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Análise de causalidade da relação entre sangramento e letalidade de Síndromes Coronarianas Agudas

Resumos

FUNDAMENTO: Eventos hemorrágicos em Síndromes Coronarianas Agudas (SCA) apresentam associação independente com óbito em registros multicêntricos internacionais. No entanto, essa associação não foi testada em nosso meio e a verdadeira relação causal entre sangramento e óbito não está plenamente demonstrada. OBJETIVO: Testar as hipóteses de que: (1) sangramento maior é preditor independente de óbito hospitalar em SCA; (2) a relação entre esses dois desfechos é causal. MÉTODOS: Incluídos pacientes com critérios pré-definidos de angina instável, infarto sem supradesnivelamento do ST ou infarto com supradesnivelamento do ST. Sangramento maior durante o internamento foi definido de acordo com os tipos 3 ou 5 da Classificação Universal de Sangramento. Regressão logística e análise da sequência de eventos foram utilizadas para avaliar a associação entre sangramento e óbito. RESULTADOS: Dentre 455 pacientes estudados, 29 desenvolveram sangramento maior (6,4%; 95%IC = 4,3-9,0%). Esses indivíduos apresentaram mortalidade hospitalar de 21%, comparados a 5,6% nos pacientes sem sangramento (RR = 4,0; 95%IC = 1,8-9,1; P = 0,001). Após ajuste para escore de propensão, sangramento maior permaneceu preditor de óbito hospitalar (OR = 3,34; 95%IC = 1,2-9,5; P = 0,02). Houve 6 óbitos dentre 29 pacientes que sangraram. No entanto, análise detalhada da sequência de eventos demonstrou relação causal em apenas um caso. CONCLUSÃO: (1) Sangramento maior é preditor independente de óbito hospitalar em SCA; (2) O papel do sangramento como marcador de risco predomina sobre seu papel de fator de risco para óbito. Essa conclusão deve ser vista como geradora de hipótese a ser confirmada por estudos de maior tamanho amostral. (Arq Bras Cardiol. 2012; [online].ahead print, PP.0-0)

Síndrome coronariana aguda; angina instável; infarto do miocárdio; hemorragia; hemorragia; hospitalização


BACKGROUND: Hemorrhagic events in Acute Coronary Syndromes (ACS) have been independently associated with death in international multicenter registries. However, that association has not been tested in Brazil and the true causal relationship between bleeding and death has not been completely shown. OBJECTIVE: To test the following hypotheses: (1) major bleeding is an independent predictor of in-hospital death in ACS; (2) the relationship between those two endpoints is causal. METHODS: This study included patients meeting predefined criteria of unstable angina, non-ST-segment elevation myocardial infarction or ST-segment elevation myocardial infarction. Major bleeding during hospitalization was defined according to the Bleeding Academic Research Consortium (types 3 or 5). Logistic regression and analysis of the sequence of events were used to assess the association between bleeding and death. RESULTS: Of the 455 patients studied, 29 experienced major bleeding (6.4%; 95% CI = 4.3-9.0%). They had in-hospital mortality of 21%, as compared with 5.6% of those not experiencing bleeding (RR = 4.0; 95% CI = 1.8-9.1; P = 0.001). After adjusting for the propensity score, major bleeding remained as a predictor of in-hospital death (OR = 3.34; 95% CI = 1.2-9.5; P = 0.02). Of the 29 patients who experienced bleeding, six died. However, the detailed analysis of the sequence of events showed causal relationship only in one case. CONCLUSION: (1) Major bleeding is an independent predictor of in-hospital death in ACS; (2) the role of bleeding as a risk marker overcomes that as a risk factor for death. This conclusion should be seen as a hypothesis generator to be confirmed by larger-sample studies. (Arq Bras Cardiol. 2012; [online].ahead print, PP.0-0)

Acute coronary syndrome; angina, unstable; myocardial infarction; hemorrhage; hemorrhage; hospitalization


Análise de causalidade da relação entre sangramento e letalidade de Síndromes Coronarianas Agudas

Luis Cláudio Lemos CorreiaI,II; Michael SabinoI,II; Mariana BritoI,II; Guilherme GarciaI,II; Mateus VianaII; J. Péricles EstevesIII; Márcia R. NoyaI,II

