Acessibilidade / Reportar erro

Trombo biventricular e fibrose endomiocárdica na síndrome antifosfolípide

Síndrome Antifosfolipídica; Anticorpos; Antifosfolipídeos; Fibrose Endomiocárdica; Trombose; Espectroscopia de Ressonância Magnética

RELATO DE CASO

Trombo biventricular e fibrose endomiocárdica na síndrome antifosfolípide

Luiz Flávio Galvão GonçalvesII; Fernanda Maria Silveira SoutoI; Fernanda Nascimento FaroI; Joselina Luzia Menezes OliveiraI, II; José Augusto Soares Barreto-FilhoI; Antônio Carlos Sobral SousaI, II

IDepartamento de Medicina, Universidade Federal de Sergipe, SE – Brasil

IIServiço de Ressonância Cardiovascular e Laboratório de Ecocardiografia (ECOLAB) do Hospital e Fundação São Lucas, Aracaju, SE – Brasil

Correspondência Correspondência: Antônio Carlos Sobral Sousa Centro de Ensino e Pesquisa da Fundação São Lucas, Av. Coronel Stanley Silveira, nº 73, sala 210, São José CEP 49015-400, Aracaju, SE – Brasil E-mail: acssousa@terra.com.br

Palavras-chave: Síndrome Antifosfolipídica; Anticorpos; Antifosfolipídeos; Fibrose Endomiocárdica; Trombose; Espectroscopia de Ressonância Magnética.

Introdução

A SAF é uma doença sistêmica autoimune caracterizada pela detecção plasmática de anticorpos antifosfolípides, tais como o anticardiolipina e o anticoagulante lúpico, que se manifesta clinicamente mediante: trombose arterial e/ou venosa recorrentes, trombocitopenia, abortamentos de repetição e anemia hemolítica autoimune, além de alterações cardíacas, neurológicas e cutâneas1. Constitui-se na principal causa adquirida de hipercoagulabilidade, ocorrendo em 2% da população geral e apresenta alta morbimortalidade2.

Pode ser classificada como primária quando não há outra doença subjacente e como secundária quando ocorre associada a outras patologias, como o lúpus eritematoso sistêmico. As alterações cardíacas são frequentes, sobretudo as valvopatias (espessamentos e vegetações) e a doença arterial coronariana (DAC)2-4; tem sido também relatada a presença de trombos intracavitários5. Todavia, o acometimento miocárdico é raramente descrito nesta patologia6.

O presente relato descreve o caso de uma paciente lúpica, com SAF e trombo cavitário biventricular, diagnosticado pela RMC. Foi detectada, também, a presença de realce tardio endomiocárdico que pode ser manifestação precoce da ocorrência de (EMF).

Relato do caso

Trata-se de paciente do sexo feminino, 22 anos, portadora de LES, admitida no hospital com queixas de mal estar geral e dispneia progressiva. Os exames laboratoriais revelaram hemoglobina de 6,9 g/dL, hematócrito de 24%, bilirrubina indireta e desidrogenase lática elevadas e teste de Coombs direto positivo, compatível, portanto, com anemia hemolítica autoimune. Foi realizada hemotransfusão associada à corticoterapia. No entanto, a paciente evoluiu com piora da dispneia e queda da saturação venosa central de O2, sugerindo quadro clínico de baixo débito.

O eletrocardiograma de repouso revelou taquicardia sinusal, alterações difusas da repolarização ventricular e progressão "lenta" de onda "R" em derivações precordiais. O ecodopplercardiograma transtorácico realizado com equipamento Hewlett-Packard/Phillips SONOS 5500, com transdutor de 2,5 e 5- 7,5 mHz, revelou cavidades cardíacas com dimensões normais, espessura parietal e função sistólica do ventrículo esquerdo (VE) preservadas, disfunção diastólica do VE de grau moderado e hipertensão pulmonar de grau leve (pressão sistólica estimada em território pulmonar de 40 mmHg). Constatou-se também a presença de obliteração em ápices de ambos os ventrículos, não sendo possível, todavia, fazer a diferenciação entre trombo e endomiocardiofibrose, apesar da utilização de mapeamento de fluxo a cores e transdutor de alta frequência.

