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Síndrome de balonização apical durante coronariografia diagnóstica

RELATO DE CASO

Síndrome de balonização apical durante coronariografia diagnóstica

Helder Dores; Luís Raposo; Jorge Ferreira; Maria João Andrade; Manuel Almeida; Miguel Mendes

Serviço de Cardiologia - Hospital de Santa Cruz, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental - Lisboa

CorrespondênciaCorrespondência: Helder Dores Rua José Cardoso Pires, N5, 7A, Lumiar 1750-356, Lisboa E-mail: heldores@hotmail.com

Palavras-chave: Oclusão Coronária/diagnóstico, Cardiomiopatia de Takotsubo/diagnóstico, Angiografia Coronária, Cateterismo Cardíaco, Meios de Contraste.

Introdução

As situações de instabilidade hemodinâmica durante a realização de coronariografia são mais comuns em doentes com doença coronária grave, sobretudo na presença de síndromes coronárias agudas. Raramente podem ocorrer em contexto eletivo, mesmo na ausência de doença coronária, devido à embolização gasosa inadvertida e ao aumento da vasorreatividade coronária1,2.

O vasospasmo coronário tem sido implicado como um dos possíveis mecanismos fisiopatológicos envolvidos na miocardiopatia de Tako-tsubo (MCT), embora estejam descritos poucos casos na literatura que comprovem esta associação3.

Apresentamos o caso de um paciente com instabilidade hemodinâmica transitória durante a realização de coronariografia eletiva, com evidência de vasospasmo multivaso e achados sugestivos de MCT.

Relato do Caso

Paciente do sexo masculino, 70 anos de idade, fumante antigo, sem outros fatores de risco ou antecedentes cardiovasculares conhecidos. Em maio/2004, por queixas de cansaço, realizou prova de esforço que revelou alterações do segmento ST interpretadas como isquemia silenciosa. Subsequentemente, realizou coronariografia que não mostrou doença coronária significativa, mantendo-se assintomático do ponto de vista cardiovascular.

Em março/2011 reiniciou queixas de cansaço para esforços moderados. Realizou nova prova de esforço com capacidade funcional normal (10,7 METs), resposta tensional adequada e alterações ST sugestivas de isquemia: infradesnivelamento em rampa ascendente nas derivações inferiores e laterais, iniciado no segundo estágio e normalizando no primeiro minuto da recuperação. A pedido do médico assistente efetuou nova coronariografia. Na primeira injeção na coronária esquerda (vaso dominante) observou-se fluxo lento e oclusão das artérias descendente anterior proximal e descendente posterior esquerda/circunflexa distal (Figura 1A). Seguiu-se um quadro crescente de angina, elevação generalizada do segmento ST, bradicardia progressiva e falência de bomba, sendo necessária a administração de atropina e dopamina.


Em virtude da possibilidade de vasospasmo e apesar da instabilidade hemodinâmica, administrou-se dinitrato de isossorbida intracoronário com normalização do segmento ST e estabilização hemodinâmica. As injeções seguintes (< 5 minutos após o início do quadro) revelaram restabelecimento do fluxo em toda a árvore coronária, sem evidência de lesões angiográficas significativas (Figura 1B). O ecocardiograma transtorácico mostrou acinesia com balonização apical (Figuras 2A e 2B) e hipercinesia dos segmentos basais do ventrículo esquerdo (VE). O doente foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos, onde se manteve estável. Laboratorialmente registrou-se elevação dos biomarcadores de necrose miocárdica - troponina I (valor de referência < 0,04 µg/L): 1,29 (< 2 h) - 5,77 (24 h) - 4,89 (36 h) - 0,23 (96 h) µg/L. No quinto dia de internamento o ecocardiograma revelou normalização da motilidade e função sistólica VE, recebendo alta hospitalar (Figuras 2C e 2D).


 

Um mês depois realizou uma ressonância magnética cardíaca que mostrou edema miocárdico, sem evidência de realce tardio ou alterações da contratilidade segmentar (Figuras 2D e 2F). Aos doze meses de seguimento o paciente encontra-se assintomático, sem ocorrência de eventos cardiovasculares.

Discussão

A MCT é uma entidade pouco frequente, com prevalência estimada em 0,7-2,5% dos doentes com suspeita de síndrome coronária aguda4. A designação de Tako-tsubo advém da semelhança morfológica entre o aspecto do VE em sístole na ventriculografia e um objeto cerâmico com esse nome usado como armadilha para polvos em comunidades piscatórias no Japão, país onde esta patologia foi originalmente descrita. Embora todos os segmentos ventriculares possam ser afetados, o achado mais típico é a acinesia medioapical de todas as paredes com hipercinesia basal. Ocasionalmente pode ocorrer movimento sistólico do folheto anterior da válvula mitral, e a fração de ejeção encontra-se diminuída na fase aguda5. Cerca de 1-5% dos casos cursam com instabilidade hemodinâmica, muitas vezes com a adoção de medidas emergentes como implantação de balão intra-aórtico6.

