Acessibilidade / Reportar erro

Apneia do Sono e Arritmia Cardíaca Noturna: Estudo Populacional

Resumos

Fundamento:

Os mecanismos relacionados às consequências cardiovasculares da apneia obstrutiva do sono incluem modificações abruptas no tônus autonômico, que podem desencadear arritmias cardíacas. Os autores tiveram como hipótese a ocorrência de arritmias cardíacas noturnas maiores em pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono.

Objetivo:

Analisar a relação entre a apneia obstrutiva do sono e o registro de anormalidade no ritmo cardíaco, durante o sono, em uma amostra populacional.

Métodos:

Estudo transversal com uma amostra representativa da cidade de São Paulo de 1.101 voluntários. A polissonografia de noite inteira foi realizada por meio de um sistema digital (EMBLA® S7000), durante o horário regular de sono do indivíduo. O canal de eletrocardiograma foi extraído, duplicado e, em seguida, analisado com um sistema Holter (Cardio Smart®).

Resultados:

Um total de 767 participantes, sendo 461 do sexo masculino, com idade média de 42,00 ± 0,53 anos, foi incluído nas análises. Pelo menos um tipo de distúrbio do ritmo cardíaco noturno (arritmia atrial/ventricular ou pausa) foi observado em 62,7% da amostra. A ocorrência de arritmias cardíacas noturnas foi mais frequente com o aumento da gravidade da doença. A perturbação do ritmo foi observada em 53,3% da amostra sem distúrbios respiratórios do sono, enquanto que 92,3% dos pacientes com grave apneia obstrutiva do sono apresentaram arritmia cardíaca. Ectopia atrial e ventricular isolada foi mais frequente em pacientes com apneia obstrutiva do sono moderada/severa quando comparada com controles (p < 0,001). Após controle de potenciais fatores de confusão, idade, sexo e Índice de Apneia-Hipopneia foram associados à arritmia cardíaca noturna.

Conclusão:

Arritmias cardíacas noturnas ocorrem com maior frequência em pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono, e sua prevalência aumenta com a gravidade da doença. Idade, sexo e o Índice de Apneia-Hipopneia foram os fatores preditores de arritmias nesta amostra.

Síndromes da Apneia do Sono; Arritmias Cardíacas; Sono; Apneia do Sono Tipo Obstrutiva


Background:

The mechanisms associated with the cardiovascular consequences of obstructive sleep apnea include abrupt changes in autonomic tone, which can trigger cardiac arrhythmias. The authors hypothesized that nocturnal cardiac arrhythmia occurs more frequently in patients with obstructive sleep apnea.

Objective:

To analyze the relationship between obstructive sleep apnea and abnormal heart rhythm during sleep in a population sample.

Methods:

Cross-sectional study with 1,101 volunteers, who form a representative sample of the city of São Paulo. The overnight polysomnography was performed using an EMBLA® S7000 digital system during the regular sleep schedule of the individual. The electrocardiogram channel was extracted, duplicated, and then analyzed using a Holter (Cardio Smart®) system.

Results:

A total of 767 participants (461 men) with a mean age of 42.00 ± 0.53 years, were included in the analysis. At least one type of nocturnal cardiac rhythm disturbance (atrial/ventricular arrhythmia or beat) was observed in 62.7% of the sample. The occurrence of nocturnal cardiac arrhythmias was more frequent with increased disease severity. Rhythm disturbance was observed in 53.3% of the sample without breathing sleep disorders, whereas 92.3% of patients with severe obstructive sleep apnea showed cardiac arrhythmia. Isolated atrial and ventricular ectopy was more frequent in patients with moderate/severe obstructive sleep apnea when compared to controls (p < 0.001). After controlling for potential confounding factors, age, sex and apnea-hypopnea index were associated with nocturnal cardiac arrhythmia.

Conclusion:

Nocturnal cardiac arrhythmia occurs more frequently in patients with obstructive sleep apnea and the prevalence increases with disease severity. Age, sex, and the Apnea-hypopnea index were predictors of arrhythmia in this sample.

