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Os desfibriladores na síndrome de Jervell e Lange-Nielsen

RELATO DE CASO

Os desfibriladores na síndrome de Jervell e Lange-Nielsen

Eduardo Arrais RochaI; Francisca Tatiana Moreira PereiraI; Marcelo de Paula Martins MonteiroI; Almino Cavalcante Rocha NetoI; Carlos Roberto Martins Rodrigues SobrinhoI; Mauricio ScanavaccaII

IUniversidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE

IIIncor - Instituto do Coração, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Eduardo Arrais Rocha Av. Padre Antônio Tomás, 3535 / 1301 - Cocó CEP 60190-020 - Fortaleza, CE - Brasil E-mail: : eduardoa@cardiol.br, eduardoa@usp.br

Palavras-chave: Desfibriladores implantáveis, síndrome de Jervell-Lange Nielsen / mortalidade, sincope.

Introdução

A síndrome de Jervel e Lange-Nielsen (SJLN) é uma doença geneticamente determinada, caracterizada por surdez congênita, intervalo QT longo e alta letalidade devido aos episódios de taquicardia ventricular polimórfica do tipo torsade de pointes (TDP) que ocorrem precocemente na infância1,2 . Assim como nas outras formas de síndrome do QT longo congênito, o implante do desfibrilador automático é indicado nos pacientes que já apresentaram parada cardíaca ou naqueles com síncopes recorrentes apesar do uso de betabloqueadores. Entretanto, a experiência clínica com crianças com SJLN submetidas a implante de CDI (cardioversor-desfibrilador implantável) é limitada.

O objetivo deste relato é descrever a evolução clínica de dois pacientes, um menino de 3 anos e uma menina de 17 anos, com diagnósticos de SJLN, submetidas a implantes de CDI.

Caso 1

Paciente MAT, 3 anos, sexo masculino, com surdez congênita, história de síncopes recorrentes desde o primeiro ano de vida, muitas com convulsões e cianose. Os pais relacionavam as crises com estresse físico, medo, emoção e raiva. Apresentava distúrbio de comportamento, com agitação e agressividade. Avaliação neurológica, eletroencefalograma e TC de crânio foram normais, sendo diagnosticado inicialmente, de forma errônea, como "distúrbio psicológico e tomada de choro" (hold breath spells). Após encaminhamento para serviço cardiológico, foi feito o diagnóstico da SJLN pela história clínica e eletrocardiograma, que revelava ritmo sinusal e intervalo QTc prolongado (630 ms). O Holter de 24 horas não detectou arritmias ventriculares e confirmou o intervalo QT longo. O ecocardiograma bidimensional era normal.

Foi iniciado tratamento com metoprolol até a dose de 50 mg/dia. Não apresentava bradicardia nos exames, mesmo após medicação. Foi fornecida orientação familiar, com apoio psicológico e pedagógico. O paciente apresentava crises de broncoespasmo severo por asma brônquica, ocasião em que se suspendia a medicação. Devido às síncopes recorrentes, foi realizada simpatectomia cervicotorácica esquerda. A evolução inicial foi satisfatória, com evidência da denervação simpática pela anisocoria (miose esquerda), discreta ptose palpebral esquerda e aquecimento do membro superior esquerdo (em comparação ao direito). Entretanto, durante um teste de estresse psicológico (a chegada de um grupo de médicos no quarto para simular coleta de sangue), realizado três dias após a simpatectomia, a criança apresentou episódio de fibrilação ventricular, necessitando de reanimação cardiopulmonar e desfibrilação elétrica. Após esse evento, foi submetida a implante de desfibrilador interno automático, realizado sem intercorrências, por via epicárdica, com gerador unicameral posicionado no abdome inferior e mantido o tratamento com metoprolol.

Durante os 13 meses seguintes, ocorreram 105 choques apropriados; o último evento ocorreu após 4 meses sem choques, quando apresentou quadro de infecção respiratória e broncoespasmo, que motivou a suspensão abrupta do metoprolol. Dois dias após, apresentou "tempestade arrítmica", com sequência de 48 choques apropriados no mesmo dia. Foi levado para a emergência, onde apresentou parada cardíaca, necessitando de reanimação e desfibrilação externa devido à bateria esgotada. O paciente foi entubado e sedado, mas apresentou óbito no mesmo dia, 8 horas após o início do quadro.

Caso 2

FMS, 17 anos, com surdez congênita, histórico de síncopes desde os 3 anos de idade, algumas convulsivas. Era hipertensa e portadora de insuficiência renal crônica desde a infância, em início de diálise recente. ECG com ritmo sinusal, QTcB (Bazzet) 633 ms e QTcH (Hodges) 571 ms, ECGs com alternância de onda T e períodos de QT muito aberrante. O ecocardiograma mostrava disfunção ventricular esquerda moderada. Foi submetida a implante de cardiodesfibrilador interno automático em julho de 2010, devido à refratariedade ao uso de betabloqueador. Apresentou tempestade arrítmica em janeiro de 2011, com 122 episódios de TV polimórfica e FV, revertidas com choques apropriados. Estava em uso de carvedilol e lasix. Nova tempestade arrítmica ocorreu após 6 meses, mesmo em uso de altas doses de carvedilol, na vigência de hipocalemia leve, sendo internada novamente e trocado o carvedilol pelo metoprolol, com boa evolução até o momento (6 meses depois).

