Acessibilidade / Reportar erro

Paternalismo, autonomia e ontologia

PONTO DE VISTA

Paternalismo, autonomia e ontologia

Max Grinberg; Antonio Sergio de Santis Andrade Lopes

InCor - HCFMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antonio Pinto, 04, apto. 21A, Paraisópolis CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil E-mail: max@cardiol.br, grinberg@incor.usp.br

Palavras-chave: Cardiomiopatias, Doenças das Valvas Cardíacas, Cardiopatia Reumática, Paternalismo.

O vínculo com o paciente, na fase assintomática da história natural da cardiopatia valvar reumática (CVR), trouxe certas lições para a comunicação médico-paciente que respeita tanto o paternalismo beneficente da Medicina (diretrizes, por exemplo), quanto os valores e preferências do ser humano (princípio da autonomia).

Aliança entre natureza e medicina

Como percebeu Aristóteles (384 AC-322 a.C.), a Natureza privilegia utilidades e, assim, quando ocorre CVR, é a natural plasticidade cardíaca, realizada como Adaptação Benéfica - Cardíaca Ontológica Remodeladora (AB-COR), ou simplesmente remodelação cardíaca1, que sustenta a preservação do bom desempenho ejetivo.

A Medicina valida o efeito "terapêutico" da AB-COR e desaconselha a sua interrupção por fármacos, plásticas e próteses valvulares enquanto o paciente permanece assintomático, em outras palavras, o miocárdio assim sinalizado2 torna-se conduta expectante. É notória a participação dessa "terapêutica da Natureza" nos algoritmos das diretrizes sobre valvopatia3 por meio da encruzilhada Sintomas?

Mas tal "terapêutica" da Natureza tem prazo de validade e, quando acontece o esgotamento da utilidade da AB-COR4, a sobrevivência à CVR necessita da aplicação da tecnociência da Medicina.

Naturismo e coração

A capacidade adaptativa natural do miocárdio tem leis universais "promulgadas" por notáveis como Otto Frank (1865-1944), Ernest Starling (1866-1927), Pierre Simon, Marquês de Laplace (1749-1827) e Jean-Louis-Marie Poiseuille (1797-1869). Já Thomas Wilkinson King (1809-1847)5 observou num coração isolado que a valva tricúspide cede a uma pressão com certo volume de líquido, o que não acontece com a valva mitral, concluindo que a Natureza fez da valva tricúspide uma válvula de segurança. A sobrecarga de volume determinada pela "tricuspidização" significa, pois, socorro da Natureza em face da limitação do ventrículo direito para suportar sobrecargas de pressão.

O miocárdio remodelado e a valva tricúspide insuficiente são, pois, utilidades naturais de sobrevivência humana, compreensíveis, ou pelo racional teológico de Edward Stone (1702-1768), que a Natureza coloca o remédio junto à doença - ele descobriu num pântano local de febres que a casca do salgueiro contém o ácido acetilsalicílico - ou pelo evolucionismo.

Consentimento

A ativação da plasticidade "terapêutica"6 da AB-COR acontece naturalmente, assim como a cicatrização, a coagulação e o calo ósseo. Ela é self, e a liberdade orgânica de acontecer dispensa consentimento do paciente e muito menos de esclarecimentos sobre o potencial de adversidades, como uma futura invalidez sistólica do miocárdio - assim como a cicatriz pode ser queloide, a coagulação pode dar efeito massa e o calo ósseo pode perpetuar desalinhamentos. Há, pois, semelhança do exposto com a deontológica negação de autonomia ao ser humano que se encontra sob iminente risco de vida.

É de se destacar que o benefício "terapêutico" da Natureza na condição de conduta expectante representa a substituição da submissão inconsciente do paciente pelo consentimento livre e esclarecido à exposição pelo médico. E quando o "endosso prescritivo" da atuação self para a manutenção da qualidade de vida pelo paciente não for mais válida, o emprego da tecnociência não self deve ser consentida ao médico, ou seja, exige-se do ser humano (o médico) - e não da Natureza- um atestado de não coerção. A ênfase à autonomia em Medicina nasceu da violência entre seres humanos que não pode ser admitida como natural.