Sleep Apnea Syndromes; Arrhythmias, Cardiac; Sleep; Sleep Apnea, Obstructive


Introdução

A Apneia Obstrutiva do Sono (AOS) é caracterizada pela fragmentação do sono1Kimoff RJ. Sleep fragmentation in obstructive sleep apnea. Sleep. 1996;19(9 Suppl):S61-6. e hipoxia repetitiva2Peled N, Greenberg A, Pillar G, Zinder O, Levi N, Lavie P. Contributions of hypoxia and respiratory disturbance index to sympathetic activation and blood pressure in obstructive sleep apnea syndrome. Am J Hypertens. 1998;11(11 Pt 1):1284-9. durante o sono. Associa-se a uma série de consequências cardiovasculares, como hipertensão arterial3Nieto FJ, Young TB, Lind BK, Shahar E, Samet JM, Redline S, et al. Association of sleep-disordered breathing, sleep apnea, and hypertension in a large community-based study. Sleep Heart Health Study. JAMA. 2000;283(14):1829-36. Erratum in: JAMA. 2002;288(16):1985.,4Peppard PE, Young T, Palta M, Skatrud J. Prospective study of the association between sleep-disordered breathing and hypertension. N Engl J Med. 2000;342(19):1378-84., síndrome metabólica5Bonsignore MR, Esquinas C, Barceló A, Sanchez-de-la-Torre M, Paternó A, Duran-Cantolla J, et al. Metabolic syndrome, insulin resistance and sleepiness in real-life obstructive sleep apnoea. Eur Respir J. 2012;39(5):1136-43. e insuficiência cardíaca6Paulino A, Damy T, Margarit L, Stoïca M, Deswarte G, Khouri L, et al. Prevalence of sleep-disordered breathing in a 316-patient French cohort ofs Tabela congestive heart failure. Arch Cardiovasc Dis. 2009;102(3):169-75.. Recentemente, a AOS foi associada ao aumento da mortalidade cardiovascular7Marin JM, Carrizo SJ, Vicente E, Agusti AG. Long-term cardiovascular outcomes in men with obstructive sleep apnea-hypopnea with or without treatment with continuous positive airway pressure: an observational study. Lancet. 2005;365(9464):1046-53.,8Marshall NS, Wong KK, Liu PY, Cullen SR, Knuiman MW, Grunstein RR. Sleepapnea as an independent risk factor for all-cause mortality: the Busselton Health Study. Sleep. 2008;31(8):1079-85., porém o reconhecimento da anormalidade e a instituição do tratamento efetivo com Pressão Positiva Contínua nas Vias Aéreas (CPAP) reduzem a taxa de eventos cardiovasculares fatais e não fatais7Marin JM, Carrizo SJ, Vicente E, Agusti AG. Long-term cardiovascular outcomes in men with obstructive sleep apnea-hypopnea with or without treatment with continuous positive airway pressure: an observational study. Lancet. 2005;365(9464):1046-53..

Os mecanismos responsáveis pelo dano cardiovascular secundário aos eventos de apneia obstrutiva são múltiplos, mas a via final comum é o acometimento autonômico9Reynolds EB, Seda G, Ware JC, Vinik AI, Risk MR, Fishback NF. Autonomic function in sleep apnea patients: increased heart rate variability except during REM sleep in obese patients. Sleep Breath. 2007;11(1):53-60.. Tanto a hipoxia intermitente1010 Gilmartin GS, Lynch M, Tamisier R, Weiss JW. Chronic intermittent hypoxia in humans during 28 nights results in blood pressure elevation and increased muscle sympathetic nerve activity. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2010;299(3):H925-31. e a fragmentação do sono1111 Pitson DJ, Stradling JR. Autonomic markers of arousal during sleep in patients undergoing investigation for obstructive sleep apnoea, their relationship to EEG arousals, respiratory events and subjective sleepiness. J Sleep Res. 1998;7(1):53-9., quanto as modificações na pressão intratorácica1212 Henderson LA, Woo MA, Macey PM, Macey KE, Frysinger RC, Alger JR, et al. Neural responses during Valsalva maneuvers in obstructive sleep apnea syndrome. J Appl Physiol (1985). 2003;94(3):1063-74. , afetam diretamente o sistema nervoso autônomo simpático e parassimpático.

