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As mãos como instrumentos diagnósticos em medicina: cabe tocar o paciente?

PONTO DE VISTA

As mãos como instrumentos diagnósticos em medicina: cabe tocar o paciente?

Roberto A. FrankenI; Marcelo FrankenII,III

IFaculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

IIUnidade Clínica de Coronariopatia Aguda do InCor - FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

IIIUnidade Coronariana Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Roberto A. Franken Rua Doutor Franco da Rocha, 163 / 52, Perdizes CEP 05015-040, São Paulo, SP - Brasil E-mail: frankenr@terra.com.br, franken@cardiol.com.br

Palavras-chave: Arterite de Takayasu, Stents; Stents Farmacológicos, Revascularização Miocárdica.

Michelangelo em sua obra intitulada A Criação de Adão na Capela Sistina retrata o toque de Deus dando vida ao primeiro homem, Adão. O simbolismo da obra mostra o toque como forma de dar vida. As mãos sempre tiveram importante significado nas artes plásticas, poesia, literatura, cinema, etc., mostrando solidariedade, caridade, afago, companheirismo, amor, afeto, cura, proteção, comprometimento, entre outros sentimentos.

A atividade médica, na evolução para o diagnóstico clínico das doenças, pode ser dividida em três momentos: o da comunicação1, o da técnica (conhecimentos e habilidades) e o do ritual.

De acordo com a tradição judaica o processo de cura de um paciente envolve os olhos, a boca e as mãos, o que hoje significaria dizer os processos de comunicação, de habilidade manual, e tudo o mais que os sentidos possam perceber do paciente e transmitir a ele.

O conceito de doença mudou com Thomas Sydenham, quando observou que os sintomas e sinais não eram doenças como supunha Hipócrates, mas manifestações da história natural de cada enfermidade, e que sintomas iguais poderiam aparecer em diferentes doenças. Em 1731, Leopold Auenbrugger, médico austríaco, observou que seu pai, dono de uma hospedaria, avaliava o nível do vinho dentro do tonel percutindo-o e demarcando-o na linha de mudança das características sonoras. Resolveu então fazer o mesmo no tórax de seus pacientes, indicando pela primeira vez sinais clínicos que permitiram o diagnóstico de doenças torácicas. Na evolução dos procedimentos propedêuticos, Laennec substituiu a ausculta direta do tórax pelo estetoscópio monoaural, afastando a cabeça do médico do corpo do paciente. Estes dois procedimentos foram talvez os primeiros marcos objetivos para o diagnóstico clínico das doenças.

Ao lado da história clínica, o exame físico permite que se faça o diagnóstico em até 85% dos casos.

No passado, o atendimento aos doentes consistia em rituais executados por bruxos, xamãs, pajés, feiticeiros, sacerdotes, reis etc. As mãos eram os principais instrumentos usados nestes rituais, que não se detinham no diagnóstico, mas apenas no poder pessoal do executante no alívio dos sintomas e não raramente na cura dos pacientes2.

A partir do século XVII, com Descartes, a medicina passa a ter como objetivo o diagnóstico e em seguida o tratamento adequado e específico para cada doença. Ficou, porém, no inconsciente coletivo da atividade médica o ritual, que hoje é o exame clínico, esperado e desejado pelo paciente. Não haveria outro motivo senão este para justificar a frequente observação de pacientes após atendimentos ambulatoriais "o médico nem colocou a mão em mim" e, por outro lado, o dito frequente do paciente sob cuidados de determinado médico como estar em boas mãos.

Faz parte da consulta médica o ato de colocar a mão sobre o paciente tanto do ponto de vista técnico quanto simbólico. Não se pode admitir uma consulta com um urologista sem o toque prostático, ou um exame ginecológico sem a palpação das mamas, pois esta é a expectativa justa do paciente, mesmo que se conheça a baixa sensibilidade e especificidade da palpação no diagnóstico precoce do câncer de mama e que para isso sejam em seguida solicitados mamografia e/ou ultrassom mamário, e para os homens a ultrassonografia pélvica e dosagem do PSA.

Hoje entendemos a colocação das mãos no paciente como um acordo de cumplicidade entre o médico e o doente, um compromisso de que tudo será feito no sentido da procura do diagnóstico e da excelência no tratamento além da solidariedade, algo como dizer "estamos juntos nesta empreitada".