IEscola Bahiana de Medicina, Salvador - BA, Brasil

IIHospital São Rafael, Salvador - BA, Brasil

IIIHospital Português, Salvador - BA, Brasil

Endereço para correspondência Correspondência: Luis Cláudio Lemos Correia Av. Princesa Leopoldina, 19/402 - 40150-080 - Salvador - BA, Brasil E-mail: lccorreia@cardiol.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Eventos hemorrágicos em Síndromes Coronarianas Agudas (SCA) apresentam associação independente com óbito em registros multicêntricos internacionais. No entanto, essa associação não foi testada em nosso meio e a verdadeira relação causal entre sangramento e óbito não está plenamente demonstrada.

OBJETIVO: Testar as hipóteses de que: (1) sangramento maior é preditor independente de óbito hospitalar em SCA; (2) a relação entre esses dois desfechos é causal.

MÉTODOS: Incluídos pacientes com critérios pré-definidos de angina instável, infarto sem supradesnivelamento do ST ou infarto com supradesnivelamento do ST. Sangramento maior durante o internamento foi definido de acordo com os tipos 3 ou 5 da Classificação Universal de Sangramento. Regressão logística e análise da sequência de eventos foram utilizadas para avaliar a associação entre sangramento e óbito.

RESULTADOS: Dentre 455 pacientes estudados, 29 desenvolveram sangramento maior (6,4%; 95%IC = 4,3-9,0%). Esses indivíduos apresentaram mortalidade hospitalar de 21%, comparados a 5,6% nos pacientes sem sangramento (RR = 4,0; 95%IC = 1,8-9,1; P = 0,001). Após ajuste para escore de propensão, sangramento maior permaneceu preditor de óbito hospitalar (OR = 3,34; 95%IC = 1,2-9,5; P = 0,02). Houve 6 óbitos dentre 29 pacientes que sangraram. No entanto, análise detalhada da sequência de eventos demonstrou relação causal em apenas um caso.

CONCLUSÃO: (1) Sangramento maior é preditor independente de óbito hospitalar em SCA; (2) O papel do sangramento como marcador de risco predomina sobre seu papel de fator de risco para óbito. Essa conclusão deve ser vista como geradora de hipótese a ser confirmada por estudos de maior tamanho amostral. (Arq Bras Cardiol. 2012; [online].ahead print, PP.0-0)

Palavras-chave: Síndrome coronariana aguda, angina instável, infarto do miocárdio, hemorragia/complicações, hemorragia/prevenção & controle, hospitalização

Introdução

Indivíduos que desenvolvem angina instável ou infarto do miocárdio apresentam alto risco de complicações isquêmicas durante a fase aguda1,2. Dessa forma, condutas farmacológicas e intervencionistas agressivas são adotadas precocemente no intuito de minimizar a probabilidade de desfechos recorrentes, do tipo angina refratária, infarto ou morte cardiovascular3,4. No entanto, essas mesmas condutas aumentam a probabilidade de eventos hemorrágicos durante a hospitalização5. Por sua vez, esses eventos hemorrágicos aumentam o risco de eventos isquêmicos6. Surge assim um paradoxo, no qual condutas voltadas para reduzir o risco cardiovascular de pacientes com síndromes coronarianas agudas (SCA) podem aumentar o risco por intermédio de complicações hemorrágicas.

A ideia desse paradoxo tem sido embasada em evidências científicas. Grandes registros prospectivos demonstram de forma consistente maior probabilidade de óbito em indivíduos que desenvolvem sangramento durante a hospitalização6-11. Acredita-se que haja associação causal entre sangramento e letalidade hospitalar de SCA, visto que há plausibilidade de que instabilidade hemodinâmica decorrente do sangramento, anemia e necessidade de suspensão de agentes antitrombóticos provoquem isquemia miocárdica. Essa possível associação causal é reforçada pelo papel de preditor independente que eventos hemorrágicos exercem em modelos multivariados que avaliam o desfecho óbito cardiovascular nessa circunstância clínica6-12. Por outro lado, causalidade não se define apenas por plausibilidade ou associação independente, e os grandes registros prospectivos não descrevem detalhadamente a sequência de eventos que levou à morte desses indivíduos.