Por outro lado, arritmias cardíacas podem ser desencadeadas por modificações no tônus autônomo1313 Olmetti F, La Rovere MT, Robbi E, Taurino AE, Fanfulla F. Nocturnal cardiac arrhythmia in patients with obstructive sleep apnea. Sleep Med. 2008;9(5):475-80. . A atividade vagal pode ocasionar bradiarritmias, e a hiperatividade simpática pode favorecer vários distúrbios do ritmo, incluindo as arritmias ventriculares. Os autores deste manuscrito tiveram como hipótese a ocorrência de arritmias cardíacas noturnas maiores em pacientes portadores de AOS, e o objetivo deste estudo foi analisar a relação entre tais arritmias e o registro de anormalidade no ritmo cardíaco durante o sono em uma amostra populacional.

Métodos

População do estudo

Estudo transversal realizado em um centro único com 1.101 voluntários recrutados para participar da pesquisa. O tamanho da amostra foi estabelecido para permitir estimativas de prevalência com 3% de precisão1414 Kish L. Survey sampling. New York: John Wiley & Sons Inc; 1965.. Para se obter uma amostra representativa dos habitantes de São Paulo, foi utilizada uma técnica de três estágios de amostragem por conglomerados1515 Korn EL, Graubard BI. Analyses of health surveys. New York: John Wiley & Sons Inc, 1999.. Na primeira fase, para garantir uma representação socioeconômica precisa, selecionamos, proporcionalmente, 96 dos 1.500 distritos da cidade utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dentre as quatro regiões socioeconômicas homogêneas de São Paulo. Os domicílios particulares selecionados deveriam estar permanentemente ocupados. Assim, clínicas, escolas e outros estabelecimentos, comerciais e não comerciais, foram excluídos. Na segunda fase, as famílias foram selecionadas, escolhendo-se um domicílio aleatoriamente e, subsequentemente, saltando-se um número especificado de casas, em relação ao número total de domicílios sorteados e dividindo-se por um número fixo. Onze famílias, em cada setor, foram selecionados dessa maneira. Cada apartamento em um prédio de apartamentos foi considerado uma casa, e a contagem foi realizada a partir do último andar para o piso inferior. Finalmente, na terceira fase da amostragem, todos os habitantes elegíveis em cada casa selecionada foram listados, do mais jovem ao mais velho. Mulheres grávidas ou lactantes, pessoas com deficiências físicas ou mentais, indivíduos com menos de 20 ou mais de 80 anos de idade, e pessoas que trabalhassem todas as noites não foram incluídas no desenho. Substitutos foram escolhidos a partir da casa vizinha, seguindo os mesmos critérios de seleção aleatória descritos anteriormente. O projeto racional, a amostragem e os procedimentos utilizados no Estudo Epidemiológico do Sono de São Paulo foram detalhadamente descritos em publicação anterior1616 Santos-Silva R, Tufik S, Conway SG, Taddei JA, Bittencourt LR. Sao Paulo Epidemiologic Sleep Study: rationale, design, sampling, and procedures. Sleep Med. 2009;10(6):679-85. .

O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (CEP 0593/06) e registrado no ClinicalTrials.gov sob número NCT00596713. Todos os voluntários leram e assinaram um termo de consentimento proposto.

Após a assinatura do Termo de Consentimento, os pacientes foram convidados a comparecer no Laboratório do Sono para realização de avaliação clínica e Polissonografia (PSG) basal de noite inteira.

