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Evolução do Conhecimento Anatomofisiológico do Sistema Cardiovascular: dos Egípcios a Harvey

Resumos

O conhecimento da anatomofisiologia do Sistema Cardiovascular (SCV) progride desde o quarto milênio AC. No Egito (3500 AC), acreditava-se que um conjunto de canais conectava-se ao coração, transportando ar, urina, ar, sangue e a alma. Mil anos após, o Corpo Hipocrático, na escola médica de Kós, estabeleceu o coração como o centro do SCV, definindo algumas características deste órgão. O SCV transportava sangue via ventrículo direito pelas veias, e o pneuma via ventrículo esquerdo pelas artérias. Duzentos anos depois, em Alexandria, com o aparecimento da dissecção anatômica do corpo humano, Herophilus descobriu que as artérias eram seis vezes mais espessas que as veias, enquanto que Erasistratus descreveu as válvulas semilunares, enfatizando que as artérias eram preenchidas por sangue quando o ventrículo esquerdo se esvaziava. Duzentos anos depois, Galeno demonstrou que as artérias continham sangue, não ar. Com o declínio do Império Romano, todo o conhecimento médico Greco-romano do SCV foi preservado na Pérsia, e posteriormente no Islã, onde Ibn-Nafis descreveu incompletamente a circulação pulmonar. Aqui, deve-se enfatizar a incompleta descrição da circulação pulmonar por Ibn-Nafis. A ressurgência da dissecção do corpo humano na Europa no século XIV é associada ao renascimento do conhecimento do SCV. Os principais marcos foram a descrição da circulação pulmonar por Servetus, as descobertas anatômicas de Vesalius, a demonstração da circulação pulmonar por Colombo, e a descoberta das válvulas das veias por Fabricius. Tal contexto abriu o caminho para Harvey descobrir a circulação do sangue.

Sistema Cardiovascular; Conhecimento; Civilização / história; Egito; Mundo Grego / história; Antropologia Cultural / tendências


Our knowledge regarding the anatomophysiology of the cardiovascular system (CVS) has progressed since the fourth millennium BC. In Egypt (3500 BC), it was believed that a set of channels are interconnected to the heart, transporting air, urine, air, blood, and the soul. One thousand years later, the heart was established as the center of the CVS by the Hippocratic Corpus in the medical school of Kos, and some of the CVS anatomical characteristics were defined. The CVS was known to transport blood via the right ventricle through veins and the pneuma via the left ventricle through arteries. Two hundred years later, in Alexandria, following the development of human anatomical dissection, Herophilus discovered that arteries were 6 times thicker than veins, and Erasistratus described the semilunar valves, emphasizing that arteries were filled with blood when ventricles were empty. Further, 200 years later, Galen demonstrated that arteries contained blood and not air. With the decline of the Roman Empire, Greco-Roman medical knowledge about the CVS was preserved in Persia, and later in Islam where, Ibn Nafis inaccurately described pulmonary circulation. The resurgence of dissection of the human body in Europe in the 14th century was associated with the revival of the knowledge pertaining to the CVS. The main findings were the description of pulmonary circulation by Servetus, the anatomical discoveries of Vesalius, the demonstration of pulmonary circulation by Colombo, and the discovery of valves in veins by Fabricius. Following these developments, Harvey described blood circulation.

Cardiovascular System; Knowledge; Civilization / history; Egypt; Greek World / history; Anthropology, Cultural / trends


Introdução

O conhecimento do sistema cardiovascular (SCV), que levou William Harvey à descoberta da circulação sanguínea, foi obtido por meio de grandes esforços ao longo dos tempos. Tais descobertas começaram no Egito em 3500 a.C., tornando-se um pouco mais elaboradas na Grécia antiga, e bem mais elaboradas em Alexandria, e cessaram na época dos romanos. Este conhecimento foi preservado no mundo islâmico e nos mosteiros europeus e reviveu com a introdução da dissecção anatômica nas universidades europeias, abrindo o caminho para a descoberta de Harvey. Esta revisão fornece uma visão geral de como o conhecimento do SCV foi adquirido através dos tempos.

