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Epidemiologia cardiovascular: o legado de sólidos estudos nacionais e internacionais

EDITORIAL

Epidemiologia cardiovascular: o legado de sólidos estudos nacionais e internacionais

Sandra C. FuchsI,II; Andreia BioloI; Carisi A. PolanczykI,II

IPrograma de Pós-Graduação em Cardiologia - Faculdade de Medicina - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

IIInstituto de Avaliação de Tecnologias em Saúde (IATS/CNPq), Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS - Brasil

Correspondência Correspondência: Sandra C. Fuchs Hospital de Clínicas de Porto Alegre Centro de Pesquisa Clínica, 5º andar - Ramiro Barcelos, 2350 CEP 90.035-903, Porto Alegre, RS, Brasil E-mail: scfuchs@terra.com.br

Palavras-chave: Doenças Cardiovasculares / epidemiologia, Armazenamento e Recuperação da Informação / utilização.

A expressão "epidemiologia cardiovascular" tem sido muito usada em estudos observacionais que avaliam os fatores de risco para doença cardiovascular. Inclui, no entanto, pesquisa em biologia, comportamento, tratamento e prevenção de doença cardiovascular. Além de explorar a relação entre riscos de condições de saúde e estados de doença que não podem ser testados em estudos experimentais, a epidemiologia fornece arsenal metodológico para determinar relações de causa e efeito, estabelecendo a base para a prevenção cardiovascular.

Grandes estudos de coorte forneceram informação sobre a etiologia e a prevenção da doença cardiovascular, constituindo grande parte do atual conhecimento médico. O tão conhecido Framingham Heart Study acha-se entre os estudos de coorte pioneiros1. Esse estudo foi realizado em Framingham, uma cidade de 28 mil habitantes localizada cerca de 33 km a oeste de Boston. O estudo arrolou 6 mil norte-americanos de classe média, entre 30 e 59 anos de idade, a maioria de cor branca, acompanhados por 20 anos. Aquele estudo investigou fatores de risco para doença arterial coronariana e cardiovascular, tendo sido exemplarmente planejado, conduzido e analisado, estabelecendo a base de grande parte do conhecimento sobre causação de doença cardiovascular. Inúmeros estudos foram inspirados na experiência desenvolvida em Framingham, expandido a base teórica da epidemiologia de vários fatores de risco e doenças. O estudo Atherosclerosis Risk in Communities (ARIC) investigou a etiologia da aterosclerose e seus desfechos clínicos, e a variação dos fatores de risco cardiovascular, assistência médica e doença por raça, sexo, lugar e tempo. Diferentemente do estudo Framingham, o ARIC foi conduzido em três comunidades com diversidade étnica - Forsyth County, na Carolina do Norte, em subúrbios de Minneapolis, em Minnesota, e em Washington County, em Maryland - e em uma comunidade negra - em Jackson, no Mississippi. Arrolou 4 mil adultos, com idade variando de 45 anos a 64 anos, de cada comunidade, os quais foram examinados duas vezes, com um intervalo de três anos2. Esse estudo inovou ao utilizar extensa avaliação laboratorial bioquímica e ultrassom de carótida e artérias poplíteas3.

Os estudos Nurses' Health Study (NHS)4 e Health Professionals Follow-up Study (HPFS), realizados pela Universidade Harvard, em Boston, Massachusetts, começou abordando questões restritas a grupos profissionais de mulheres e homens. O estudo NHS foi planejado para investigar as consequências a longo prazo do uso de contraceptivos orais em um grupo de mulheres altamente cooperativas e motivadas, as enfermeiras norte-americanas, com idades variando entre 30 e 55 anos, em 1976. Tais mulheres viviam em 11 estados mais populosos dos EUA - Califórnia, Connecticut, Flórida, Maryland, Massachusetts, Michigan, Nova Jersey, Nova York, Ohio, Pensilvânia e Texas. Das 170 mil enfermeiras que foram contatadas por correio, cerca de 122 mil responderam ao questionário de base, sendo que, a cada dois anos, os membros receberam um questionário de acompanhamento com perguntas sobre doenças e condições relacionadas à saúde, tais como tabagismo, uso de hormônios e menopausa. Em seguimentos subsequentes, dados sobre dieta e nutrição foram coletados. Os estudos subsequentes Nurses' Health Study II e III avaliaram enfermeiras mais jovens, tendo expandido a investigação para outras questões5.