Polissonografia

A PSG de noite inteira foi realizada por meio de um sistema digital (EMBLA® S7000, Embla Systems, Inc., Broomfield, CO, Estados Unidos), no laboratório do sono, durante o horário regular de sono do indivíduo. As seguintes variáveis fisiológicas foram monitoradas simultanea e continuamente: Eletroencefalograma (EEG), eletro-oculograma, eletromiograma (região submentoniana, músculo tibial anterior, a região masseter e sétimo espaço intercostal), Eletrocardiograma (ECG), detecção de fluxo de ar (termopares e pressão nasal), esforços respiratórios abdominal e torácico (por meio da pletismografia de indutância), ronco, posição do corpo, Saturação Periférica de Oxigênio (SO2) e frequência cardíaca. Quatro técnicos treinados marcaram visualmente todas as PSG, de acordo com critérios padronizados, para investigar o sono1717 Rechtschaffen A, Kales A. A manual of standardized terminology: techniques and scoring system for sleep stages of human subjects. Los Angeles: Brain Information Service/ Brain Research Institute; 1968.. O EEG e os movimentos das pernas foram classificados de acordo com o critério estabelecido no manual da American Academy of Sleep Medicine (AASM) para avaliar o sono e os eventos associados1818 Iber C, Ancoli-Israel S, Chesson Jr A, Quan S. The AASM manual for the scoring of sleep and associated events: rules, terminology and technical specifications. Westchester: American Academy of Sleep Medicine; 2007.. Apneias foram classificadas de acordo com as regras recomendadas para adultos no manual da AASM, e hipopneias foram marcadas de acordo com as regras alternativas1818 Iber C, Ancoli-Israel S, Chesson Jr A, Quan S. The AASM manual for the scoring of sleep and associated events: rules, terminology and technical specifications. Westchester: American Academy of Sleep Medicine; 2007.. Um técnico em PSG selecionou aleatoriamente e reavaliou 4% das PSG para verificar a precisão de estadiamento do sono (índice de concordância de 93,3 ± 5,1; Kappa 0,91 ± 0,03). O Índice de Apneia-Hipopneia (IAH) foi utilizado para determinar a presença (IAH > 5) e a gravidade da AOS (leve: 5 < IAH < 15; moderada: 15 < IAH < 30; e grave: IAH > 30).

Avaliação do Holter durante a polissonografia

Um canal de ECG foi extraído a partir do monitoramento PSG, duplicado e, em seguida, analisado com um sistema Holter fabricado pela Cardios® (Cardio Smart, Cardio Sistemas, São Paulo, Brasil). Características do ECG que foram analisadas incluíram: frequência cardíaca, intervalos QT e PR, arritmias ventriculares e atriais, e pausas. A complexidade das arritmias foram referidas da seguinte forma: isoladas, pareadas ou taquicardia. Medidas antropométricas foram analisadas imediatamente antes do preparo para a PSG e incluíram peso corporal (kg), altura (em m), Índice de Massa Corporal (IMC), circunferências (em cm) do pescoço e medidas de pressão arterial.

Análise estatística

A versão 17.0 do programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) para Windows foi utilizada para a análise dos dados. As estatísticas descritivas foram apresentadas para a amostra estudada e para as características do grupo. Qui-quadrado foi aplicado para medir as associações entre os subgrupos. Modelos Gerais Lineares (MLG) foram utilizados para analisar algumas variáveis. Teste a posteriori de Tukey foi aplicado quando necessário. Um ajuste final do modelo logístico foi realizado para se investigarem as principais variáveis associadas com a ocorrência de arritmia cardíaca. Os dados foram expressos como mediana ± erro padrão para as variáveis quantitativas. As variáveis categóricas estão apresentadas em porcentagem. Valor de p ≤ 0,05 foi considerado significante.

Resultados

Um total de 767 participantes, sendo 461 do sexo masculino, com idade média de 42,00 ± 0,53 anos, foi incluído nas análises. As metodologias de extração do canal eletrocardiográfico e de compatibilização para o sistema Holter não puderam ser realizadas em 334 sujeitos, os quais foram excluídos da análise. As características demográficas da amostra estão demonstradas na tabela 1. A presença de AOS definida por AIH > 5 foi observada em 37% da população, 55,3% desses casos foram classificados como AOS leve e 44,7% apresentaram doença moderada ou grave. Parâmetros clínicos e polissonográficos de pacientes com AOS diagnosticados como leve, moderado ou grave, e do grupo considerado controle (sem AOS) estão demonstrados nas tabelas 2 e 3, respectivamente. Latência do sono, porcentagem de estágio de sono REM e o índice do movimento periódico das pernas foram as únicas variáveis que não atingiram significado, quando comparados os grupos.