O presente estudo possui dois objetivos: primeiro, testar o valor prognóstico independente de eventos hemorrágicos maiores durante a fase aguda de síndromes coronarianas. Essa será a primeira tentativa de reproduzir os dados da literatura internacional em um registro brasileiro. Segundo, analisar individualmente a sequência de eventos que leva à morte alguns pacientes que sofrem sangramento, no intuito de confirmar a relação causal entre esses dois desfechos. Este representa o primeiro esforço de compreensão da verdadeira natureza causal dessa relação.

Para essas análises, foi utilizado o Registro Prospectivo de Síndromes Coronarianas Agudas (Resca), que envolveu 455 pacientes incluídos a partir de rigorosos critérios de seleção, onde eventos hemorrágicos maiores, eventos isquêmicos recorrentes e óbito foram registrados no seguimento hospitalar. Nesta análise, os eventos hemorrágicos foram classificados de acordo com a recente Classificação Universal de Sangramento13.

Métodos

Seleção da população

A amostra do estudo foi recrutada em dois hospitais terciários de referência em Cardiologia, com características assistenciais e perfil de pacientes semelhantes. Indivíduos consecutivamente internados em Unidade Coronária com diagnóstico de SCA foram triados para entrada no estudo, no período de agosto de 2007 a setembro de 2009 no primeiro Hospital, e entre maio e dezembro de 2010 no segundo Hospital.

Síndrome coronariana aguda sem supradesnivelamento do segmento ST foi definida como desconforto precordial nas últimas 48 horas, associado a pelo menos uma das seguintes características: 1) marcador de necrose miocárdica positivo, definido por troponina T ≥ 0,01 ug/L ou troponina I ≥ 0,034 µg/L, o que corresponde a valores acima do percentil 99 da população de referência14; 2) alterações eletrocardiográficas isquêmicas, consistindo de inversão de onda T ( 0,1 mV) ou infradesnivelamento transitório do segmento ST (≥ 0,05 mV); 3) doença arterial coronariana previamente documentada, definida por história de infarto do miocárdio ou angiografia prévia demonstrando obstrução coronária ≥ 50%.

Infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST foi definido como desconforto precordial nas últimas 48 horas, associado a supradesnivelamento do segmento ST ≥ 1 mm em duas derivações contíguas e elevação de marcadores de necrose miocárdica tal como descrito acima.

Indivíduos que completaram critérios de inclusão e forneceram consentimento livre e esclarecido foram incluídos no estudo. Este protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital.

Definição de sangramento hospitalar

Para fins da análise dos dados, foram considerados os sangramentos de maior porte, definidos pela Classificação Universal de Sangramento13 da seguinte forma: (1) tipo 3a: queda de hemoglobina de 3 a 5 g% ou necessidade de transfusão sanguínea; (2) tipo 3b: queda de hemoglobina ≥ 5 g%, tamponamento cardíaco, necessidade de cirurgia para controle ou instabilidade hemodinâmica; (3) tipo 3c: hemorragia intracraniana ou intraocular; (4) tipo 5: sangramento fatal, ou seja, aquele com um claro vínculo causal com óbito subsequente. Esse vínculo pode ser de ordem direta (por exemplo, morte por choque hemorrágico) ou indireta (infarto causado por sangramento, evoluindo para falência cardíaca e óbito). Sangramentos menores (tipo 1 ou 2) ou aqueles decorrentes de cirurgia cardíaca (tipo 4) não foram considerados na análise. Além dessa definição, os eventos hemorrágicos foram classificados quanto ao sítio de sangramento. Embora a Classificação Universal de Sangramento tenha sido publicada recentemente, todos os dados necessários para realizar essa classificação foram definidos a priori, garantindo o caráter prospectivo da coleta de dados.

Óbito hospitalar foi registrado prospectivamente e dividido em dois grupos: relacionado ao sangramento ou não relacionado a sangramento. Eventos isquêmicos não fatais foram definidos por infarto (ou reinfarto) ou angina refratária. Infarto não fatal foi registrado durante a hospitalização quando da elevação de troponina em pacientes cujos valores estavam negativos nas primeiras 24 horas. Para pacientes com infarto na admissão, um novo pico de CK-MB (> 50% do valor prévio e acima do valor normal) foi necessário para a definição de reinfarto. Elevação de marcadores de necrose induzidos por procedimento coronariano percutâneo ou cirurgia de revascularização não foram registrados como evento recorrente. Angina refratária durante hospitalização foi definida por dor precordial recorrente, pelo menos duas vezes, a despeito do uso de nitratos e duplo produto controlado.