Comunicação médico-paciente

Por sustentar uma fase assintomática da CVR habitualmente longa, a AB-COR dá ensejo a diálogos médico-paciente sequentes, consulta a consulta, nos quais, gradativamente, moldam-se expectativas mais realistas e emerge clareza sobre futuras ocasiões de consentimento. São oportunidades onde o uso da chamada competência narrativa7 afina a sintonia entre as explicações do recurso da Medicina e a absorção, a interpretação e a resposta do paciente, contribuindo para agregar empatia, profissionalismo e confiança.

Deste modo, quando chega a ocasião da "cirurgia agora sim", o clima da decisão mostra-se menos estressante, pois os antecedidos momentos "cirurgia ainda não" trabalharam os fundamentos para o consentimento. Evita-se, pois, a enxurrada de "inéditas" informações para resposta imediata e, assim, segundo o conceito de hot-cold empathy gap8, concernente a emoções em tomadas de decisão, reduzem-se as probabilidades tanto de baixa análise do futuro (o paciente prioriza livrar-se do mal presente e não se aprofunda sobre consequências mais distantes do método) quanto de subtratamento (o paciente rejeita a recomendação médica por um excessivo impacto do potencial de adversidades, o "efeito bula").

Ademais, ter a percepção que a Natureza disponibiliza o benefício da AB-COR sem antecipar males embutidos ensina que a comunicação visando a um presumido futuro consentimento livre e esclarecido a um benefício deve escalonar a ênfase sobre possíveis adversidades, de modo a não as tornar angustiantes "fatos desde muito antes".

Tempo para diálogo, tempo para análise critica, tempo para uso do bom senso, que são situações que favorecem a liberdade de expressão, têm o mérito de elucidar antagonismos entre o justificável pelo saber da Medicina e o consentido pela individualidade de determinado paciente.

Por isso, lembrando Pitágoras de Samos (580 a.C.-497 a.C.), quem percebeu que a combinação de organização e tempo faz de tudo e bem feito, e Sigismund Schlomo Freud (1856-1939), quem intuiu que uma infinidade de processos inconscientes impactam numa atitude dita consciente, o tempo a mais que vier a ser gasto na intersubjetividade médico-paciente contribui para o valor ético da integração entre deliberação, disponibilidade do sistema e efetiva aplicação de processos diagnósticos e terapêuticos.

Lição sobre paternalismo/autonomia

A grande lição da "terapêutica da natureza" AB-COR no campo da Bioética é a inconveniência de uma visão negativa radical do paternalismo. O maniqueísmo (Manes, séc. III), paternalismo é mal e autonomia é bem, pode restringir o médico quando entender que é essencial ser mais persuasivo com determinado paciente hesitante acerca de conduta mais recomendável à necessidade clínica. Não se conformar em ser um Poncio Pilatos significa fazer o bom uso da tensão profissional9 sustentada pela prudência e pelo zelo que aguça a percepção sobre conciliação entre as singularidades das evidências da Medicina e as diversidades comportamentais do paciente - muitas vezes em campos opostos. Deste modo, o médico pode mais apropriadamente trabalhar o ajuste fino para compatibilizar a prática de dois artigos sequentes do Código de Ética Médica de 2010, com o caput é vedado ao médico: art. 31 - Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas; art. 32 - Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

O empenho do médico pela obtenção do consentimento à tecnociência justificável ao caso não faz o paciente tornar-se inseguro de sua vontade, pois não havendo a pretensão de reprimir o livre pensamento, o objetivo é tão somente a racionalidade da escolha. Dispor-se a insistir no convencimento10 é cooperação moralmente aceitável com quem lhe procurou para conduzi-lo, é encorajamento para reação a inércias, é argumentação sadia em prol da sobrevivência, é entender as hesitações do ser humano pela queda (em relação aos animais) da eficiência instintiva. Ademais, quando perante vontades muito fortes para serem racionalizadas, é contribuição para que o paciente se conscientize que a negação poderá, pela evolução negativa do quadro clínico, resultar na realização do agora proposto sob pior prognóstico. Não se trata de lavagem cerebral, pela simples razão de que o médico consentiria na recomendação se fosse para si próprio.