Tabela 1
Características demográficas da amostra
Tabela 2
Características clínicas de pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono (AOS) leve, moderada a grave, e controle
Tabela 3
Parâmetros poiissonográficos dos pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono (AOS) leve, moderada a grave, e controles

Pelo menos um tipo de distúrbio do ritmo cardíaco noturno (arritmia atrial ou ventricular e/ou pausa) foi observado em 62,7% da amostra. A ocorrência de arritmias cardíacas noturnas foi mais frequente com o aumento da gravidade da doença. A perturbação do ritmo foi observada em 53,3% dos indivíduos sem distúrbios respiratórios do sono, enquanto que 92,3% dos pacientes com AOS grave apresentaram arritmia cardíaca. A distribuição de arritmias atriais, arritmias ventriculares e pausas são demonstradas na tabela 4. Ambos os complexos ectópicos isolados das arritmias atriais e ventriculares apresentaram-se mais frequentes nos pacientes portadores de AOS moderada/grave quando comparadas aos controles (p < 0,001). As ocorrências de pausas noturnas e taquicardia ventricular não sustentada não apresentaram diferenças entre os grupos.

Tabela 4
Distribuição de arritmias cardíacas atrial e ventricular, no período noturno, entre os pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono (AOS) - percentagem de ocorrências

Após controle de potenciais fatores de confusão (idade, IMC, tabagismo, diabetes, hipertensão arterial e parâmetros de PSG), idade, sexo e IAH foram associados independentemente com a ocorrência de arritmia cardíaca noturna (Tabela 5).

Tabela 5
Modelo logístico ajustado dos preditores de ocorrência de arritmia cardíaca noturna

Discussão

O principal achado deste estudo foi a demonstração de que os distúrbios noturnos do ritmo cardíaco ocorrem mais frequentemente em pacientes com AOS do que na população em geral, e de que sua prevalência aumentou conforme a gravidade da doença. A relação entre arritmia cardíaca e distúrbios respiratórios do sono foi avaliada em vários estudos anteriores. Guilleminault e cols.1919 Guilleminault C, Connolly SJ, Winkle RA. Cardiac arrhythmia and conduction disturbances during sleep in 400 patients with sleep apnea syndrome. Am J Cardiol. 1983;52(5):490-4., utilizando monitoramento de Holter 24 horas em 400 pacientes com AOS, demonstraram que 48% deles tinham perturbação cardíaca durante a noite. Olmetti e cols.2020 Olmetti F, La Rovere MT, Robbi E, Taurino AE, Fanfulla F. Nocturnal cardiac arrhythmia in patients with obstructive sleep apnea. Sleep Med. 2008;9(5):475-80. analisaram um registro eletrocardiográfico durante a PSG e encontraram arritmia cardíaca noturna em 18,5% dos 257 pacientes com AOS selecionados consecutivamente.

O resultado deste estudo demostra que a prevalência de arritmia cardíaca noturna foi maior do que anteriormente descrito na literatura (92,3% de pacientes de AOS em comparação com 53,3% da população em geral). Várias explicações para essa diferença são possíveis. A utilização de um sistema de monitorização contínua como ferramenta, com detecção automática de distúrbios do ritmo (Holter), pode ter detectado com maior precisão os eventos de arritmias, quando comparado com outras metodologias utilizadas em estudos clínicos, como a eletrocardiografia de 12 derivações e o canal eletrocardiográfico isolado da PSG. Além disso, 37% dessa população tinha IAH > 5 eventos/hora. Essa prevalência também foi mais elevada do que outros estudos epidemiológicos2121 Redline S, Young T. Epidemiology and natural history of obstructive sleep apnea. Ear Nose Throat J. 1993;72(1):20-1, 24-6., possivelmente por incluir indivíduos com IMC elevado e com idade > 70 anos, o que não ocorreu em outros estudos epidemiológicos2222 Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med . 1993;328(17):1230-5.

23 Durán J, Esnaola S, Rubio R, Iztueta A. Obstructive sleep apnea-hypopnea and related clinical features in a population-based sample of subjects aged 30 to 70 yr. Am J Respir Crit Care Med. 2001;163(3 Pt 1):685-9.
-2424 Ip MS, Lam B, Lauder IJ, Tsang KW, Chung KF, Mok YW, et al. A community study of sleep-disordered breathing in middle-aged Chinese men in Hong Kong. Chest. 2001;119(1):62-9.. Finalmente, a utilização de uma ferramenta de padrão-ouro (a PSG) para detectar eventos respiratórios durante o sono pode resultar na seleção mais eficaz da população portadora de AOS e, dessa forma, avaliar melhor a prevalência de arritmias noturnas.