Análise dos dados

A incidência de sangramento maior foi descrita por frequência relativa e intervalo de confiança com 95% de precisão (95% IC). A associação univariada entre sangramento e óbito hospitalar foi descrita por risco relativo e 95% IC. Inicialmente, características clínicas prévias ao sangramento, terapia antitrombótica e frequência de intervenção percutânea foram comparadas entre aqueles que sofreram hemorragia e os demais indivíduos, a fim de identificar potenciais preditores de sangramento (P ≤ 0,10). Em segundo lugar, esses preditores de sangramento foram comparados entre pacientes que apresentaram óbito e os que não apresentaram óbito hospitalar, sendo identificadas as variáveis associadas a óbito com valor de P ≤ 0,10. Dessa forma, as variáveis simultaneamente associadas a sangramento e óbito foram selecionadas para um modelo multivariado, a fim de definir um escore de propensão para sangramento. Utilizando regressão logística e tendo sangramento maior como desfecho, as variáveis com valor de P < 0,05 no modelo final constituíram o escore de propensão. A estatística-C desse escore foi calculada e descrita juntamente com seu intervalo de confiança.

No intuito de avaliar a associação independente de sangramento e óbito, um segundo modelo de regressão logística foi utilizado, tendo óbito hospitalar como variável de desfecho e sangramento como variável preditora, ajustada para o escore de propensão. Para análise estatística, SPSS Statistical Software (Versão 9.0, SPSS Inc., Chicago, Illinois, USA) foi utilizado na análise dos dados.

Finalmente, foi realizada uma análise qualitativa da relação causal entre sangramento e óbito, restrita aos pacientes que sangraram e morreram após esse evento. Nessa análise, a sequência dos fatos que levaram à morte foi cuidadosamente detalhada, a fim de inferir se houve relação causal direta entre esses dois desfechos.

Resultados

Características da amostra

A amostra consistiu de 455 pacientes, 54% do sexo masculino, idade 67 ± 13 anos, 78% internados por SCA sem supradesnivelamento do segmento ST e os demais por infarto com supradesnivelamento do segmento ST. Durante a internação, foi realizada coronariografia em 77% dos pacientes, intervenção coronariana percutânea em 37%, e cirurgia de revascularização em 8%. A amostra apresentou Escore de Sangramento Acuity15 de 16 ± 6,8, o que traduz 5% de probabilidade de sangramento maior durante internamento, correspondendo a moderado risco. Vinte e nove indivíduos desenvolveram sangramento maior durante o internamento, resultando em incidência de 6,4% (95% IC = 4,3 a 9,0%).

Dentre os sangramentos maiores, predominou aqueles relacionados ao sítio de inserção de cateter femoral para coronariografia (31%) ou angioplastia (48%), correspondendo a 79% dos casos. Outras etiologias foram sangramento digestivo em 14% e sangramento nasal em 6% dos pacientes com sangramento maior. De acordo com a Classificação Universal13, a maioria correspondente a 82% foi classificada como tipo 3a, seguida de 14% do tipo 3b e apenas um caso do tipo 5 (fatal). Cinquenta e cinco por cento dos pacientes que sangraram foram transfundidos, 72% apresentaram queda de hemoglobina ≥ 3 g% e apenas 14% desenvolveram instabilidade hemodinâmica diretamente decorrente do sangramento. Em apenas 17% dos casos, os agentes antitrombóticos foram suspensos devido ao sangramento (fig. 1).


Sangramento e óbito hospitalar

Indivíduos que desenvolveram sangramento maior apresentaram mortalidade hospitalar de 21%, significativamente maior do que os 5,6% observados no grupo que não apresentou sangramento (Risco Relativo = 4,0; 95% IC = 1,8 - 9,1; P = 0,001).