Para elucidação diagnóstica, foi então realizada RMC (Figura 1) em aparelho Philips Achievade 1,5 T. Foram obtidas sequências de cine (balance Steady-StateFreePrecession- BSSFP) e realce tardio (turbo-fieldecho com pulso de inversão e recuperação, 10 minutos após injeção de 0,2 mmol/kg de contraste com Gd; TE: 6,1, TR 3,0). Verificou-se a presença de cavidades ventriculares reduzidas nos eixos longitudinais devido ao preenchimento de seus ápices por trombos (5,0 x 2,5 cm em VE e 2,0 x 1,0 cm em VD). Além disso, foi notada a presença de realce tardio subendocárdico em porções apicais biventriculares nos segmentos acometidos.


Para explicar a presença de trombo intracavitário, foi levantada a hipótese de SAF, confirmada pela detecção de anticorpos antifosfolípides e anticardiolipina no soro da paciente. O achado de realce tardio poderia ser explicado por afecção endomiocárdica ou por DAC. Todavia, a cinecoronariografia demonstrou coronárias epicárdicas livres de obstrução. A paciente foi submetida à anticoagulação com heparina de baixo peso molecular, seguida de warfarina em dose adequada para manter o INR (TP) entre 2,0-3,0. Houve a evolução com melhora clínica progressiva.

Três semanas após a instituição da terapêutica, foi realizada RMC de controle (Figura 2) que revelou trombos com contornos mais regulares e realce irregular, sugerindo organização e diminuição importante de tamanho (VE: 2,5 x 2,1 cm; VD: 0,9 x 0,7 cm). Houve persistência do contraste endocárdico, reforçando, portanto, a suspeita da presença de doença endomiocárdica associada. Foi descartada a realização de biópsia endomiocárdica, pelo risco de embolização do trombo com a manipulação do cateter e, sobretudo, porque este procedimento não mudaria a conduta terapêutica. A paciente recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial.


Discussão

O tromboembolismo venoso é a apresentação clínica mais comum da SAF, ocorrendo em 30 a 70% dos pacientes3. Em relação ao território arterial, as carótidas são os principais vasos acometidos e os seus trombos podem evoluir para um acidente vascular cerebral. As principais manifestações cardíacas encontradas nesta síndrome são as valvopatias e a DAC, representando dois terços dos casos4.

A trombose intracardíaca ocorre raramente, exceto, na vigência de disfunção ventricular; pode ser encontrada em qualquer câmara cardíaca, sendo, todavia, mais comum no lado direito do coração e se constituindo potencial causa de embolia pulmonar ou sistêmica5. Segundo o nosso conhecimento, esse é o primeiro relato da presença de trombo intracavitário biventricular associado à SAF, diagnosticado mediante RMC.

Ainda não está definida qual a melhor terapêutica para esses pacientes – administração de heparina, trombólise, anticoagulação com warfarin ou excisão cirúrgica do trombo6. A paciente foi submetida à anticoagulação com heparina seguida de wafarin, apresentando evolução satisfatória.

O acometimento endomiocárdico também é raro em portadores de SAF. Azeem e cols.7 descreveram um caso de EMF causando insuficiência cardíaca direita em uma paciente de 50 anos de idade, portadora de SAF. Esse tipo de miocardiopatia ainda é de etiologia desconhecida e está relacionada com diversos fatores neuro-humorais e de crescimento8. Alguns autores sugerem que a EMF resulta de lesão primária da microcirculação coronária, do miócito, do fibroblasto subendocárdico ou do próprio endocárdio. Também têm sido detectados anticorpos contra proteínas miocárdicas em portadores desse tipo de patologia, sugerindo, portanto, que a resposta autoimune pode estar implicada na sua etiopatogenia9.