Os mecanismos envolvidos na fisiopatologia da arritmia cardíaca e AOS são provavelmente multifatoriais. Neste estudo, demonstramos que, além da idade e do sexo, a AIH é um importante fator, que está relacionada a eventos noturnos de arritmia cardíaca. Este resultado é consistente com os de estudos anteriores. A hipóxia, como resultado dos eventos obstrutivos, é um potente estimulante para o sistema nervoso simpático2525 Somers VK, Mark AL, Zavala DC, Abboud FM. Contrasting effects of hypoxia and hypercapnia on ventilation and sympathetic activity in humans. J Appl Physiol (1985). 1989;67(5):2101-6.. As oscilações nas atividades simpática e parassimpática em portadores de AOS podem predispor os pacientes ao desenvolvimento de arritmias atriais e ventriculares.

Outro forte mecanismo envolvido na fisiopatologia da arritmia cardíaca e AOS é a doença cardíaca estrutural, que poderia favorecer a ocorrência de arritmia cardíaca. Oliveira e cols.2626 Oliveira W, Campos O, Bezerra Lira-Filho E, Cintra FD, Vieira M, Ponchirolli A, et al. Left atrial volume and function in patients with obstructive sleep apnea assessed by real-time three-dimensional echocardiography. J Am Soc Echocardiogr. 2008;21(12):1355-61., utilizando a ecocardiografia tridimensional, demonstraram que AOS induziu a uma sobrecarga no átrio esquerdo, resultando em remodelação. Além disso, o uso eficaz do CPAP pode melhorar a função diastólica do ventrículo esquerdo e o esvaziamento passivo do átrio esquerdo2727 Oliveira W, Campos O, Cintra F, Matos L, Vieira ML, Rollim B, et al. Impact of continuous positive airway pressure treatment on left atrial volume and function in patients with obstructive sleep apnoea assessed by real-time three-dimensional echocardiography. Heart. 2009;95(22):1872-8.. A avaliação estrutural do coração, pela ecocardiografia, não foi realizada nesta população, o que pode ser considerado uma limitação deste estudo.

De forma interessante, não observarmos diferenças na ocorrência de pausas cardíacas noturnas. Harbison e cols.2828 Harbison J, O'Reilly P, McNicholas WT. Cardiac rhythm disturbances in the obstructive sleep apnea syndrome: effects of nasal continuous positive airway pressure therapy. Chest. 2000;118(3):591-5. fizeram a monitorização eletrocardiografia pelo sistema Holter em 45 pacientes com síndrome de AOS previamente diagnosticada e observaram sete casos de pausa cardíaca durante a noite, que foram parcialmente revertidas com o uso eficaz da terapia CPAP. No entanto, em ensaios clínicos randomizado avaliando o papel do CPAP na ocorrência de arritmias cardíacas, não houve mudança após o tratamento com CPAP2929 Craig S, Pepperell JC, Kohler M, Crosthwaite N, Davies RJ, Stradling JR. Continuous positive airway pressure treatment for obstructive sleep apnoea reduces resting heart rate but does not affect dysrhythmias: a randomized controlled trial. J Sleep Res. 2009;18(3):329-36., sugerindo que outros mecanismos, que não exclusivamente a apneia, participem do desencadeamento da arritmia. De qualquer forma, a relação entre pausas cardíacas, eventos de apneia obstrutiva e CPAP ainda não está totalmente esclarecida e deve ser melhor analisada em estudos subsequentes.

A ausência de informações sobre a ocorrência de arritmia cardíaca no período diurno e a variabilidade na frequência de arritmias também são limitações do presente estudo, pois os resultados podem não refletir com precisão a real gravidade dos distúrbios do ritmo. Entretanto, a correlação entre o evento de apneia (observado pela PSG) e a ocorrência de arritmia cardíaca (observada pelo Holter) em um estudo de base populacional pode trazer um novo olhar para o tratamento das arritmias bem como o reconhecimento da necessidade de avaliar o sono desses pacientes.

