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A gravidade da febre reumática aguda em crianças do Estado de Pernambuco, Brasil

PONTO DE VISTA

A gravidade da febre reumática aguda em crianças do Estado de Pernambuco, Brasil

Lurildo Ribeiro SaraivaII; Cleusa Lapa SantosI; Cristina VenturaI; Maria Auxiliadora SobralI; Breno BarbosaII; Giordano Bruno ParenteI,II; Fernando MoraesI

IInstituto Materno-Infantil de Pernambuco Fernando Figueira - IMIP, Recife, PE - Brasil

IIDisciplina de Cardiologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE - Brasil

Correspondência Correspondência: Lurildo Ribeiro Saraiva Estrada do Arraial, 2405/704, Tamarineira CEP 52051-380, Recife, PE - Brasil E-mail: lurildo@cardiol.br, lurildocleano@hotmail.com

Palavras-chave: Febre Reumática; Cardiopatia Reumática; Insuficiência Cardíaca; Doenças das Valvas Cardíacas; Condições Sociais; Pobreza.

Introdução

Em trabalho anatomopatológico de 1970, Lira e cols.1 mostraram a gravidade da Doença Reumática Aguda (DRA) em Pernambuco, descrevendo 43% dos 52 casos estudados vistos na infância e realçando a relevância da cardiomegalia e o elevado índice de pericardite adesiva. Esse estudo contrariava a ideia de que a DRA era uma condição inerente a regiões de clima frio. Apesar de serem descritos em quase todas as regiões do mundo a redução da incidência e o aumento da prevalência da doença em face da aplicação do ecoDopplecardiograma no estudo de populações2, no nosso meio, mesmo observado paralelismo com essa constatação universal, surgem ainda formas de DRA graves, exigindo o manuseio cirúrgico precoce de lesões orovalvares em menores, com risco cirúrgico elevado.

Que razões presidem a permanência em Pernambuco de formas graves de moléstia quase extinta nos países desenvolvidos? A análise do quadro clínico de 13 crianças com apresentação grave da doença, estudadas mais detalhadamente, vistas em período curto de tempo - 18 meses - em um único hospital do Recife, oriundas de um universo de 54, revelando, assim, prevalência elevada, deve responder, em parte, essa questão.

Características clínicas de uma amostra de 13 pacientes

No período de janeiro de 2011 a junho de 2012, de um total de 54 crianças reumáticas agudas com cardite, com diagnóstico baseado nos Critérios de Jones modificados, atendidas no IMIP, 13 delas foram internadas com quadro grave, correspondendo a 24,2% dessa série, com DRA ativa. Em trabalho recente de hospital de Auckland, na Nova Zelândia3, em período de 12 anos, foram descritos 44 pacientes, o que mostra a representatividade da amostra, obtida em breve intervalo de 18 meses.

A tabela 1 expõe dados clínicos e laboratoriais que nos chamaram a atenção. Na análise podemos observar que:

a) O quadro de cardite reumática foi precedido de amigdalite em menos da metade dos casos, havendo febre e artrite em quase 70% deles;

b) Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC), incluindo Edema Agudo Pulmonar (EAP), ocorreu em 100% dos doentes, com Insuficiência Mitral (IM) diagnosticada nos mesmos 100%, acompanhada de Insuficiência Aórtica (IAo) em cerca de 1/3 dos casos - na gênese da IM teve relevância a ruptura de cordoalhas tendíneas da valva mitral em ¼ da série. Apesar da ICC, a Fração de Ejeção do Ventrículo Esquerdo (FEVE) se manteve normal ou exacerbada, exceto em 2 pacientes com IM com ruptura de cordoalhas e IAo - a FEVE normal está de acordo com a literatura, um dado que vem em desfavor de um "fator miocárdico" na gênese da ICC, que seria decorrente, sobretudo, do acometimento valvar4;

c) Registrou-se apenas um caso de coreia (caso 2 - 7,7% );

d) Houve cardiomegalia importante, com Índice Cardiotorácico (ICT) médio de 57,7%, atingindo até o alto valor de 71,7%;

e) Detectaram-se, em três ocasiões, valores muito acentuados para o número de leucócitos no sangue periférico, como também, em quatro vezes, elevado teor dos níveis de Antiestreptolisina O (AEO), contrariando o que está assentado por Décourt5, que reconhece aumento discreto dessas variáveis, depondo por acentuada agressividade bacteriana e estimulação antigênica duradoura;

f) O valor do QTc - possível indicador de gravidade na DRA5 - se mostrou alongado em três enfermos (casos 4, 6 e 8 - 23,0%), conforme os valores de Décourt. Sobre o ECG, vimos em uma paciente com "anasarca" (!) - condição antiga, descrita por Bouillaud, na França, no ano de 1836, em um homem de 30 anos6 - complexos "QRS fragmentados", em extrassístoles originadas no ventrículo direito, sinal indicador de possibilidade de morte súbita7, bem como a presença de "ondas U invertidas" em precordiais esquerdas, surgidas em pouco tempo, indicando gravidade da sobrecarga ventricular, quase sempre presente nos enfermos (o bloqueio AV de primeiro grau foi visto em duas ocasiões - 15,3%);

g) Dos 13 pacientes, 10 (76,9%) foram submetidos ao implante de biopróteses em valvas mutiladas pelo reumatismo.