A etiopatogenia da MCT permanece mal-esclarecida, sendo a hiperestimulação do sistema nervoso simpático um dos mecanismos propostos. Este mecanismo mediador pode justificar a associação com situações de estresse, havendo relatos de casos em situações de ansiedade, estresse, precipitados pela administração de catecolaminas e em doentes com feocromocitoma7. O atingimento do cone apical e das porções médias do VE (sobretudo da parede anterior) está provavelmente relacionado com a maior densidade da inervação simpática nessas localizações.

O vasospasmo coronário, que pode resultar de hiperatividade simpática, constitui outra hipótese etiológica. Atualmente, o único mecanismo conhecido capaz de explicar as alterações da motilidade segmentar similares às evidenciadas na MCT é o stunning miocárdico, usualmente relacionado com oclusão coronária transitória. A reversibilidade das alterações contráteis, a ausência de lesões significativas, a libertação reduzida de enzimas cardíacas e a resolução rápida das alterações eletrocardiográficas enquadram-se nesta possibilidade. O vasospasmo multivaso pode justificar as alterações observadas na MCT. Essas alterações segmentares, que não correspondem à distribuição segmentar da circulação coronária, podem justificar-se pelo fato de o espasmo atingir o cone apical do VE, envolvendo a porção terminal dos três territórios coronários subsidiários. No entanto é preciso esclarecer se o vasoespasmo é o "fenômeno essencial", conduzindo à hipoxia miocárdica transitória, ou se ocorre paralelamente a outros mecanismos, que ao atuarem diretamente nos cardiomiócitos interferem com o acoplamento eletroquímico da mitocôndria. Apesar de raros, existem casos de MCT documentada durante coronariografia diagnóstica com demonstração de vasospasmo coronário generalizado8. A própria circunstância da realização do exame poderá instalar um quadro de estresse emocional que deflagre a MCT. Provavelmente esta patologia é um modelo de somatização da ansiedade com descarga maciça de neurotransmissores que conduzem à perturbação da vasomotricidade.

A ressonância magnética cardíaca permite a avaliação morfológica, ajuda no diagnóstico diferencial com outras entidades e constitui o exame gold-standard para estudar a função VE9.

O prognóstico da MCT é favorável, sendo o choque cardiogênico e as taquiarritmias as complicações mais prevalentes10.

No caso descrito, a ocorrência de espasmo coronário esteve provavelmente na gênese do episódio. A possibilidade de embolização gasosa, embora difícil de excluir, não foi documentada angiograficamente. O ecocardiograma na fase aguda revelou contratilidade segmentar típica da MCT, com normalização subsequente. Este achado pode indicar que estas alterações não são específicas desta patologia ou que a oclusão coronária transitória pode estar implicada na sua fisiopatologia. A elevação da troponina, sem evidência de necrose miocárdica na ressonância magnética, deve-se provavelmente à libertação do pool da troponina citoplasmática, que resulta do aumento da permeabilidade celular induzida pela isquemia, eventualmente subsequente ao vasospasmo, sem haver lesão irreversível das miofibrilas.

A coronariografia é um exame seguro, mas não desprovido de complicações, devendo suas indicações, mesmo com intuito diagnóstico, ser cuidadosamente ponderadas. A ausência de dor, à semelhança do eletrocardiograma de esforço anteriormente realizado, e a ausência de doença coronária na angiografia efetuada podem constituir argumentos favoráveis à escolha de um teste alternativo para exclusão de doença obstrutiva, como a angiografia por tomografia computadorizada, pelo seu elevado valor preditor negativo.

Esta forma de apresentação da MCT encontra-se pouco descrita na literatura3. No entanto, em situações de instabilidade hemodinâmica, durante a realização de coronariografias sem confirmação de doença coronária significativa e na ausência de outro motivo precipitante, a sua possibilidade deve ser considerada.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Dores H, Raposo L; Obtenção de dados: Dores H; Análise e interpretação dos dados: Dores H, Raposo L, Ferreira J, Andrade MJ, Almeida M; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Raposo L, Ferreira J, Andrade MJ, Almeida M, Mendes M.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 22/05/12, revisado em 04/08/12, aceito em 29/10/12.

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  • Correspondência:

    Helder Dores
    Rua José Cardoso Pires, N5, 7A, Lumiar
    1750-356, Lisboa
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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