Conclusão

As arritmias cardíacas noturnas ocorrem com maior frequência em pacientes portadores de apneia obstrutiva do sono, e sua prevalência aumenta com a gravidade da doença. Idade, sexo e o Índice de Apneia-Hipopneia foram os fatores preditores de arritmias cardíacas noturnas nessa amostra.

  • 1
    Kimoff RJ. Sleep fragmentation in obstructive sleep apnea. Sleep. 1996;19(9 Suppl):S61-6.
  • 2
    Peled N, Greenberg A, Pillar G, Zinder O, Levi N, Lavie P. Contributions of hypoxia and respiratory disturbance index to sympathetic activation and blood pressure in obstructive sleep apnea syndrome. Am J Hypertens. 1998;11(11 Pt 1):1284-9.
  • 3
    Nieto FJ, Young TB, Lind BK, Shahar E, Samet JM, Redline S, et al. Association of sleep-disordered breathing, sleep apnea, and hypertension in a large community-based study. Sleep Heart Health Study. JAMA. 2000;283(14):1829-36. Erratum in: JAMA. 2002;288(16):1985.
  • 4
    Peppard PE, Young T, Palta M, Skatrud J. Prospective study of the association between sleep-disordered breathing and hypertension. N Engl J Med. 2000;342(19):1378-84.
  • 5
    Bonsignore MR, Esquinas C, Barceló A, Sanchez-de-la-Torre M, Paternó A, Duran-Cantolla J, et al. Metabolic syndrome, insulin resistance and sleepiness in real-life obstructive sleep apnoea. Eur Respir J. 2012;39(5):1136-43.
  • 6
    Paulino A, Damy T, Margarit L, Stoïca M, Deswarte G, Khouri L, et al. Prevalence of sleep-disordered breathing in a 316-patient French cohort ofs Tabela congestive heart failure. Arch Cardiovasc Dis. 2009;102(3):169-75.
  • 7
    Marin JM, Carrizo SJ, Vicente E, Agusti AG. Long-term cardiovascular outcomes in men with obstructive sleep apnea-hypopnea with or without treatment with continuous positive airway pressure: an observational study. Lancet. 2005;365(9464):1046-53.
  • 8
    Marshall NS, Wong KK, Liu PY, Cullen SR, Knuiman MW, Grunstein RR. Sleepapnea as an independent risk factor for all-cause mortality: the Busselton Health Study. Sleep. 2008;31(8):1079-85.
  • 9
    Reynolds EB, Seda G, Ware JC, Vinik AI, Risk MR, Fishback NF. Autonomic function in sleep apnea patients: increased heart rate variability except during REM sleep in obese patients. Sleep Breath. 2007;11(1):53-60.
  • 10
    Gilmartin GS, Lynch M, Tamisier R, Weiss JW. Chronic intermittent hypoxia in humans during 28 nights results in blood pressure elevation and increased muscle sympathetic nerve activity. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2010;299(3):H925-31.
  • 11
    Pitson DJ, Stradling JR. Autonomic markers of arousal during sleep in patients undergoing investigation for obstructive sleep apnoea, their relationship to EEG arousals, respiratory events and subjective sleepiness. J Sleep Res. 1998;7(1):53-9.
  • 12
    Henderson LA, Woo MA, Macey PM, Macey KE, Frysinger RC, Alger JR, et al. Neural responses during Valsalva maneuvers in obstructive sleep apnea syndrome. J Appl Physiol (1985). 2003;94(3):1063-74.
  • 13
    Olmetti F, La Rovere MT, Robbi E, Taurino AE, Fanfulla F. Nocturnal cardiac arrhythmia in patients with obstructive sleep apnea. Sleep Med. 2008;9(5):475-80.
  • 14
    Kish L. Survey sampling. New York: John Wiley & Sons Inc; 1965.
  • 15
    Korn EL, Graubard BI. Analyses of health surveys. New York: John Wiley & Sons Inc, 1999.
  • 16
    Santos-Silva R, Tufik S, Conway SG, Taddei JA, Bittencourt LR. Sao Paulo Epidemiologic Sleep Study: rationale, design, sampling, and procedures. Sleep Med. 2009;10(6):679-85.
  • 17
    Rechtschaffen A, Kales A. A manual of standardized terminology: techniques and scoring system for sleep stages of human subjects. Los Angeles: Brain Information Service/ Brain Research Institute; 1968.