Discussão

A síndrome de Jervell e Lange-Nielsen representa um subgrupo de extrema gravidade dentro das variantes genéticas da síndrome do QT longo. Ela decorre de uma mutação nos genes KCNQ1 ou KCNE1, que codificam o canal iônico de potássio (Iks), sendo autossômica recessiva. Seu tratamento costuma ser objeto de grande discussão pelos graves e inúmeros episódios de taquicardia ventricular, que são em geral insuficientemente tratados com betabloqueadores e simpatectomia, tendo os mesmos elevada mortalidade3,4. A estratificação de risco pode ser realizada com teste genético (caro e pouco acessível), idade de início das síncopes (pior quanto mais precoce), sexo (masculino com evolução mais desfavorável), sintomas na apresentação do quadro (parada cardíaca) e grau de prolongamento do intervalo QT (>500 ms). A terapia com os desfibriladores internos impõe-se como terapêutica adicional, entretanto pouco se conhece da evolução desses pacientes quando implantado o CDI5,6. No presente trabalho, apresentamos dois casos, ambos com crises de tempestades arrítmicas refratárias e prolongadas.

No primeiro caso, fatal, o paciente era asmático, mesmo assim mantinha-se em uso de betabloqueador seletivo, pois houve insucesso da simpatectomia esquerda. Apresentou crise de tempestade arrítmica durante episódio de broncoespasmo quando foi suspenso o uso do betabloqueador. Essa criança já havia apresentado inúmeros outros episódios de choques efetivos, não sincopais, mesmo com doses efetivas de betabloqueador, tendo inclusive mudado espontaneamente seu comportamento, pois atribuía os choques a esforços e mau comportamento.

No segundo caso, não fatal, a paciente era portadora também de miocardiopatia dilatada hipertensiva, insuficiência renal dialítica, com CDI implantado por prevenção secundária, apresentando episódio prolongado de tempestade arrítmica por TP e FV, tratados efetivamente pelo dispositivo, na primeira, justificada pelo uso de baixas doses de betabloqueador e, na segunda, devido à hipocalemia. Nessa paciente, programa-se a realização da simpatectomia.

Conclusão

Os desfibriladores internos automáticos representam opções terapêuticas na síndrome do QT longo congênito, em especial em subgrupos de alto risco e na falência do uso de betabloqueadores. Na SJLN, parece ser uma associação salvadora devido à extrema gravidade, entretanto complicada pela alta incidência de tempestades arrítmicas, necessitando de múltiplos choques. Como se trata de doença muito rara, a avaliação de estratégias terapêuticas é difícil de ser realizada, inclusive do impacto na sobrevida, considerando que muitos episódios de torsades são autolimitados.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Rocha EA; Obtenção de dados: Rocha EA, Pereira FTM, Monteiro MPM; Análise e interpretação dos dados: Rocha EA, Pereira FTM, Monteiro MPM, Rocha Neto AC; Redação do manuscrito: Rocha EA, Rocha Neto AC, Scanavacca M; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Rocha EA, Pereira FTM, Monteiro MPM, Rodrigues Sobrinho CRM, Scanavacca M.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 13/05/12; revisado em 21/08/12; aceito em 18/10/12.

  • 1. Schwartz PJ, Spazzolini C, Crotti L, Bathen J, Amlie JP, Timothy K, et al. The Jervell and Lange Nielsen syndrome: natural history, molecular basis, and clinical outcome. Circulation. 2006;113(6):783-90.
  • 2. Jervell A, Lange-Nielsen F. Congenital deaf-mutism, functional heart disease with prolongation of the Q-T interval and sudden death. Am Heart J. 1957:54(1):59-68.
  • 3. Schwartz PJ, Spazzolini C, Priori SG, Crotti L, Vicentini A, Landolina M, et al. Who are the long QT syndrome patients who receive an implantable cardioverter defibrillator and what happens to them?: data from the European Long-QT Syndrome Implantable Cardioverter-Defibrillator (LQTS ICD) Registry. Circulation. 2010;122(13):1272-82.
  • 4. Goldenberg I, Moss AJ, Zareba W, McNitt S, Robinson JL, Qi M, et al. Clinical course and risk stratification of patients affected with the Jervell and Lange-Nielsen syndrome. J Cardiovasc Electrophysiol. 2006;17(11):1161-8.
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  • 6. Daubert JP, Zareba W, Rosero SZ, Budzikowski A, Robinson JL, Moss AJ. Role of implantable cardioverter defibrillator therapy in patients with long QT syndrome. Am Heart J. 2007;153(4 Suppl):53-8.
  • Correspondência:

    Eduardo Arrais Rocha
    Av. Padre Antônio Tomás, 3535 / 1301 - Cocó
    CEP 60190-020 - Fortaleza, CE - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013
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