No intuito de avaliar a associação independente de sangramento e óbito, um escore de propensão para sangramento foi desenvolvido. Inicialmente características clínicas e abordagens prévias ao sangramento foram comparadas entre indivíduos que sangraram e não sangraram. Comparados aos pacientes livres de hemorragia, aqueles que sangraram tinham idade superior, frequência cardíaca superior, maior prevalência de troponina positiva e de doença coronariana severa. Do ponto de vista de tratamento, pacientes que sangraram fizeram uso mais frequente de antagonistas da glicoproteína IIb/IIIa, coronariografia e angioplastia coronariana (P ≤ 0,10 para todos os casos) (tab. 1). Dentre essas variáveis, idade, frequência cardíaca, troponina e doença severa estiveram associadas a mortalidade (P < 0,05) (tab. 2). Dessa forma, esses parâmetros (associados simultaneamente a sangramento e morte) foram inseridos em modelo de regressão logística, tendo sangramento como variável de desfecho. No modelo final, permaneceram idade e doença coronariana severa como preditores independentes de sangramento (tab. 3). Esse modelo final foi utilizado como escore de propensão de sangramento, o qual apresentou estatística-C de 0,76 (P < 0,001). Após ajuste para o escore de propensão por regressão logística, sangramento maior permaneceu preditor independente de óbito, com Odds Ratio de 3,34 (95% IC = 1,2 - 9,5; P = 0,02) (tab. 4).

Análise da relação causal entre sangramento e óbito

A cronologia dos eventos foi analisada nos seis pacientes que morreram após o sangramento, a fim de avaliar de forma individualizada a possível relação causal entre esses dois desfechos (tab. 5).

A Paciente #1 apresentou nítida relação causal entre sangramento e óbito. Tratou-se de uma mulher, 73 anos, admitida com infarto sem supradesnivelamento do segmento ST. Realizou coronariografia por via femoral, a qual não demonstrou obstruções coronarianas significativas. No entanto, horas após o procedimento, desenvolveu sangramento profuso pelo local do introdutor, entrando em choque hemorrágico. Houve elevação substancial de marcadores de necrose miocárdica, caracterizando infarto secundário ao choque. A paciente não recuperou a condição hemodinâmica, desenvolvendo choque refratário, seguido de morte no dia seguinte ao sangramento. Dessa forma, essa paciente constitui um caso de sangramento do tipo 5 (fatal).

Por sua vez, os outros cinco pacientes não apresentaram quadro clínico que possa ser classificado como sangramento do tipo 5, ou seja, não se identifica nítida relação causal entre a hemorragia e o desfecho fatal. O Paciente #2, homem de 81 anos, internado com infarto sem supradesnivelamento do segmento ST, evoluiu com angina refratária e choque cardiogênico. Sendo assim, foi submetido a angioplastias do tronco da coronária esquerda, descendente anterior, circunflexa e coronária direita, sem melhora da condição hemodinâmica, evoluindo para óbito após alguns dias. Durante o procedimento prolongado de angioplastia houve queda de hemoglobina, necessitando de transfusão, caracterizando sangramento tipo 3a. Nesse caso, o choque já estava presente antes do sangramento, portanto não foi a hemorragia que causou a instabilidade hemodinâmica responsável pela morte.

A Paciente #3, mulher de 92 anos, foi admitida com infarto sem supradesnivelamento do segmento ST, culminando com angina refratária e edema agudo de pulmão, sendo colocada em ventilação mecânica invasiva. Evoluiu com infecção respiratória e no curso dessa complicação apresentou sangramento digestivo, considerado do tipo maior (3a) em razão da queda de hemoglobina. Culminou com choque séptico e óbito. Nesse caso, a paciente já apresentava insuficiência cardíaca grave antes da hemorragia, sendo o sangramento consequência da gravidade da paciente.

O Paciente #4, homem de 71 anos, foi trombolisado na vigência de infarto com supradesnivelamento do segmento ST anterior extenso, o que provocou sangramento nasal, sem repercussão hemodinâmica, caracterizado como tipo 3a em razão da queda de hemoglobina. A coronariografia mostrou padrão de doença coronariana difusa, sem condição de angioplastia ou cirurgia. Dias depois o paciente evoluiu para choque cardiogênico, provavelmente decorrente da perda de função ventricular em razão do infarto, sem aparente associação com o evento hemorrágico.

