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Dextrocardia com situs inversus associada à miocardiopatia não compactada

RELATO DE CASO

Dextrocardia com situs inversus associada à miocardiopatia não compactada

Luiz Flávio Galvão GonçalvesI; Fernanda Maria Silveira SoutoII; Fernanda Nascimento FaroII; Rodrigo de Castro MendonçaI; Joselina Luzia Menezes OliveiraI,II; Antônio Carlos Sobral SousaI,II

IServiço de Ressonância Cardiovascular e Laboratório de Ecocardiografia, Hospital e Fundação São Lucas, Aracaju

IIDepartamento de Medicina, Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, SE - Brasil

Correspondência Correspondência: Joselina Luzia Menezes Oliveira Praça Graccho Cardoso, 76/402, São José CEP 49015-180, Aracaju, SE - Brasil E-mail: jlobelem@cardiol.br, joselinasergipe@ig.com.br

Palavras-chave: Dextrocardia, Cardiopatias Congênitas, Situs Inversus, Espectroscopia de Ressonância Magnética, Cardiomiopatias.

Introdução

Dextrocardia é uma condição rara, geralmente diagnosticada de maneira incidental e associada a outras anomalias congênitas. Caracteriza-se pelo posicionamento do coração no hemitórax direito, com seu eixo base-ápice orientado para a direita e inferiormente. Sua incidência associada a situs inversus, na população em geral, é de 1:10.0001. A miocardiopatia não compactada (CMP não compactada), por sua vez, tem incidência entre 0,014 e 1,3%2, pode ocorrer isoladamente ou associada a outros defeitos congênitos e decorre de falha no processo de compactação das fibras miocárdicas, resultando na persistência de trabeculações e recessos profundos, que se comunicam com a cavidade ventricular2. É descrita a rara associação dessas duas patologias, não tendo sido encontrados casos semelhantes ao relatado3-5.

Relato do caso

Paciente do gênero masculino, 53 anos, que, há cerca de 2 anos, apresentava episódios breves de lipotimia e pré-síncope quando da realização de atividades cotidianas, com acentuação recente da frequência da sintomatologia. Em relação aos hábitos de vida, o paciente era sedentário, tabagista e alcoolista social. Procurou médico generalista, que solicitou exames para avaliação inicial. O eletrocardiograma de repouso (ECG) revelou bradicardia sinusal (frequência cardíaca - FC: 39 bpm), desvio do eixo elétrico para a direita e bloqueio completo do ramo direito (Figura 1). O teste ergométrico foi considerado alterado devido à arritmia (extrassístoles ventriculares com períodos de bigeminismo durante o esforço e a recuperação). O Holter 24 horas evidenciou frequência cardíaca média de 37 bpm (mínima de 25 bpm e máxima de 81 bpm), com ritmo sinusal intercalado com ritmo juncional. A condução atrioventricular estava dentro da normalidade e a condução intraventricular revelava distúrbio do ramo direito. Foram observadas 11.596 pausas com duração maior do que 2 segundos, extrassístoles ventriculares monomórficas raras e isoladas e um episódio de taquicardia supraventricular não sustentada.


Tendo em vista a suspeita clínica de doença do nó sinusal, o paciente foi encaminhado ao cardiologista, que prossegui a investigação. Foi solicitado ecodopplercardiograma transtorácico, que revelou: dextrocardia (presença de situs inversus, coração posicionado em hemitórax direito com ápex voltado para a direita); imagens sugestivas de trabeculações no ventrículo esquerdo (VE); disfunção diastólica do VE de grau moderado com função sistólica global preservada; aumento atrial esquerdo (57 mm); regurgitação mitral de grau discreto.

Para elucidação diagnóstica e avaliação de miocardiopatia, foi realizada RMC e foram obtidas sequências de cine (balanced steady-state free precession - b-SSFP), anatomia com sequências de black-blood turbo spin-eco, com ponderação em T1 e T2 com e sem supressão de gordura (TSE BB-PD e STIR) e realce tardio (turbo-field echo com pulso de inversão e recuperação, 10 minutos após injeção de 0,2 mmol/kg de contraste com gadolínio; TE: 6,1; TR 3,0). Além da confirmação de dextrocardia associada a situs inversus, foi evidenciado aumento discreto da cavidade ventricular esquerda, associada a excesso de trabeculações em segmentos médio e apical de paredes inferior, lateral e anterior de VE. A relação miocárdio não compactado/compactado foi maior 2,3 e a massa trabeculada correspondeu a 38% da massa total de VE, sendo compatível com o diagnóstico de CMP não compactada. Não havia sinais diretos ou indiretos de restrição, trombos ou alterações pericárdicas. Não foram evidenciadas áreas de fibrose ou infarto detectáveis nas sequências após a injeção de gadolínio (Figura 2).


Realizado estudo eletrofisiológico; a estimulação ventricular programada provocou a indução de fibrilação ventricular (duas extrassístoles).

Como conduta, foi implantado cardiodesfibrilador (CDI). Quatro meses após a instalação do CDI, desenvolveu trombose venosa profunda em membro superior esquerdo. Foi anticoagulado e, atualmente, encontra-se assintomático, com estimulação atrial em 100% do tempo e sem arritmias ventriculares sustentadas, medicado com amiodarona 200 mg e aspirina 100 mg.

Discussão

A dextrocardia é uma malformação congênita rara, caracterizada pelo deslocamento do coração para o hemitórax direito, com seu eixo base-ápice orientado para a direita e inferiormente1. É provocada por fatores intrínsecos ao coração, não havendo relação com anormalidades extracardíacas. Possui anatomia intracardíaca variável e, geralmente, vem associada a outras anomalias congênitas, como defeitos nos septos interatrial e interventricular, anormalidades da artéria pulmonar e coração univentricular6.

