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Implante valvar mitral por cateter pela via transapical para tratamento de bioprótese degenerada

RELATO DE CASO

Implante valvar mitral por cateter pela via transapical para tratamento de bioprótese degenerada

Guilherme L. M. Bernardi; Paulo R. L. Prates; Alexandre Shaan de Quadros; Paulo A. Salgado Filho; José C. L. Kruse; Rogério Sarmento-Leite

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul/ FUC (IC/FUC), Porto Alegre, RS - Brasil

Correspondência Correspondência: Rogério E. Sarmento-Leite Av. Princesa Isabel, 370, Santana CEP 90620-000, Porto Alegre, RS - Brasil E-mail: editoracao.pesquisa@cardiologia.org.br, editoracao-pc@cardiologia.org.br

Palavras-chave: Valva Mitral / cirurgia, Anuloplastia da Valva Mitral, Bioprótese.

Introdução

As válvulas cardíacas biológicas são cada vez mais utilizadas na prática clínica atual. Por outro lado, sua principal limitação é o aumento do risco de reoperação tardia em virtude da degeneração estrutural, o que aumenta progressivamente com o tempo1,2. Considerando que mais pacientes jovens são tratados com válvulas biológicas, torna-se inevitável um número crescente de biopróteses degeneradas que irão necessitar de novas trocas valvares2,3. No entanto, reintervenções são consideradas de alto risco pelo agrupamento de fatores adversos nesse grupo de pacientes4,5.

Apesar de ser considerada uma indicação "fora da bula" e ainda não constar em diretrizes, o implante valvar cardíaco transcateter do tipo valve-in-valve emerge como alternativa menos invasiva. Essa experiência, entretanto, ainda é limitada a poucos casos e séries publicadas6-9.

Relatamos o caso de um paciente com duas substituições cirúrgicas prévias da válvula mitral, apresentando-se com nova degeneração da bioprótese, insuficiência cardíaca grave e alto risco cirúgico, sendo submetido ao implante transcateter com técnica valve-in-valve com dispositivo Inovare (Braile Biomédica, São Paulo, Brasil).

Relato do caso

Homem de 74 anos, branco, foi admitido com dispneia progressiva, fadiga e tosse seca há três dias. Negava dor torácica, febre e calafrios. A história médica incluía diagnósticos de prolapso da válvula mitral, hiperplasia prostática benigna e insuficiência renal crônica (IRC) não dialítica. Há 13 anos apresentou endocardite infecciosa da válvula mitral que necessitou de tratamento cirúrgico com substituição por bioprótese (St. Jude nº 31). Depois de sete anos apresentou ruptura do folheto póstero-lateral da bioprótese necessitando de nova substituição valvar sendo trocada por outra bioprótese (St. Jude nº 31).

Ao exame físico apresentava regular estado geral, dispneico e afebril. Frequência cardíaca de 105 bpm e frequência respiratória de 24 mrpm. Ausculta cardíaca evidenciou sopro holossistólico de 5+/6+ em foco mitral com irradiação para região axilar esquerda. Ausculta pulmonar com estertores crepitantes em ambas as bases pulmonares. Abdômen sem alterações. Extremidades com boa perfusão periférica. Eletrocardiograma apresentava taquicardia sinusal com sobrecarga ventricular e atrial esquerda. Exames laboratoriais demonstraram infecção do trato urinário com agravo da função renal. Ecodopplercardiograma transtorácico e transesofágico demonstraram regurgitação mitral severa devido à ruptura do folheto póstero-lateral da bioprótese e ausência de vegetação com fração de ejeção (FE) de 65%.

O paciente evoluiu com sepse grave de foco urinário e piora da insuficiência cardíaca (IC) necessitando de internação em unidade de terapia intensiva (UTI). Recebeu alta da UTI após cinco dias com melhora da IC e da sepse, porém evoluindo com IRC agudizada. Creatinina sérica basal que era de 2,5 mg/dl passou para 4,2 mg/dl com depuração da creatinina endógena (DCE) calculada de 17 ml/min. O paciente foi avaliado por uma equipe multidisciplinar sendo considerado de alto risco cirúrgico para nova substituição da válvula mitral com Euroscore logístico = 17,8% e STS escore = 18,9% para mortalidade. Considerando esse quadro, optou-se pela implante transapical de válvula biológica transcateter expansível com balão Inovare (Braile Biomédica, São Paulo, Brasil) com método valve-in-valve.