Características socioeconômicas e nutricionais da amostra

Estão expostos na tabela 2 os achados mais significativos.

Assim,

a) Com média etária de 8,5 ± 3,2 anos, e ligeira predominância masculina, procediam elas de todas as regiões do Estado de Pernambuco. Tal média etária está aquém do número considerado mais frequente que é o de 10 anos8;

b) Aglomeração (crowding), um dos principais fatores atuantes na gênese da DRA, distanciou-se dos altos valores australianos9 - 6,9/7,5 pessoas por dormitório - obtendo-se média de 1,5 pessoa/cômodo, pouco significativa. Mas podemos registrar 2 enfermos favelados em Recife (casos 9 e 11), residindo em "casas" de tábua/papelão, em um "pequeno vão", que comporta sala, dormitório e cozinha;

c) A renda familiar per capita revelou famílias carentes (média de R$ 138,20), duas delas em condição de miséria, segundo o governo federal (casos 2 e 4);

d) O estudo nutricional mostrou que os enfermos apresentavam estatura adequada, mas a análise do Índice de Massa Corporal (IMC) permitiu ver que 6delas tinham "magreza" (IMC -2 scores z), em uma única vez de caráter "acentuado" (caso 10, IMC -3 scores z), por perda recente de peso - a esse propósito, em Pernambuco, pesquisa recente sobre o comportamento da estatura de nossas crianças verificou que houve acréscimo dessa variável, no período 1945-2006, depondo por melhores condições de alimentação nos anos iniciais de vida, vez que a estatura é o parâmetro ecológico mais fiel a que o fator genotípico do crescimento se expresse livremente nessa etapa da vida10.

Características peculiares a doentes procedentes do meio rural

Três enfermos procedentes do sertão (4, 8 e 10 ) residiam em casas modestas, isoladas, em pequenas comunidades, distantes de aglomerados urbanos, sem o reconhecimento médico do que é "dor de garganta": desconhecendo os familiares o que é febre reumática, subitamente os menores têm expressão dramática do quadro clínico, contrariando os fatores epidemiológicos da doença, sobretudo os eventos necessários ao surgimento de cepas estreptocócicas virulentas5,8, para o que se faz necessária a passagem de aerossóis do micro-organismo "boca a boca", sob situação de aglomeração.O diagnóstico tardio da estreptoccocia provavelmente induz a bactéria a estimular incessantemente o sistema imunitário.

Conclusões

Em Pernambuco, ainda surgem formas graves de DRA, semelhantes às que foram descritas por Lira e cols.1 há 42 anos, não se podendo falar em "bolsões de miséria", pois são procedentes de todas as regiões do Estado. Pobreza, baixa renda per capita, má habitação8 e, sobretudo, a falta de diagnóstico da faringite estreptocócica são fatores envolvidos. A expressão clínica maior é a de cardite com ICC, onde se salientam a insuficiência mitral, com ruptura de cordoalhas tendíneas, cardiomegalia, pericardite adesiva, pneumonite e aspectos eletrocardiográficos incomuns. Há, assim, em todo o Estado, situação social desfavorável que induz o aparecimento de cepas estreptoccócicas agressivas, talvez ricas em Proteína M5. A prevenção primordial decorreria de melhor habitação e higiene8.

No nosso grupo, Santos atenta a um fato instigante: a desproporção entre o pequeno número de crianças com diagnóstico de DRA e o grande número de adultos portadores de valvopatia reumática, responsáveis por 40% das cirurgias cardíacas do país, como se entre os dois extremos, grande contingente de enfermos não tivesse a moléstia reconhecida: haveria aqui relevância para a cardite subclínica? Assim, os casos diagnosticados entre 5 e 14 anos poderiam incluir-se na expressão "a ponta de um iceberg", apenas.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Saraiva LR; Obtenção de dados: Ventura C, Sobral MA, Barbosa B, Moraes F; Análise e interpretação dos dados: Saraiva LR, Santos CL; Análise estatística: Parente GB; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Santos CL; Realização das cirurgias: Moraes F.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 11/01/13; revisado em 15/01/13; aceito em 23/04/13.

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  • Correspondência:

    Lurildo Ribeiro Saraiva
    Estrada do Arraial, 2405/704, Tamarineira
    CEP 52051-380, Recife, PE - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013
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