O ensino médico tem desprezado a ênfase no exame clínico do paciente e nos dados que o mesmo pode fornecer juntamente com a história clínica. Após este momento levantam-se as hipóteses diagnósticas e, em seguida, com base nas hipóteses e na sensibilidade e especificidade dos dados, são solicitados os exames subsidiários mais adequados para o estabelecimento do diagnóstico.

As discussões e o ensino clássico à beira do leito deram lugar à análise dos dados nas telas dos computadores. Temos à mão prontamente exames de imagem, dados bioquímicos, sinais vitais, a prescrição sem a necessidade de conversar com o paciente ou sequer olhar para ele(a). O doente passa a ser um ícone na tela, não é mais uma pessoa, um paciente ou cliente, mas um Ipaciente, Icliente uma Ipessoa3. O doente no leito era o centro da discussão, agora a discussão é feita tendo no centro o monitor do computador. Perguntemos ao doente se o mesmo está feliz com este avanço tecnológico e a resposta certamente será não; o paciente prefere a relação da comunicação e da ritualização através das mãos e, aí sim, depois de cumprida esta fase, o uso da tecnologia. Conforme iniciamos o texto, o sucesso do desempenho profissional depende do conhecimento técnico, da habilidade, da capacidade de comunicação e da atuação. O trabalho do médico é reconhecido pelo ato médico, ou seja, está implícita a atuação, a teatralização, não como metáfora, mas como modelo, conforme preconizaram Pine e Gilmore4. O vendedor atua, o garçom atua, o barbeiro e o cabeleireiro atuam, a aeromoça atua, por que haveria de ser diferente com o médico? O exame clínico e o uso das mãos são a atuação do médico, que completa o ritual com a obtenção de informações valiosas para a composição do diagnóstico. A Walt Disney Company reconhece o fato ao considerar em seus parques cada funcionário como um "cast member", isto é, um membro do elenco. Os hospitais entenderam essa lógica ao tornarem suas instalações menos austeras, mais amigáveis, desde a entrada das salas de espera até os quartos dos pacientes. O cenário tornou-se mais palatável e por que não fazer o mesmo com a atuação do médico?

Quando em 19945 os Drs. Hillel Finestone e David Conter da University of Western Ontario publicaram no Lancet um artigo que discutia a atuação médica contendo um componente de atuação teatral foram criticados. Escreveram os autores: "Se os médicos não possuírem as necessárias habilidades para satisfazerem as necessidades emocionais dos pacientes, o trabalho não estará completo". Acreditam, pois, os autores que o treinamento dos estudantes deveria incluir treinamento em atuação, focado na transmissão de respostas a estas necessidades emocionais "o atuar médico, ao contrário da teatral, não é uma simulação, é uma troca emocional, dirigida, produzida, desenvolvida, pelo médico". O paciente é o espectador, coadjuvante deste processo e é quem faz o script sobre o qual devemos atuar.

A medicina atualmente descreve métodos diagnósticos por meio do implante de equipamentos no subcutâneo, propõe tratamentos individualizados através de estudos genéticos6,7, porém não pode prescindir dos diversos atos do desempenho médico, do ritual esperado pelo paciente, da comunicação para obtenção da história, do toque manual para o exame físico e, por fim, da tecnologia, para que se estabeleça o mais precioso diagnóstico e consequente tratamento.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 26/06/12; revisado em 29/10/12; aceito em 29/10/12.

  • 1. Franken RA, Franken M. Comunicação médica: um atributo em extinção. Rev Soc Bras Clin Med. 2010;8(4):373-5.
  • 2. Welch JS. Ritual in Western medicine and Its role in placebo healing. J Relig Health. 2003;42(1):21-33.
  • 3. Verghese A, Brady E, Kapur CC, Horwitz RI. The bedside evaluation: ritual and reason. Ann Intern Med. 2011;155(8):550-3.
  • 4. Pine BJ, Gilmore JH. The experience economy:work is theatre and every business a stage. Boston: Harvard Business School Press; 1999.
  • 5. Finestone HM, Conter DB. Acting in medical practice. Lancet. 1994;344(8925):801-2.
  • 6. 2020 visions. Nature. 2010;463(7277):26-32.
  • 7. Topol E. The creative destruction of medicine: how the digital revolution will create better health care. New York: Basic Book; 2012.
  • Correspondência:

    Roberto A. Franken
    Rua Doutor Franco da Rocha, 163 / 52, Perdizes
    CEP 05015-040, São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Jan 2013
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