Acessibilidade / Reportar erro

Interação multidisciplinar em cardiologia invasiva: alcoolização septal

RELATO DE CASO

Interação multidisciplinar em cardiologia invasiva: alcoolização septal

Luiz Fernando Ybarra; Diego Roberto Barbosa Pereira; Eduardo Manhães; Fabio Fernandes; Marcelo Luiz Campos Vieira; Pedro Alves Lemos

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Incor/HCFMUSP), São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Luiz Fernando Ybarra Rua Peixoto Gomide, 1653, Apto 142, Jardim Paulista CEP 01409-003, São Paulo, SP - Brasil E-mail: lfybarra@gmail.com

Palavras-chave: Cardiomiopatia Hipertrófica; Hipertrofia Ventricular Esquerda; Ecocardiografia Transesofágica; Técnicas de Ablação.

Introdução

A Cardiomiopatia Hipertrófica (CMH) é uma doença hereditária autossômica dominante, caracterizada por hipertrofia ventricular, cuja prevalência na população geral é de 1:5001. A obstrução na via de saída do ventrículo esquerdo incide em 25% dos casos e é marcador de pior prognóstico. Ocorre devido à combinação de fatores mecânicos e hemodinâmicos, tais como: hipertrofia do septo interventricular, contração hiperdinâmica do ventrículo esquerdo e movimento anterior sistólico da cúspide anterior da valva mitral2. Em pacientes refratários ao tratamento medicamentoso, a Ablação Septal Alcoólica percutânea (ASA) pode ser indicada como estratégia para reduzir a obstrução. A associação da Ecocardiografia Transesofágica (ETE) durante a alcoolização elevou o sucesso do procedimento para cerca de 90%1.

Neste artigo, relatamos um caso de CMH septal assimétrica tratada com ASA auxiliada pelo ETE tridimensional, seguido pela revisão da literatura e discussão crítica da interação e envolvimento da cardiologia invasiva com diversos outros especialistas da medicina como a abordagem ideal para tal tipo de procedimento.

Relato do Caso

Paciente masculino, 31 anos, hipertenso com história de CMH assimétrica diagnosticada há 6 anos. Apresentava antecedente familiar de CMH e morte súbita, tendo seu pai realizado cirurgia para correção da hipertrofia septal. Foi admitido com queixa de dispneia ao repouso (classe funcional IV - NYHA), associada à ortopneia e dispneia paroxística noturna. Estava em uso de atenolol 100 mg/dia, verapamil 160 mg/dia e furosemida 80 mg/dia. No exame físico, foi evidenciado sopro sistólico ejetivo padrão crescendo e decrescendo em foco aórtico acessório.

Durante investigação diagnóstica há 4 anos, a ressonância magnética cardíaca mostrou presença de hipertrofia ventricular esquerda com predomínio septal determinando obstrução de via de saída, além de insuficiência mitral e de realce tardio miocárdico focal em parede anterosseptal, compatível com fibrose na junção ventricular. A espessura da parede septal anterior era de 11 mm e da lateral posterior de 14 mm.

Na admissão, foi realizado um ecocardiograma que evidenciou ventrículo esquerdo com desempenho sistólico hiperdinâmico, sem alterações da mobilidade segmentar e com padrão restritivo, septo ventricular de 19 mm, parede posterior do ventrículo esquerdo de 14 mm, diâmetro diastólico e sistólico do ventrículo esquerdo de 47 e 26 mm, respectivamente, e valva mitral com movimento sistólico anterior da cúspide anterior. O gradiente sistólico máximo intraventricular foi estimado em 92 mmHg.

Devido à persistência de sintomas limitantes na vigência de tratamento medicamentoso pleno, optou-se pela ASA para alívio dos sintomas. O procedimento foi realizado com auxílio do ETE tridimensional, que demonstrava gradiente intraventricular de 104 mmHg no início do procedimento (Figura 1).


Alguns autores preconizam a ablação septal através da cateterização seletiva do maior ramo septal (neste caso, o 2º ramo septal - Figura 2), responsável pela irrigação da porção médio-basal do septo interventricular, conforme observado após a injeção de contraste ecográfico, seguindo-se a infusão lenta de álcool absoluto1,2. Contudo, em nosso caso, tanto após a oclusão do ramo quanto após a infusão de álcool, não se observou diminuição do gradiente. Ante a ausência de resultado efetivo, procedeu-se à procura de outro ramo com potencial efeito terapêutico. Apesar do reduzido calibre e comprimento, a cateterização do 1º ramo septal com oclusão por cateter-balão resultou em queda do gradiente ao ETE tridimensional associado à redução septal, os quais foram restaurados ao aspecto basal após a desinsuflação do balão. Além disto, a injeção de contraste ecográfico demonstrou uma maior área de irrigação da porção médio-basal do septo interventricular do 1º ramo septal quando comparado ao 2º. Com base nesses achados, procedemos à alcoolização com 2 ml do 1º septal, com redução do gradiente intraventricular pela manometria invasiva para 21 mmHg e pelo ETE tridimensional para 26 mmHg, sem complicações.