A Paciente #5, mulher de 73 anos, foi internada com apresentação tardia de infarto com supradesnivelamento do segmento ST, Killip I. A coronariografia mostrou descendente anterior ocluída, não sendo realizada angioplastia, pelo caráter tardio da apresentação. Evoluiu com sangramento na retirada do introdutor, classificado como tipo 3a, em razão da necessidade de transfusão sanguínea, sem repercussão hemodinâmica. No entanto, desenvolveu insuficiência renal após contraste, culminando com necessidade de diálise, complicando para infecção e óbito. Como não houve instabilidade hemodinâmica, não podemos atribuir a insuficiência renal ao sangramento.

Finalmente, a Paciente #6, mulher de 63 anos, foi internada por infarto com supradesnivelamento do segmento ST, Killip I. Foi submetida a angioplastia tardia da artéria circunflexa, evoluindo com sangramento no local do procedimento, necessidade de transfusão e hipotensão (tipo 3b). Evoluiu com estabilização hemodinâmica, sendo planejada eletivamente revascularização cirúrgica da descendente anterior e coronária direita. O óbito ocorreu por complicações no pós-operatório, não caracterizando uma relação causal com o sangramento ocorrido durante a angioplastia.

Dessa forma, entre os pacientes que sangraram e evoluíram para óbito, apenas em um dos seis casos o óbito foi diretamente relacionado ao evento hemorrágico.

Discussão

O presente estudo avalia o impacto clínico de eventos hemorrágicos no curso hospitalar de SCA, evidenciando dois principais resultados: primeiro, sangramento maior durante SCA possui associação independente com mortalidade hospitalar; segundo, análise individualizada da sequência de eventos que levou à morte dos pacientes que sangraram indica que a minoria dos óbitos é direta ou indiretamente causada pelo sangramento.

Quanto à primeira observação, o risco de morte foi quatro vezes maior nos pacientes que apresentaram hemorragia durante internamento, comparados aos indivíduos livres de hemorragia. Considerando a possibilidade de que os fatores que levam a sangramento poderiam ser os mesmos que predispõem a morte, a associação observada poderia ser decorrente de efeito de confusão. Dessa forma, um escore de propensão para sangramento foi criado e após ajuste para esse escore, o sangramento permaneceu preditor independente de óbito hospitalar. Apesar da predição independente de sangramento em relação a óbito ter sido descrita em vários registros multicêntricos6-11, este é o primeiro trabalho brasileiro a reproduzir essa informação.

Embora associação independente seja um dos critérios necessários para definir causalidade, essa não representa uma condição suficiente. Portanto, a independente predição de morte a partir do sangramento, descrita nos grandes registros multicêntricos, não indica necessariamente que os óbitos sejam decorrentes dos eventos hemorrágicos. A causalidade dessa associação é apenas uma inferência sugerida pelos estudos prévios, a qual não poderia ser resolvida apenas com a análise multivariada. Para resolver essa questão, de forma inédita, realizamos uma análise descritiva da sequência de eventos que precederam o óbito. Essa análise trouxe a percepção nítida de que o sangramento atua predominantemente como um marcador de risco, e apenas secundariamente como um fator de risco para morte. Seis óbitos ocorreram após sangramento maior: em dois deles as condições de isquemia recorrente e falência cardíaca que levaram à morte se instalaram antes do evento hemorrágico; em um terceiro caso de morte por falência cardíaca, o sangramento de sítio nasal (sem repercussão hemodinâmica) ocorreu dias antes da manifestação de disfunção ventricular; em quarto caso, o óbito ocorreu por complicações de diálise; no quinto caso, o óbito decorreu de complicações em pós-operatório de revascularização miocárdica. Sendo assim, em apenas um caso a morte foi definitivamente decorrente do sangramento, o qual levou a paciente a choque hemorrágico e consequente infarto do miocárdio. Vale salientar que esse tipo de análise não está presente nos trabalhos prévios provavelmente por causa da dificuldade logística em realizar tão detalhada avaliação em estudos de grande porte e multicêntricos, que dispõem apenas da informação dicotômica da presença das variáveis de predição e desfecho.