Egito

No Egito antigo (1500 a.C.), o coração era considerado o elemento central de um sistema de canais distribuídos por todo o corpo, responsável pelo transporte de sangue, fezes, sêmen, espíritos malignos e benignos, e até mesmo a alma: o metw1Nunn JF. Ancient Egyptian medicine. Concepts of anatomy, physiology and pathology. British Museum Press, London; 1996.. Erroneamente, os egípcios acreditavam que tais elementos circulavam dentro de um vaso ligado ao coração (vaso receptor), provavelmente a aorta, que vinha do cérebro. Um segundo vaso coletor estaria localizado na região anal2Boisaubin EV. Cardiology in ancient Egypt. Tex Heart Inst J. 1988;15(2):80-5..

Havia a noção de que o pulso periférico originava-se do batimento cardíaco, como pode ser visto no papiro de Edwin Smith (1700 a.C.), e que a medição do pulso podia ser executada utilizando um relógio d'água. É concebível que o médico comparasse o pulso do paciente com o dele próprio. Portanto, apenas grandes aumentos ou diminuições no batimento cardíaco, bem como as irregularidades de pulso, poderiam ser detectadas3Wilson JA. Medicine in ancient Egypt. Bull Hist Med. 1962;36(2):114-23..

O papiro de Edwin Smith revelou que anormalidades no pulso periférico poderiam ser o reflexo de uma doença cardíaca subjacente4Hamburger WW. The earliest known reference to the heart and circulation. Am Heart J. 1939;17:259-74.. No papiro de Ebers (1500 a.C.), a importante relação entre o coração e o sistema de vasos também tinha sido enfatizada, bem como a medição da pulsação. Além disso, a presença de doença cardíaca diagnosticada por meio de anormalidades na pulsação havia sido destacada: "quando o coração está doente .... seus vasos provavelmente tornam-se inativos, de modo que você não consegue palpá-los"5Willerson JT, Teaff R. Egyptian contributions to cardiovascular medicine. Tex Heart Inst J. 1996;23(3):191-200..

Apesar do conhecimento da relação entre a frequência cardíaca e a pulso periférico, a maneira pela qual os elementos de metw estariam distribuídos por todo o corpo não foi atribuída à força do coração. De fato, a pulsação seria consequência do ar mantido no canais1Nunn JF. Ancient Egyptian medicine. Concepts of anatomy, physiology and pathology. British Museum Press, London; 1996.. Além disso, acreditava-se que os elementos da metw fluíam por todo o corpo.

Considerando que os egípcios não realizavam autópsias rotineiramente, e que a dissecção não era utilizada como uma forma de aprendizagem médica, os egípcios não conseguiram avançar no conhecimento anatomofisiológico do SCV1Nunn JF. Ancient Egyptian medicine. Concepts of anatomy, physiology and pathology. British Museum Press, London; 1996.. No entanto, eles foram os primeiros a associar o batimento cardíaco com a pulsação periférica, bem como estabelecer a correlação entre o ar e o SCV6Loukas M, Hanna M, Alsaiegh N, Shoja MM, Tubbs RS. Clinical anatomy as practiced by ancient Egyptians. Clin Anat. 2011;24(14):409-15..

Grécia

Período pré-aristotélico

O surgimento dos filósofos na Grécia por volta do século 7 a.C., começando com Thales de Mileto, abriu o caminho necessário para a realização de investigações sobre a anatomia humana. As escolas de medicina apareceram junto com os filósofos no século 5 a.C. Alcméon, da escola de medicina de Crotona (520-450 a.C.), foi o primeiro a produzir o conhecimento anatômico a partir de observações experimentais. Alcméon acreditava que o cérebro era o centro das emoções, conhecimento, mente, e alma, e associou as funções dos órgãos dos sentidos ao cérebro7Celesia GG. Alcmaeon of Croton's observations on health, brain, mind, and soul. J Hist Neurosci. 2012;21(4):409-26..

Além disso, Alcméon acreditava que o sistema venoso era distinto do sistema arterial, apesar de ele não ter feito uma distinção anatômica entre eles. A função dos vasos foi associada à vigília: o sangue, retirado das veias, induzia o sono. As artérias, levando sangue ao cérebro, induzia a vigilia8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8.. De acordo com Alcméon, todos os vasos originavam-se na cabeça, e sua função era distribuir o pneuma (espírito) ao cérebro9Loukas M, Tubbs RS, Louis-Jr RG, Pinyard J, Vais S, Curry B. The cardiovascular system in the pre-Hippocratic era. Int J Cardiol. 2007;120(2):145-9.. No entanto, outros autores acreditavam que o pneuma era distribuído ao cérebro diretamente da respiração nasal1010 French RK. The thorax in history 1. From ancient times to Aristotle. Thorax. 1978;33(1):10-8.. Alcméon não atribuiu nenhuma função ao coração no SCV.