Após 3 dias da intervenção, um novo ecocardiograma foi realizado e evidenciou septo ventricular de 16 mm, gradiente da via de saída do ventrículo esquerdo de 46 mmHg e melhora da alteração diastólica (padrão pseudonormal). O paciente evoluiu estável hemodinamicamente e assintomático, recebendo alta após quatro dias em uso de atenolol 50 mg por dia.

No retorno de um mês, o paciente queixou-se de um episódio de dor precordial ao repouso seguida de síncope, sendo aumentado o atenolol para 100 mg ao dia. No seguimento de quatro meses, apresentava-se assintomático.

Discussão

O principal achado deste relato de caso é que a melhor técnica de ASA envolve a interação de múltiplos profissionais das diversas áreas da cardiologia e da medicina dedicados a este tipo de intervenção.

A alcoolização inicial do grande ramo septal não resultou na melhora hemodinâmica esperada, conforme prontamente identificado pelo ETE. Logo em seguida, a identificação morfológica de outro alvo terapêutico pela angiografia (1º ramo septal) foi confirmada como de funcionamento importante pelo ETE, possibilitando sucesso do procedimento.

Tipicamente, o primeiro grande ramo septal acessível é identificado pela angiografia e selecionado para ablação1,2. No entanto, imagens ecocardiográficas durante o procedimento podem sugerir a alcoolização de outro ramo, conforme a localização da fibrose septal provocada durante o procedimento. O ETE tridimensional se destaca em tal contexto ao auxiliar na identificação correta da artéria responsável pela hipertrofia septal, e, assim, evitar a alcoolização de ramos que irriguem o músculo papilar ou a parede livre do ventrículo direito3.

A anestesia geral é utilizada com frequência, proporcionando maior segurança durante o procedimento. Esta é aconselhável especialmente quando exista risco de instabilidade cardiorrespiratória durante o procedimento. O anestesista deve conhecer as peculiaridades dos procedimentos cardiológicos invasivos e, em particular, da ASA, pois a manipulação do cateter, cateter-balão, cordas-guias e do álcool podem provocar eventos agudos.

O bloqueio atrioventricular completo é uma complicação que apresenta resolução espontânea na maioria dos casos em até 13 dias, sendo que menos de 10% necessitam de marca-passo definitivo, principalmente se a intervenção é auxiliada pelo ecocardiograma1,3-5. O infarto agudo do miocárdio transmural, com formação de áreas potencialmente arritmogênicas, e a comunicação interventricular são outras possíveis complicações. Dependem, fundamentalmente, do tamanho da área de necrose provocada pela quantidade de álcool injetada. A utilização das imagens ecográficas durante o procedimento mostrou-se eficaz em localizar o melhor local para injeção alcoólica, também reduzindo tais complicações1-3.

O episódio de síncope pós-procedimento pode ter ocorrência secundária à arritmia, uma vez que o paciente apresentava antecedente familiar de morte súbita e realce tardio miocárdico focal na ressonância magnética, podendo ser candidato a implante de cardioversor-desfibrilador implantável.

Ainda não está bem definido na literatura se a alcoolização septal percutânea da CMH septal assimétrica altera o prognóstico do paciente. Contudo, sua qualidade de vida, representada por melhora dos sintomas e da capacidade de exercício, seguramente aumenta1,2. Tal melhora pôde ser observada no presente caso, estando o paciente assintomático e com apenas uma única medicação após quatro meses do procedimento.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 05/10/11; revisado em 05/10/11; aceito em 10/04/12.

  • 1
    Rigopoulos AG, Seggewiss H. A decade of percutaneous septal ablation in hypertrophic cardiomyopathy. Circ J. 2011;75(1):28-37.
  • 2
    Fifer MA, Sigwart U. Controversies in cardiovascular medicine. Hypertrophic obstructive cardiomyopathy: alcohol septal ablation. Eur Heart J. 2011;32(9):1059-64.
  • 3
    Faber L, Seggewiss H, Gleichmann U. Percutaneous transluminal septal myocardial ablation in hypertrophic obstructive cardiomyopathy: results with respect to intraprocedural myocardial contrast echocardiography. Circulation. 1998;98(22):2415-21.
  • 4
    Chen AA, Palacios IF, Mela T, Yoerger DM, Picard MH, Vlahakes G, et al. Acute predictors of subacute complete heart block after alcohol septal ablation for obstructive hypertrophic cardioyopathy. Am J Cardiol. 2006;97(2):264-9.
  • 5
    Reinhard W, Ten Cate FJ, Scholten M, De Laat LE, Vos J. Permanent pacing for complete atrioventricular block after nonsurgical (alcohol) septal reduction in patients with obstructive hypertrophic cardiomyopathy. Am J Cardiol. 2004;93(8):1064-6.
  • Correspondência:

    Luiz Fernando Ybarra
    Rua Peixoto Gomide, 1653, Apto 142, Jardim Paulista
    CEP 01409-003, São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br