A arquitetura de uma comunicação sobre tecnociência que é retroalimentada por uma desejável compaixão vai além do informativo-esclarecedor, que soa a aula teórica, é qualificada pelo que Erich Fromm (1900-1980) denominou de narcisismo benigno, ou seja, o vislumbre da realidade científica refletida pelo caso que, entretanto, não fecha os olhos para uma visão divergente, porventura contemplada pelo paciente. Autoridade sem autoritarismo.

A longevidade da fase assintomática da doença valvar (AB-COR dependente) que proporciona tempo-facilitação para as boas práticas da intersubjetividade médico-paciente pavimenta com legitimidade o caminho de deliberação sobre condutas, que tem ponto de partida no paternalismo (proposição do médico) e direcionamento para a autonomia (regulação pelo paciente), com diversas saídas ao longo do percurso, cada qual mais apropriada à especificidade das realidades da relação médico-paciente.

Paternalismo ou autonomia absolutos é quimera que numa conduta eletiva provoca o "fogo das ventas" que queima artigos do Código de Ética Médica. A temporalidade da Natureza nos serve de guia para a prudência de uma comunicação por construção "lápis e borracha". Pelo redesenho, cercas viram pontes que conectam o bom segundo o médico e segundo o paciente. A ponta do lápis fica fortalecida pelo racional da Medicina apreendido pelo paciente e a borracha torna-se mais macia pela compreensão pelo médico de como o paciente expressa suas necessidades e seus desejos.

Em suma, revelações continuadas numa comunicação médico-paciente estruturada podem reduzir assimetrias entre o demonstrável pela Medicina e o não refutável do sentimento do paciente e, assim, dar forma e naturalidade a momentos de tomada de decisão. Em decorrência, o paternalismo desliza bem azeitado para a autonomia, pari passu, em busca do ponto mais adequado de proporção entre os mesmos.

Por fim, a sigla AB-COR presta-se a representar a modelagem de relação médico-paciente que preza uma Medicina consentida e legitimada além do tecnicismo, cada letra com duplo significado: Autonomia/Acolhimento, Beneficência/Brasilidade, Comunicação/Compaixão, Organização/Otimismo e Respeito/Realismo.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa, Redação do manuscrito e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Grinberg M, Lopes ASSA.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 11/03/13, revisado em 26/04/13; aceito em 03/05/13.

  • 1. Frey N, Olson EN. Cardiac hypertrophy: the good, the bad, and the ugly. Annu Rev Physiol. 2003;65:45-79.
  • 2. Frangogiannis NG. Matricellular proteins in cardiac adaptation and disease. Physiol Rev. 2012;92(2):635-88.
  • 3. Tarasoutchi F, Montera MW, Grinberg M, Barbosa MR, Piñeiro DJ, Sánchez CR, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz Brasileira de Valvopatias - SBC 2011 / I Diretriz Interamericana de Valvopatias - SIAC 2011. Arq Bras Cardiol. 2011;97(5 supl. 3):1-67.
  • 4. Ferreira JC, Boer BP, Grinberg M, Brum PC, Mochly-Rosen D. Protein quality control disruption by PKCbii in heart failure; rescue by the selective PKCbii inhinitor, bIIV5-3. PLoS One. 2012;7(3):e33175.
  • 5. King TW. An essay safety-valve function in the right ventricle of the human heart and the gradations of this function in the circulation of warmed-blooded animals. London: S. Highley; 1837.
  • 6. Hill JA, Olson EM. Cardiac plasticity. N Engl J Med. 2008;358(13):1370-80.
  • 7. Sutrop M. Viewpoint: how to avoid a dichotomy between autonomy and beneficence: from liberalism to communitarianism and beyond. J Intern Med. 2011;269(4):375-9.
  • 8. Charon R. The patient-physician relationship. Narrative medicine: a model for empathy, reflection, profession, and trust. JAMA. 2001;286(15):1897-902.
  • 9. Grinberg M. Prudência na conduta em valvopatia. Arq Bras Cardiol. 2013;100:e38-e40.
  • 10. Loewenstein G. Hot-cold empathy gaps and medical decision making. Health Psychol. 2005;24(4 Suppl):S49-56.
  • Correspondência:

    Max Grinberg
    Rua Manoel Antonio Pinto, 04, apto. 21A, Paraisópolis
    CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br