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Aplicação de hipotermia terapêutica em paciente com coronariopatia aguda

RELATO DE CASO

Aplicação de hipotermia terapêutica em paciente com coronariopatia aguda

Rafael Alves Franco; Natali Schiavo Giannetti; Carlos Vicente Serrano Jr; José Carlos Nicolau

Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Rafael Alves Franco Rua Dr. Diogo de Faria, 650, Apto 14. CEP 04037-002, Vila Clementino, São Paulo, SP - Brasil E-mail: rafael.alvesfranco@yahoo.com.br, rapa20@hotmail.com

Palavras-chave: Hipotermia/terapia; infarto do miocárdio; parada cardíaca.

Introdução

A utilização da hipotermia terapêutica (leve a moderada) no cenário do tratamento pós-parada cardiorrespiratória (PCR) tem-se demonstrado benéfica na prevenção de danos neurológicos.

Esta deve ser considerada em situações de PCR presenciada em ritmo chocável (taquicardia ventricular sem pulso - TV, ou fibrilação ventricular - FV), em que o paciente permanece comatoso após recuperação da circulação espontânea. Tal indicação figura nas diretrizes atuais1. Por outro lado, demonstra-se que a TV/FV é uma arritmia que acomete até 10% dos pacientes hospitalizados com diagnóstico de infarto agudo do miocárdio com supradesnível do segmento ST (IAMCSST)2, tornando-se importante no contexto de pacientes candidatos à hipotermia. O caso descrito exemplifica a realidade de um hospital cardiológico quaternário.

Relato do Caso

Paciente JG, masculino, 76 anos, casado, aposentado, hipertenso (controle inadequado) e tabagista. Apresentou-se ao pronto-atendimento com 6h de forte precordialgia e náuseas. Ao ECG, evidenciou-se supradesnível do segmento ST em parede inferior. Recebeu mononitrato de isossorbida, AAS e heparina (sem terapêutica de reperfusão), mantendo dor até o dia seguinte.

Transferido para o InCor/HCFMUSP no 4º dia do IAMCSST, seu ECG apresentava bloqueio atrioventricular total (BAVT), com QRS estreito e FC de escape ao redor de 35 bpm. Enviado para a hemodinâmica e implantado marca-passo provisório transvenoso, seguido de cineangiocoronariografia, que evidenciou doença coronária obstrutiva difusa e grave: artéria coronária direita ocluída no terço proximal; artéria descendente anterior com múltiplas estenoses, sendo a maior de 75% no terço médio; artéria circunflexa com estenose de 75% no terço médio, com placa ulcerada; artéria marginal esquerda com estenose de 50% ostial; ventriculografia esquerda: discinesia apical e hipocinesia inferior (3+/4+); fração de ejeção 30%. Optou-se por tratamento cirúrgico urgente.

No dia subsequente, na Unidade Coronária de Terapia Intensiva (UCo), aguardando a cirurgia que deveria ser realizada no dia seguinte, apresentou PCR em FV, sendo atendido de acordo com recomendações do ACLS e retornando à circulação espontânea em 20 minutos; neste momento, apresentava-se comatoso, sem sedação, com escala de coma de Glasgow de 6T (abertura ocular 1 / resposta verbal 1T / resposta motora 4). O ECG pós PCR evidenciou ritmo de MP. Submetido à intervenção coronariana percutânea (ICP) da artéria coronária direita com sucesso, retornando à UCo em ritmo sinusal.

Frente ao estado comatoso após a ressuscitação, foi iniciado protocolo de hipotermia terapêutica, posicionado termômetro esofágico e iniciado resfriamento. Para tanto, utilizou-se infusão venosa de solução salina 0,9% resfriada, infusão de solução salina 0,9% resfriada via sonda gástrica, mantas térmicas e pacotes de gelo em axilas, virilhas e nuca. Foi utilizada hipotermia leve a moderada (32-34ºC) por 24 horas, com período de reaquecimento de 6 horas, de forma passiva, com velocidade de reaquecimento de 0,1 - 0,5ºC por hora (Figura 1). Durante a hipotermia, foi realizada coleta de exames seriados (a cada 6 horas) a fim de detectar alterações secundárias a hipotermia. Os exames coletados foram: CPK; CKMB; Troponina I; hemograma completo; coagulograma; sódio; potássio; magnésio; cálcio; fósforo; e glicemia.


Dois dias após o reaquecimento, apresentou nova FV, revertida com o primeiro choque. O paciente evoluiu satisfatoriamente, sendo extubado após uma semana. Recebeu tratamento para infecção pulmonar com antibióticos. Do ponto de vista coronariano, foi submetido à ICP eletiva das artérias descendente anterior e circunflexa antes da alta hospitalar. Finalmente, recebeu alta no 30º dia de evolução do IAMCSST assintomático, deambulando, lúcido e sem déficits focais (escala de coma de Glasgow: 15).

