os órgãos mais acometidos no LES, o coração e a circulação cardiopulmonar também podem ser afetados de forma significativa3. Nesse contexto, a ocorrência de edema agudo de pulmão associado à miocardite lúpica é rara e de tratamento imunossupressor específico ainda incerto.

Edema pulmonar; miocardite; lupus eritematoso sistêmico


Systemic Lupus Erythematosus (SLE) is the most common systemic autoimmune disease, occurring more frequently in women, usually aged between 16 and 55 years1,2. Although classically the kidneys are the organs most affected in SLE, cardiopulmonary circulation and the heart may also be affected significantly3. In this context, the occurrence of acute pulmonary edema associated with lupus myocarditis is rare and specific immunosuppressive therapy remains unclear.

Pulmonary Edema; Myocarditis; Lupus Erythematosus; Systemic


RELATO DE CASO

Manifestação rara de edema agudo de pulmão associado à miocardite lúpica aguda

Alexandre de Matos Soeiro; Fabrício Sanchez Bergamin; Maria Carolina Feres de Almeida; Carlos Vicente Serrano Jr.; Breno Alencar de Araripe Falcão; Fernando Ganem

Instituto do Coração (InCor)- HCFMUSP, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alexandre de Matos Soeiro Rua Maranhão 680, ap. 81, Santa Paula 09530-440 - São Caetano do Sul, SP, São Paulo, Brasil E-mail: alexandre.soeiro@bol.com.br

RESUMO

O lupus eritematoso sistêmico (LES) é a mais comum das doenças auto-imunes sistêmicas, ocorrendo com maior freqüência no sexo feminino, usualmente na faixa etária entre 16 e 55 anos1,2. Embora os rins classicamente sejam os órgãos mais acometidos no LES, o coração e a circulação cardiopulmonar também podem ser afetados de forma significativa3. Nesse contexto, a ocorrência de edema agudo de pulmão associado à miocardite lúpica é rara e de tratamento imunossupressor específico ainda incerto.

Palavras-chave: Edema pulmonar, miocardite, lupus eritematoso sistêmico.

Introdução

O lupus eritematoso sistêmico (LES) é a mais comum das doenças auto-imunes sistêmicas, ocorrendo com maior freqüência no sexo feminino, usualmente na faixa etária entre 16 e 55 anos1,2. Embora os rins classicamente sejam os órgãos mais acometidos no LES, o coração e a circulação cardiopulmonar também podem ser afetados de forma significativa3. Nesse contexto, a ocorrência de edema agudo de pulmão associado à miocardite lúpica é rara e de tratamento imunossupressor específico ainda incerto.

Relato de caso

Trata-se de paciente de 24 anos, sexo feminino, branca, natural e procedente da cidade de São Paulo, que compareceu ao serviço de emergência com queixa de febre, dor torácica difusa e dispnéia intensa há 1 dia. Referia quadro prévio de poliartrite aditiva, astenia, alopécia, mialgia e lesão eritematosa em face, permanecendo internada em outro serviço com provável diagnóstico de LES há 10 dias. Desde então fazia uso de prednisona 60mg/dia e hidroxicloroquina 400mg/dia. Negava hipertensão arterial sistêmica e demais comorbidades.

Ao exame físico da admissão encontrava-se em mal estado geral, taquicárdica (frequência cardíaca=120 batimentos por minuto), taquidispneica (frequência respiratória=32 incursões por minuto), com uso de musculatura acessória, saturação arterial periférica de oxigênio de 87%, pressão arterial de 130x70 mmHg, ictus não visível e palpável com uma polpa digital no quarto espaço intercostal normoposicionado sob a linha hemiclavicular esquerda, presença de bulhas rítmicas com atrito pericárdico audível em mesossistole e estertores finos crepitantes difusos bilateralmente à ausculta pulmonar. Ausência de frêmitos ã palpação cardíaca. Pulsos encontravam-se presentes bilateralmente, amplos e simétricos. Estase jugular presente bilateralmente à 45 graus. Nesse momento foi feito diagnóstico de insuficiência respiratória aguda por provável edema agudo pulmonar, optando-se por entubação orotraqueal, suporte ventilatório mecânico, administração de furosemida e nitroprussiato de sódio endovenoso.