  • 18
    Iber C, Ancoli-Israel S, Chesson Jr A, Quan S. The AASM manual for the scoring of sleep and associated events: rules, terminology and technical specifications. Westchester: American Academy of Sleep Medicine; 2007.
  • 19
    Guilleminault C, Connolly SJ, Winkle RA. Cardiac arrhythmia and conduction disturbances during sleep in 400 patients with sleep apnea syndrome. Am J Cardiol. 1983;52(5):490-4.
  • 20
    Olmetti F, La Rovere MT, Robbi E, Taurino AE, Fanfulla F. Nocturnal cardiac arrhythmia in patients with obstructive sleep apnea. Sleep Med. 2008;9(5):475-80.
  • 21
    Redline S, Young T. Epidemiology and natural history of obstructive sleep apnea. Ear Nose Throat J. 1993;72(1):20-1, 24-6.
  • 22
    Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med . 1993;328(17):1230-5.
  • 23
    Durán J, Esnaola S, Rubio R, Iztueta A. Obstructive sleep apnea-hypopnea and related clinical features in a population-based sample of subjects aged 30 to 70 yr. Am J Respir Crit Care Med. 2001;163(3 Pt 1):685-9.
  • 24
    Ip MS, Lam B, Lauder IJ, Tsang KW, Chung KF, Mok YW, et al. A community study of sleep-disordered breathing in middle-aged Chinese men in Hong Kong. Chest. 2001;119(1):62-9.
  • 25
    Somers VK, Mark AL, Zavala DC, Abboud FM. Contrasting effects of hypoxia and hypercapnia on ventilation and sympathetic activity in humans. J Appl Physiol (1985). 1989;67(5):2101-6.
  • 26
    Oliveira W, Campos O, Bezerra Lira-Filho E, Cintra FD, Vieira M, Ponchirolli A, et al. Left atrial volume and function in patients with obstructive sleep apnea assessed by real-time three-dimensional echocardiography. J Am Soc Echocardiogr. 2008;21(12):1355-61.
  • 27
    Oliveira W, Campos O, Cintra F, Matos L, Vieira ML, Rollim B, et al. Impact of continuous positive airway pressure treatment on left atrial volume and function in patients with obstructive sleep apnoea assessed by real-time three-dimensional echocardiography. Heart. 2009;95(22):1872-8.
  • 28
    Harbison J, O'Reilly P, McNicholas WT. Cardiac rhythm disturbances in the obstructive sleep apnea syndrome: effects of nasal continuous positive airway pressure therapy. Chest. 2000;118(3):591-5.
  • 29
    Craig S, Pepperell JC, Kohler M, Crosthwaite N, Davies RJ, Stradling JR. Continuous positive airway pressure treatment for obstructive sleep apnoea reduces resting heart rate but does not affect dysrhythmias: a randomized controlled trial. J Sleep Res. 2009;18(3):329-36.
Correspondência: Fatima Dumas Cintra, Alameda Taurus, 146, Residencial Genesis I, Alphaville. CEP 06543-670. Santana de Parnaíba, SP - Brasil. E-mail: fatimacintra@cardiol.br; fatimadc@einstein.br
Potencial conflito de interesse
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
  • Contribuição dos autores
    Concepção e desenho da pesquisa: Cintra FD, Poyares D; Obtenção de dados: Cintra FD, Leite RP, Storti LJ; Análise e interpretação dos dados: Cintra FD; Análise estatística: Poyares D, Castro LS; Obtenção de financiamento: Poyares D, Tufik S; Redação do manuscrito: Cintra FD, Bittencourt LA, Poyares D; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Cintra FD, Leite RP, Bittencourt LA, Poyares D, Tufik S, Paola A.
  • Fontes de financiamento
    O presente estudo foi financiado pela FAPESP e AFIP.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2014
  • Data do Fascículo
    Nov 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2013
  • Revisado
    26 Jun 2014
  • Aceito
    04 Jul 2014
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br