Discussão

A utilização da hipotermia terapêutica (HT) após o retorno da circulação espontânea após PCR teve sua utilização inicial na década de 403. Partia do racional de que quanto menor o metabolismo cerebral, maior a proteção deste órgão. Inicialmente, foram utilizadas temperaturas extremamente baixas (< 30ºC), no intuito de máxima redução do metabolismo cerebral e, consequentemente, maior proteção e melhores desfechos neurológicos. Limitações surgiram nesse contexto, como efeitos colaterais frequentes e importantes (desde tremores incoercíveis até sangramentos por distúrbios da coagulação e alterações eletrolíticas graves, como hipocalemia na indução ou hipercalemia no reaquecimento)4-10.

Isso explica o abandono desta terapêutica até meados da década de 80, quando experimentos em animais reavivaram o interesse no tema1. Estudos subsequentes evidenciaram sucessivamente que a melhora no prognóstico neurológico não se devia apenas à redução do metabolismo cerebral, e sim a uma série de eventos que geram lesão neurológica - desde o processo de isquemia-reperfusão até a cascata de injúria cerebral4. Essa cascata, iniciada pela isquemia, envolve disfunção mitocondrial, disfunção de bombas de prótons na parede celular, formação de radicais livres, aumento da permeabilidade vascular, quebra da barreira hematoencefálica, ativação da cascata de coagulação e da resposta imune, lesão de reperfusão, entre outros.

A ressurreição dessa terapêutica ocorreu com a publicação de Holzer e Sterz5, num estudo randomizado e multicêntrico que incluiu 275 pacientes ressuscitados após PCR por FV/TV, e que se mantinham comatosos após recuperação da circulação espontânea. De forma aleatória, foi comparada a hipotermia moderada com tratamento padrão (normotermia). Os resultados principais demonstraram importante melhora do prognóstico neurológico (melhora de 40% no grupo hipotermia, p = 0,009) e redução de mortalidade (redução do risco relativo de 26%, p = 0,02).

No contexto da coronariopatia aguda, o IAMCSST figura como importante etiologia de arritmias ventriculares complexas (como TV e FV), com possibilidade de reversão e, por conseguinte, apresentando pacientes candidatos a serem submetidos à HT.

Um dos pilares da terapêutica da doença isquêmica é a inibição da agregação plaquetária9. Por outro lado, a função plaquetária na hipotermia importante (< 30ºC) é alterada, com evidências em modelos animais que sugerem redução da agregabilidade plaquetária secundária à diminuição da adesão mediada por colágeno e fator de Von Willebrand, além da redução da superfície plaquetária e consequente prolongamento no tempo de sangramento7. Em contrapartida, a hipotermia importante pode gerar um paradoxal estado protrombótico em virtude de ativação do receptor IIb/IIIa e redução da degradação da ADP, que seria idealmente tratado com inibidores do receptor P2Y127. Na hipotermia leve a moderada, a disfunção plaquetária é leve, com possível redução na contagem plaquetária, sem repercussão em sangramento4, e não implica em alteração no tratamento antiplaquetário da doença.

Outro ponto importante é a segurança e adequação da realização do cateterismo e da ICP no indivíduo submetido à hipotermia. Batista e cols.8 compararam pacientes submetidos à hipotermia e ICP, em relação a pacientes submetidos apenas à hipotermia, não encontrando diferença no que se refere a eventos adversos (arritmias, coagulopatia, infecções, hipotensão, sequela neurológica ou mortalidade)8. Deve ser ressaltado ainda que a hipotermia leve a moderada no cuidado pós-parada é recomendada pelas diretrizes da American Heart Association sobre cuidado avançado em cardiologia (ACLS), sendo igualmente efetiva e segura quando utilizada concomitante à ICP1.

O objetivo da hipotermia no infarto agudo do miocárdio é a melhora do prognóstico neurológico, e não a limitação de área de necrose ou diminuição na incidência de desfechos cardiovasculares, como se poderia presumir pela prevenção de lesões induzidas pelo mecanismo de isquemia-reperfusão, presentes no infarto do miocárdio6.

Em resumo, a utilização da hipotermia leve a moderada adequadamente indicada (pacientes comatoso após recuperação de parada cardiorrespiratória e que tiveram inicialmente ritmos chocáveis - FV/TV sem pulso) no contexto da coronariopatia aguda parece segura e efetiva, levando a melhora nos desfechos neurológicos e não interferindo de forma significativa nas terapêuticas antiplaquetárias e intervencionistas por meio da ICP. Tais perspectivas devem ser testadas em estudos desenhados para tal a fim de conclusões definitivas sobre este tema de elevado interesse nos dias atuais.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 12/07/11; revisado em 12/07/11; aceito em 6/10/11.

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  • Correspondência:

    Rafael Alves Franco
    Rua Dr. Diogo de Faria, 650, Apto 14.
    CEP 04037-002, Vila Clementino, São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012
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