O estudo Health Professionals Follow-up Study arrolou 51.529 homens, a maioria dentistas e veterinários, mas também farmacêuticos, optometristas, médicos osteopatas e podiatras, incluindo uma pequena amostra de afro-americanos e americanos descendentes de asiáticos. O objetivo era investigar fatores nutricionais em homens com relação à incidência de câncer, doença cardíaca e outras doenças vasculares. A coleta de dados foi feita através de questionários auto-preenchidos com perguntas sobre doenças, consumo de álcool, tópicos relacionados à saúde, como tabagismo, atividade física e uso de medicamentos, preenchidos a cada dois anos, sendo a informação dietética coletada a cada quatro anos6. Os estudos comentados anteriormente deram origem a mais de 7.700 publicações e inúmeras citações, que constituem a base do atual conhecimento sobre doença cardiovascular. Esses grandes estudos de coorte constituem alguns poucos exemplos de estudos muito caros, que exigiram longos acompanhamentos, tendo sido financiados pelo governo norte-americano. No Brasil, os estudos pioneiros foram totalmente financiados por agências internacionais, como a coorte de nascimento de Pelotas, que arrolou mais de 5 mil recém-nascidos e suas famílias há cerca de 30 anos. A coorte tem mostrado o desenvolvimento de fatores de risco cardiovascular ligados aos desfechos perinatais7,8. Recentemente, o governo brasileiro começou a financiar grandes estudos epidemiológicos e clínicos. Além de responder importantes perguntas sobre a população brasileira, esses estudos contribuirão para o conhecimento universal sobre a causa, a prevenção e o tratamento da doença cardiovascular. O Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (ELSA) é um exemplo de grande coorte conduzida em uma população adulta brasileira9. Ele investiga fatores de risco e prognóstico de diabetes e doença cardiovascular em uma coorte de mais de 15 mil funcionários de universidades e hospitais afiliados. Grandes ensaios clínicos também tem sido patrocinados por agências brasileiras, tais como o estudo PREVER-Prevenção10 e PREVER-Tratamento11, e os ensaios clínicos randomizados sobre tratamento com células-tronco para condições cardíacas12,13. Outros estudos clínicos estão em andamento, como o ReHot, que investiga a prevalência e o tratamento de hipertensão resistente.

Tais estudos evidenciam a experiência dos pesquisadores brasileiros, que foram capazes de planejá-los e conduzi-los. As associações fortes detectadas em estudos observacionais e complementares aos ensaios clínicos randomizados ampliam o conhecimento sobre os determinantes, a prevenção e o tratamento da doença cardiovascular. Além dos benefícios científicos, estamos superando barreiras, aperfeiçoando habilidades de coordenação e condução de grandes estudos nacionais, formando jovens investigadores e orientando alunos de pós-graduação nas áreas clínica e em pesquisa. O legado desses estudos sólidos certamente mudará a maneira como entendemos e praticamos a cardiologia.

No I Simpósio sobre Epidemiologia Cardiovascular, recentemente realizado em Porto Alegre, professores, médicos, pós-doutores, e estudantes de Medicina vivenciaram a integração entre a pesquisa epidemiológica cardiovascular brasileira e a internacional. Os palestrantes brasileiros e internacionais, incluindo Paul K. Whelton (ALLHAT PI)14, Peter Libby (que investiga inflamação, chefe da divisão de Cardiologia do Brigham Women' Hospital, da Universidade Harvard)15, Thomas Lee (que investiga políticas e condutas em saúde da Universidade Harvard)16 e Lu Chi (Universidade Harvard)17, apresentaram seus principais projetos em andamento e várias sessões de 'estado da arte', atualizando o conhecimento sobre epidemiologia cardiovascular. Essa edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia contém um suplemento com 72 resumos apresentados no referido simpósio, exemplificando os resultados da pesquisa clínica e epidemiológica no Brasil. O I Simpósio foi uma homenagem ao legado do Professor Jorge Pinto Ribeiro. O Professor Jorge deixou uma enorme contribuição para a ciência e uma legião de órfãos acadêmicos, como pode ser visto por alguns dos seus últimos artigos publicados18-28. Seu trabalho sólido e sua competência ajudaram a aperfeiçoar a pesquisa e a prática da cardiologia, não apenas localmente, mas em escala nacional. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) vai homenageá-lo dando seu nome ao Centro de Pesquisa Clínica. Além disso, três prêmios foram instituídos com o seu nome: de Cientista destaque, aquele que deu a maior contribuição acadêmica; de Jovem Investigador excepcional; e de Formulador de Políticas, que ajudou o HCPA a alcançar seu objetivo de excelência em assistência à saúde e qualidade no cuidado. Esperamos que os leitores dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia apreciem a alta qualidade dos resumos apresentados no I Simpósio de Epidemiologia Cardiovascular.

Artigo recebido em 27/06/13; revisado em 27/06/13; aceito em 27/06/13

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  • Correspondência:

    Sandra C. Fuchs
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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