Solicitado eletrocardiograma que mostrava taquicardia sinusal. Radiografia de tórax com cefalização de trama vascular, congestão venosa perihilar, presença de parênquima pulmonar com edema intersticial difuso e área cardíaca com aumento moderado (figura 1). Ecocardiograma trans-torácico mostrou aumento discreto do átrio esquerdo, fração de ejeção de ventrículo esquerdo de 45% às custas de hipocinesia difusa, , insuficiência mitral de grau moderado e derrame pericárdico moderado. Nesse momento foi considerado o diagnóstico de miopericardite aguda secundária ao LES em atividade. Exames laboratoriais corroboraram a hipótese de LES em atividade mostrando leucopenia (3800 leucócitos/mm3), linfopenia (798 linfócitos/mm3), fator antinuclear (FAN) homogêneo > 1:320, anti-DNA positivo, proteína-C reativa de 92 mg/L, velocidade de hemossedimentação de 67 mm e níveis de complemento (C3 e C4) indetectáveis. Devido hipótese conjunta de atividade lúpica pulmonar, foi solicitada tomografia computadorizada de tórax que mostrou opacidades broncocêntricas, pequenas áreas de consolidação pulmonar, derrame pleural e extenso vidro fosco homogêneo bilateral (figura 2). Como complementação, realizado lavado broncoalveolar que mostrou padrão de hemorragia alveolar discreta, porém com ausência de macrófagos com hemossiderina à microscopia, pouco sugestivo da presença de atividade pulmonar.



Devido à gravidade do caso associada à disfunção miocárdica aguda, optado por iniciar pulsoterapia com metilprednisolona 1mg/Kg/dia por três dias consecutivos. Após dois dias a paciente apresentou melhora, sendo extubada, em uso de ventilação não invasiva intermitente, mantendo-se afebril, hemodinamicamente estável, com desaparecimento da taquicardia mantida, função renal preservada, sem outras intercorrências. A radiografia de tórax apresentava-se sem alterações. Repetido ecocardiograma trans-torácico que evidenciou recuperação importante da função cardíaca (fração de ejeção de ventrículo esquerdo de 56%) e derrame pericárdico mínimo. Observou-se aumento dos níveis de complemento e foi descartado acometimento renal após realização de proteinúria na urina de 24 horas sem alterações.

A paciente recebeu alta hospitalar assintomática, em uso de prednisona 60mg/dia, captopril 25mg 3x/dia, carvedilol 12,5mg 2x/dia, digoxina 0,25mg/dia, cloroquina 250mg/dia, ácido fólico 5mg/dia e sulfametoxazol 800mg + trimetoprima 160 mg 3x/semana. Devido ao acometimento cardíaco, optou-se por realização de pulsoterapia mensal com ciclofosfamida em nível ambulatorial

Discussão

O diagnóstico de LES foi realizado baseado nos critérios do American College of Rheumatology de 1997 e, portanto, estabelecido através da presença de serosite (derrames pleural e pericárdico), anti-dsDNA positivo, fator antinúcleo positivo e linfopenia.

Na literatura é descrita a presença de alguma forma de doença cardíaca em 30% a 89% dos pacientes com LES1. Sua patogênese ainda não está completamente elucidada, sendo atualmente considerada como resultado da deposição de imunocomplexos e ativação do complemento. A agressão pela doença auto-imune pode ocorrer como pericardite, miocardite, endocardite de Libman-Sacks, hipertensão arterial pulmonar e coronariopatia, devendo ser rapidamente reconhecida para estabelecimento de adequada imunossupressão junto à terapêutica cardiológica específica. O tratamento precoce pode contribuir para redução da mortalidade e morbidade na doença, de forma que a cardiopatia no LES é considerada a terceira maior causa de morte, atrás apenas da nefropatia e das infecções1. Atualmente, o uso crônico de corticosteroides associado à inflamação crônica própria da doença pode levar à aterosclerose precoce, suscitando maior número de casos de isquemia miocárdica nesse grupo de pacientes1.

A pericardite é a forma mais comum de acometimento cardíaco no LES, presente em até 25% dos pacientes. Geralmente, observam-se pequenos derrames pericárdicos em pacientes assintomáticos em até 54% dos pacientes2,3. Sinais como febre, taquicardia, dor subesternal e atrito pericárdico podem estar presentes, assim como alterações eletrocardiográficas, que de forma geral são indistinguíveis de outras formas de pericardite. A presença de derrame pericárdico importante e casos de tamponamento cardíaco são raros3. O derrame pericárdico apresenta remissão após o tratamento imunossupressor adequado, assim como no caso apresentando, podendo transformar-se em pericardite constritiva3,4.

Referente à miocardite aguda, o diagnóstico definitivo é anatomopatológico. No entanto, o mesmo não é necessário na grande maioria dos casos. A presença de dor torácica e taquicardia mantida desproporcional à presença de febre pode acorrer assim como relatado5. Já sinais e sintomas clínicos de insuficiência cardíaca como no caso apresentado são incomuns, estando presentes em apenas 5% a 10% dos pacientes1-3,5. Existe enorme dificuldade diagnóstica da miocardite principalmente devido à presença de outros fatores potencialmente responsáveis por dano miocárdico, tais como anemia, hipertensão infecção e retenção hídrica secundária à doença renal ou ao uso de corticóides1. Além disso, miocardiopatia em pacientes com LES pode ter causas distintas como isquemia miocárdica (provocada por arterite coronariana, aterosclerose precoce, trombose ou embolia) e secundária à insuficiência mitral ou aórtica2. A presença de disfunção renal poderia retardar o diagnóstico devido à retenção hídrica decorrente. Porém, a ausência de tal manifestação atribui toda a sintomatologia à disfunção miocárdica.