O procedimento foi realizado em sala cirúrgica híbrida, sob anestesia geral, sem necessidade de circulação extracorpórea. Por meio de minitoracotomia lateral esquerda no 5º espaço intercostal foi exposto o ápice cardíaco. Confeccionada sutura em bolsa com fios de prolene 4.0 com reforço de pericárdio bovino para controlar a hemorragia e implantado fio de marca-passo epicárdico. Puncionado o ápice e avançado fio-guia 0,35" com auxílio de cateter JR dentro da veia pulmonar superior direita. Administrada heparina e introduzido bainha 24 F através do ápice sobre o fio-guia stiff. Realizado medida do diâmetro interno da bioprótese mitral com ecocardiograma transesofágico intraoperatório igual a 27 mm. Uma bioprótese bovina expansível com balão nº28, Inovare (Braile Biomédica, São Paulo, Brasil) foi introduzida pela bainha 24 F e posicionada sobre o ânulo mitral.

Realizado o posicionamento da prótese transcateter da válvula mitral sobre a bioprótese degenerada utilizando fluoroscopia e ecocardiografia simultaneamente. Com a utilização de rapid pacing foi expandido o balão e liberada a válvula (Figura 1). Não foi necessária a utilização de contraste iodado. Fios, cateteres e introdutor foram retirados, e o ápice fechado. Posicionado um dreno de tórax no espaço pleural esquerdo.


O paciente foi encaminhado para unidade de terapia pós-operatória, acordado e extubado. Não apresentou déficit neurológico nem necessitou de transfusão sanguínea. Ecocardiograma transesofágico imediato pós-implante demonstrou bioprótese normofuncionante sem qualquer leak paravalvular ou valvular com gradiente diastólico de pico igual a 16,4 e médio de 8 mmHg (Figura 2) e área valvar efetiva de 2,6 cm2.


O paciente evoluiu bem e foi transferido para o quarto no terceiro dia. Apresentou pneumonia aspirativa, que foi tratada com antibioticoterapia de amplo espectro. Recebeu alta depois de 13 dias do procedimento sem sinais de IC e com melhora parcial da função renal.

Discussão

A reoperação e substituição da válvula mitral pode estar associada à maior mortalidade em pacientes idosos com comorbidades5. Diretriz recente recomenda substituição da válvula mitral em pacientes com regurgitação grave sintomáticos mesmo com FE ventricular esquerda preservada10. Deve-se salientar, entretanto, que na insuficiência mitral, pelo fato de a ejeção também se dar para uma câmara de baixa pressão como o átrio esquerdo, pode haver um superestimação da função ventricular.

Em virtude do risco cirúrgico aumentado e da crescente evolução do implante valvular aórtico transcateter os procedimento de valve-in-valve são aplicados nesses pacientes de alto risco. No entanto, pela ausência de dados referentes à durabilidade dos dispositivos transcateter e os ótimos resultados em longo prazo com a cirurgia valvar convencional, essa nova abordagem ainda demanda considerações especiais a respeito dos critérios de seleção dos pacientes. Particularmente pacientes idosos com perfil de alto risco cirúrgico e indicação de reoperação se beneficiariam dessa técnica. O paciente relatado apresentava agravo da função renal após um episódio de sepse urinária e tinha indicação de reintervenção na válvula mitral. O acesso transapical foi de fácil obtenção e permitiu uma rota curta e reta até o plano mitral. Não ocorreram complicações hemorrágicas. Faz-se necessário uma cuidadosa medida ecocardiográfica do diâmetro interno da bioprótese para definir o tamanho do dispositivo a ser implantado. Fundamental, também, é a certificação de que a regurgitação pela válvula degenerada é central ou transvalvar, pois essa técnica não se presta para a correção de vazamentos perivalvares. O posicionamento e a liberação devem ser sempre auxiliados pelo ecocardiograma transesofágico. Nesse caso, por causa da injúria renal, não foi utilizado contraste radiológico, o que é recomendável e possível.

Embora esses achados sejam limitados por representarem a experiência de um único paciente, são corroborados por descrições similares da literatura. Conforme a diretriz atual europeia, essa técnica é de exceção e emerge como alternativa para o tratamento da disfunção de prótese biológica mitral em pacientes considerados inoperáveis ou de muito alto risco11. Ressalta-se que essa indicação deve ser sempre realizada pela avaliação minuciosa de uma equipe multidisciplinar reforçando o conceito e necessidade do Heart Team. Estudos adicionais, com maior poder e desfechos clínicos duros, são necessários para estabelecer o real papel desta abordagem.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Bernardi GLM, Prates PRL, Sarmento-Leite R; Obtenção de dados: Prates PRL, Quadros AS, Salgado Filho PA, Kruse JCL, Sarmento-Leite R; Redação do manuscrito: Bernardi GLM, Prates PRL, Sarmento-Leite R; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Prates PRL, Quadros AS, Sarmento-Leite R.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fonte de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 04/05/12, revisado em 05/09/12, aceito em 29/10/12.

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  • Correspondência:

    Rogério E. Sarmento-Leite
    Av. Princesa Isabel, 370, Santana
    CEP 90620-000, Porto Alegre, RS - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Maio 2013
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