Dessa forma, fica evidente que análises de regressão logística ou Cox, utilizando covariáveis isoladas ou escores de propensão, não são suficientes para ajustar plenamente o efeito do sangramento para fatores de confusão. Após essas análises, efeito de confusão residual provavelmente mantém uma associação superestimada entre sangramento e óbito. Na verdade, sangramento parece ser um excelente marcador de risco, pela sua relação com diversas características do paciente que o tornam mais vulnerável a desfechos fatais. Nesse contexto, a recente Classificação Universal de Sangramento13 propõe que esses eventos sejam classificados de 1 a 5, de acordo com a sua consequência. Nosso trabalho representa o primeiro relato da distribuição do tipo de sangramento de acordo com essa classificação, e o tipo 5 significa que o óbito decorreu diretamente do sangramento.

Devemos salientar que nossa análise não vai de encontro à atual ênfase na necessidade de medidas para reduzir desfechos hemorrágicos, tais como racionalização da terapia antitrombótica de acordo com análise de risco/beneficio15-17, utilização de estratégias farmacológicas mais seguras18-20, atenção especial na manipulação dos locais de punção e introdutores femorais21. Ao passo que o presente estudo ameniza o impacto clínico dos sangramentos, este não exclui de todo sua relação causal com eventos fatais, visto que houve uma morte decorrente de sangramento neste trabalho de pequeno tamanho amostral. Além disso, eventos hemorrágicos não fatais causam desconforto, prolongamento do tempo de internação, necessidade de transfusão e suspensão de agentes necessários. Portanto, independentemente de seu potencial fatal, sangramentos devem ser prevenidos.

Por sua vez, considerando que a maioria dos óbitos não decorre de sangramento, nosso estudo sugere que, em situações dicotômicas, a decisão clínica deve priorizar a prevenção de eventos isquêmicos recorrentes, em relação à prevenção de hemorragia. Por exemplo, apesar de alto risco de sangramento (Escore CRUSADE22 elevado), um paciente com risco isquêmico alto (Escore GRACE2) deve ser submetido a estratégia invasiva. Assim, a avaliação do risco de sangramento deve servir de estímulo a medidas preventivas de sangramento, porém não deve inibir procedimentos invasivos ou intensidade da terapia antitrombótica em paciente de risco elevado.

Além disso, nosso estudo indica que a maior atenção deve residir na prevenção das hemorragias relacionadas a sítios de punção, pois esses foram responsáveis por 80% dos casos de sangramento maior. Alguns autores referem que o sítio mais frequente de sangramento é o digestivo23. No entanto, devemos diferenciar hemorragias ocorridas na fase hospitalar de síndromes coronarianas e aquelas ocorridas após a alta. Os estudos que mostram sangramento digestivo como mais frequente são os que incluíram o seguimento ambulatorial nessa análise24-26. Nossos dados mostram de forma clara que, em nível hospitalar, o mais frequente é sangramento relacionado a punção femoral, decorrente tanto de angioplastia como de coronariografia diagnóstica.

O presente estudo apresenta limitações que devem ser discutidas. Embora de tamanho amostral moderado, foram apenas seis casos de óbito dentre os pacientes que sangraram. Esse pequeno número de casos decorreu do fato de analisarmos um subgrupo pequeno (óbito) dentro de outro subgrupo pequeno (sangramento), o que faz que essa limitação seja inerente a esse tipo de análise. Portanto, devemos reconhecer a análise sequencial como apenas geradora de hipótese, a qual deve ser explorada por estudos futuros, cuja coorte contenha informações que permitam avaliar detalhadamente a sequência dos fatos. Segundo, essa é uma análise qualitativa, que lida com a percepção clínica de causalidade, tendo sido descrita ausência de relação causal nítida em cinco dos seis casos. Embora pouco provável, devemos reconhecer que o sangramento pode ter contribuído indiretamente para a morte em alguns casos.

Em conclusão, o presente estudo confirma em nosso meio a associação independente entre eventos hemorrágicos e óbito hospitalar. Essa associação é primariamente mediada pelo efeito do sangramento como marcador de risco em vez de fator de risco. Essa segunda observação deve ser vista como geradora de hipótese a ser confirmada por estudos de maior tamanho amostral.

Artigo recebido em 14/09/11;

revisado recebido em 14/09/11;

aceito em 27/01/12.

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  • Correspondência:

    Luis Cláudio Lemos Correia
    Av. Princesa Leopoldina, 19/402 - 40150-080 - Salvador - BA, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Set 2011
    • Aceito
      27 Jan 2012
    • Revisado
      14 Set 2011
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