Como descrito anteriormente, a disfunção ventricular decorrente da miocardite lúpica geralmente é de leve intensidade, com sintomas escassos ou ausentes4. O ecocardiograma pode mostrar principalmente redução da fração de ejeção (presente em 81% dos pacientes) e aumento de câmaras cardíacas4,5.

Marcadores de atividade inflamatória podem estar elevados em casos de miocardite lúpica. Além disso, os níveis de complemento séricos costumam estar reduzidos, refletindo a atividade da doença. Dentre todos os marcadores, a presença de anti-DNA tem sido associada à miocardite lúpica2. Elevação sérica de marcadores de necrose miocárdica como creatinoquinase fração MB (CKMB) e/ou troponina pode ocorrer na miocardite aguda, mas como em outras etiologias sua alteração não está presente em todos os casos e não guarda relação direta com a gravidade do quadro clínico2,3. Em alguns estudos anticorpos antimiocárdicos foram observados no sangue de pacientes com LES, porém sua relação com a ocorrência de miocardite aguda ainda é incerta1,2,6.

O edema agudo de pulmão associado à miocardite aguda é raro. A boa resposta clínica ao tratamento direcionado com uso de diuréticos, vasodilatadores endovenosos e ventilação mecânica não invasiva, associada ao quadro clínico clássico e à imagem observada na radiografia de tórax reforçam o diagnóstico de edema agudo de pulmão no caso relatado. Parece haver associação entre congestão venosa pulmonar e derrame pleural à radiografia de tórax em até 73% dos casos, mesmo não havendo a manifestação de edema agudo pulmonar5. Além disso, mesmo a presença de hemorragia alveolar discreta relatada no lavado broncoalveolar também pode por si só ser secundária à congestão venosa pulmonar, uma vez que microscopicamente não se observou a presença de macrófagos com hemossiderina. A atividade lúpica pulmonar é mais incomum do que a atividade cardíaca, e geralmente mesmo após o tratamento adequado costuma deixar algum grau de acometimento permanente significativo principalmente sob a forma de doença pulmonar restritiva, algo que não acorreu nesse caso2. A própria evolução da radiografia de tórax com desaparecimento dos sinais relatados corrobora o diagnóstico de edema agudo de pulmão.

O tratamento descrito para casos de disfunção ventricular grave sintomática compreende o uso de doses elevadas de corticóide via oral por 7 a 14 dias, associado à terapêutica cardiológica específica2,4. No caso descrito, devido à gravidade do quadro clínico optou-se por se utilizar pulsoterapia com corticóide endovenoso, associado posteriormente à ciclofosfamida. Alguns estudos mostram reversão do acometimento cardíaco com essa abordagem mais agressiva mesmo sem a presença de edema agudo pulmonar2-5,7. Não há na literatura estabelecido o que deve ser feito nesses casos, principalmente devido à raridade da manifestação. Obteve-se um bom resultado, inclusive com reversão da disfunção miocárdica observada à ecocardiografia transtorácica. A reversão do dano miocárdico é relatada em até 89% dos pacientes após 6 meses de seguimento, tanto com o uso de corticóide como de imunoglobulina endovenosa7-9. Além disso, algumas séries de casos demonstram não haver reincidência do quadro mesmo após quatro anos5,10.

Conclusão

O presente caso mostra que em pacientes jovens com quadro sugestivo de edema agudo de pulmão, o diagnóstico de miocardite aguda deve ser considerado como diferencial. Conforme descrito anteriormente, o LES apresenta-se como importante patologia nesse contexto, e sintomas associados à doença devem ser pesquisados. A associação com pericardite e o achado de área cardíaca normal com disfunção ventricular corroboraram a hipótese inicial, permitindo o rápido diagnóstico e o emprego da terapêutica imunossupressora adequada com conseqüente reversão completa da disfunção miocárdica. Neste paciente o emprego de pulsoterapia com corticóide endovenoso mostrou-se eficaz e seguro para o tratamento da manifestação cardíaca extrema de miocardite lúpica provável.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 11/05/11

Revisado recebido em 08/08/11

Aceito em 20/09/11

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  • Endereço para correspondência:
    Alexandre de Matos Soeiro
    Rua Maranhão 680, ap. 81, Santa Paula
    09530-440 - São Caetano do Sul, SP, São Paulo, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Maio 2012

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2011
    • Aceito
      20 Set 2011
    • Revisado
      08 Ago 2011
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