A dextrocardia com situs solitus (dextroversão) corresponde ao mau posicionamento isolado do coração, estando outros órgãos normoposicionados4-6. Na dextrocardia com situs inversus, há formação de imagem em espelho do coração, grandes vasos e outros órgãos, com preservação da relação existente entre eles. Esta tem incidência aproximada de 1:10.0001, enquanto aquela, de 1:2.8006.

A CMP não compactada é uma cardiopatia congênita rara, com incidência entre 0,014 e 1,3% marcada por uma anormalidade da morfogênese endomiocárdica devido a uma parada da compactação das suas fibras2. Caracteriza-se pela presença de trabéculas numerosas e proeminentes com recessos intertrabeculares que penetram profundamente através do miocárdio ventricular, formando uma frouxa rede de fibras musculares entrelaçadas. Ocorre comprometimento isolado de VE em 59% dos pacientes e biventricular em 41%. Apresenta-se nas formas esporádica e familiar, sendo que apenas nesta foram descritos genes relacionados à enfermidade7.

A história natural da doença ainda não está bem estabelecida. Os pacientes portadores de CMP não compactada podem permanecer assintomáticos durante toda a vida ou evoluir com sinais e sintomas de insuficiência cardíaca (53%), taquicardia ventricular (41%) ou eventos tromboembólicos decorrentes de trombos nos átrios ou nos recessos intertrabeculares (24%). A morte súbita arrítmica é a principal causa de mortalidade2,4.

A ecodopplercardiografia é a modalidade diagnóstica de primeira escolha na avaliação de miocardiopatias, e a incorporação de novas técnicas, como o Doppler tissular, strain e strain rate, e speckle tracking, tem sido útil na distinção entre trabeculação miocárdica normal e CMP não compactada2. Jenni e cols.8, baseados em estudos observacionais, descreveram, com boa acurácia, os seguintes critérios para o diagnóstico ecocardiográfico de CMP não compactada: (a) presença de trabéculas numerosas (pelo menos quatro na projeção apical) e proeminentes com recessos intertrabeculares profundos; (b) parede ventricular com duas camadas, sendo a espessura da camada não compactada pelo menos duas vezes maior do que a espessura da camada compactada epicárdica; (c) demonstração, mediante o colorDoppler, da presença de fluxo sanguíneo diretamente da cavidade ventricular, dentro dos recessos intertrabeculares; (d) acometimento mais comum das regiões lateral média, inferior média ou apical de VE; e (e) ausência de outras anormalidades cardíacas. Todavia, a ecocardiografia é operador-dependente e ainda apresenta certas limitações, como o diagnóstico errôneo de CMP não compactada em indivíduos normais portadores de trabeculações finas9. Assim, sobretudo nos casos com janela ecocardiográfica inadequada, a associação de métodos de imagem é útil para a confirmação ou a exclusão do diagnóstico de CMP não compactada. Nesse sentido, a utilização subsequente da RMC é de grande valia por apresentar maior acurácia diagnóstica devido à visualização cardíaca tridimensional. Já foi demonstrado, em uma amostra de sete pacientes portadores de CMP não compactada, que uma relação > 2,3 entre a camada de miocárdio não compactado e a de compactado durante a diástole tem sensibilidade de 86% e especificidade de 99% para o diagnóstico dessa patologia10. Jacquier e cols.10 observaram que a presença de massa trabeculada correspondendo a mais de 20% da massa total de VE conseguiria distinguir, com acurácia satisfatória, os pacientes com CMP não compactada dos controles normais, com sensibilidade e especificidade de 93,7%10. No caso em questão, foram encontrados os dois critérios acima descritos.

Atualmente tem sido postulado o uso associado de duas modalidades de imagem, incluindo a ecocardiografia e a RMC, para confirmar ou excluir o diagnóstico de CMP não compactada2. Contudo, é importante ressaltar que o diagnóstico de CMP não compactada não deve ser estabelecido baseado apenas nos critérios diagnósticos dos métodos de imagem. Kolhi e cols.9 demonstraram que cerca de 24% dos pacientes portadores de CMP dilatada e 8% dos controles normais preenchem critérios diagnósticos para CMP não compactada quando os critérios diagnósticos dos métodos de imagem são utilizados isoladamente. Este deve ser, portanto, um diagnóstico de exclusão.

Friedman e cols.4 e Baskurt e cols.5 relataram casos de associação de dextroversão e CMP não compactada no VE enquanto Grattan e cols.3 demonstraram dextroversão associada a CMP não compactada biventricular. Não foram encontrados trabalhos que descrevessem a associação de dextrocardia com situs inversus e não compactação miocárdica; este parece ser o primeiro caso descrito na literatura, evidenciando essa rara apresentação.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa e Obtenção de dados: Gonçalves LFG, Souto FMS, Faro FN, Mendonça RC, Oliveira JLM, Sousa ACS; Análise e interpretação dos dados: Gonçalves LFG, Mendonça RC, Oliveira JLM, Sousa ACS; Redação do manuscrito e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Gonçalves LFG, Souto FMS, Faro FN, Mendonça RC, Sousa ACS, Oliveira JLM.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 1/10/12; revisado em 12/01/13; aceito em 26/02/13.

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  • Correspondência:

    Joselina Luzia Menezes Oliveira
    Praça Graccho Cardoso, 76/402, São José
    CEP 49015-180, Aracaju, SE - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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