A demonstração de realce tardio por intermédio da RMC tem se associado à lesão miocárdica irreversível (fibrose ou necrose), notadamente em portadores de DAC; todavia, existe relato de que esta metodologia possibilita também a detecção de fibrose subendocárdica, com boa correlação histopatológica, em portador de EMF10. Tal constatação possibilita, em tese, o diagnóstico de EMF na sua fase inicial já que se trata de exame não invasivo e de fácil execução.

Portanto, no caso em questão, é possível especular que o achado de realce tardio, na ausência de lesões obstrutivas em coronárias epicárdicas, traduza manifestação precoce de EMF, em portadora de SAF.

A biópsia ajudaria a confirmar o achado e a esclarecer a patologia adjacente, embora seja um procedimento de risco, em decorrência da trombose intracavitária, que não mudaria a conduta.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 26/01/12; revisado em 01/02/12; aceito em 09/04/12.

  • 1. Miyakis S, Lockshin MD, Atsumi T, Branch DW, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006; 4(2):295-306.
  • 2. Tripodi A, Chantarangkul V, Clerici M, Negri B, Galli M, Mannucci PM. Laboratory control of oral anticoagulant treatment by the INR system in patients with the antiphospholipid syndrome and lupus anticoagulant. Results of a collaborative study involving nine commercial thromboplastins. Br J Haematol. 2001;115(3):672-8.
  • 3. Gastineau DA, Kazmier FJ, Nichols WL, Bowie EJ. Lupus anticoagulant: an analysis of the clinical and laboratory features of 219 cases. Am J Hematol. 1985;19(3):265-75.
  • 4. Hedge VA, Vivas Y, Shah H, Haybron D, Srinivasan V, Dua A, et al. Cardiovascular surgical outcomes in patients with the antiphospholipid syndrome- a case series. Heart Lung Circ. 2007;16(6):423-7.
  • 5. Weiss S, Nyzio JB, Cines D, Detre J, Milas BL, Narula N, et al: Antiphospholipid syndrome: intraoperative and postoperative anticoagulation in cardiac surgery. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2008,22(5):735-9.
  • 6. Koniari J, Siminelakis SN, Baikoussis NG, Papadopoulos G, Goudevenos J, Apostolakis E. Antiphospholipid syndrome; its implication in cardiovascular disease: a review. J Cardiothorac Surg. 2010;5:101.
  • 7. Azeem T, Vassallo M, Samani N. Images in cardiology. Endomyocardial fibrosis associated with antiphospholipid syndrome. Heart. 2000;84(2):156.
  • 8. Kapoun AM, Liang F, O'Young G, Damm DL, Quon D, White RT, et al. B-type natriuretic peptide exerts broad functional opposition to transforming growth factor-beta in primary human cardiac fibroblasts: fibrosis, myofibroblast conversion, proliferation, and inflammation. Circ Res. 2004;94(4):453-61.
  • 9. Mathai A, Kartha CC, Balakrishnan KG. Serum immunoglobulins inpatients with endomyocardial fibrosis. Indian Heart J. 1986;38(6):470-2.
  • 10. Cury RC, Abbara S, Sandoval LJ, Houser S, Brady TJ, Palacios IF. Images in Cardiovascular Medicine. Visualization of endomyocardial fibrosis by delayed-enhancement magnetic resonance imaging. Circulation. 2005;111(9):e115-7.
  • Correspondência:
    Antônio Carlos Sobral Sousa
    Centro de Ensino e Pesquisa da Fundação São Lucas, Av. Coronel Stanley Silveira, nº 73, sala 210, São José
    CEP 49015-400, Aracaju, SE – Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2012

    Histórico

    • Recebido
      26 Jan 2012
    • Aceito
      09 Abr 2012
    • Revisado
      01 Fev 2012
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br