Empédocles de Agrigento (492-432 a.C.) tinha uma visão diferente. Para ele, o coração era a sede da alma e o centro do SCV; vasos sanguíneos distribuíam o pneuma, que era internalizado através da respiração pulmonar9Loukas M, Tubbs RS, Louis-Jr RG, Pinyard J, Vais S, Curry B. The cardiovascular system in the pre-Hippocratic era. Int J Cardiol. 2007;120(2):145-9.. Empédocles também acreditava na existência de vasos corpóreos, que continham sangue, e cujas porções terminais exteriorizavam-se na pele, absorvendo e expelindo ar1010 French RK. The thorax in history 1. From ancient times to Aristotle. Thorax. 1978;33(1):10-8.. Empédocles não forneceu detalhes anatômicos do coração.

A escola de Cós, cujo principal expoente foi Hipócrates (460-375 a.C.), contribuiu de forma decisiva para a racionalização da medicina. Com relação ao SCV, no livro "O coração" ("On the heart"), atribuído aos membros da escola de Cós, os detalhes anatômicos do coração foram descritos pela primeira vez, atribuindo ao SCV o transporte de vida por todo o corpo. De acordo com estes autores, os pulmões circundavam o coração no tórax para resfriar o excesso de calor produzido pela atividade cardíaca incessante. O coração apresentava um formato piramidal, coloração vermelha, e atividade elétrica intrínseca. Em contraste com o restante do corpo, que era alimentado com sangue através das veias, o coração nutria a si próprio a partir da substância pura criada durante a dialise do sangue8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8..

Dois ventrículos são reconhecidos como unidos pelo septo interventricular. O ventrículo direito é maior do que o ventrículo esquerdo, embora o esquerdo seja mais espesso do que o direito, considerando que a parede ventricular esquerda tem que suportar o calor excessivo produzido por esta câmara. O ventrículo direito se comunica com o ventrículo esquerdo através de um poro no septo interventricular. O ventrículo esquerdo, em contraste com o direito, não tem sangue, mas apenas bile amarela e membranas, e abriga a mente e o espírito, que predominam sobre o restante da alma8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8..

Todos os vasos do SCV se originam no coração e se conectam a ele através de membranas que se estendem da parede cardíaca. Alguns vasos foram identificados (veias pulmonares), que transportariam ar ao ventrículo esquerdo. Outro grande vaso (artéria pulmonar) transportaria ar ao ventrículo direito, e ao mesmo tempo, sangue aos pulmões. Duas válvulas cardíacas foram descritas, cada uma contendo três folhetos. No entanto, a estrutura anatômica da aorta não foi descrita. Eles descreveram duas estruturas semelhantes ao átrio cardíaco, que teria o objetivo de captar o ar, mas tais estruturas não pertenceriam ao coração8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8.. O pericárdio também foi descrito, o qual, através da absorção de água da epiglote, resfriaria o coração1111 Hurlbutt-Jr FR. Peri kardies. A treatise on the heart from Hyppocratic Corpus. Bull Hist Med. 1939;7:1104-13.. Não houve menção da veia cava.

Em outro livro do Corpus Hippocraticum, "A doença sagrada" ("The sacred disease"), o SCV é descrito em detalhe, e pouca menção é feita ao coração. Há um par de vasos originários do fígado e baço, em direção ao cérebro e aos membros inferiores. Ramificações destes vasos se juntam ao coração no tórax1010 French RK. The thorax in history 1. From ancient times to Aristotle. Thorax. 1978;33(1):10-8..

A divisão siciliana da escola de Cnido, provavelmente com as obras de Philistion de Locri em torno de 370 a.C., também contribuiu para o conhecimento anatômico da SCV. A presença de dois ventrículos era bem conhecida, o esquerdo sendo mais hipertrofiado do que o direito; a presença de dois átrios, cujos batimentos são discordantes em relação aos batimentos dos ventrículos; a presença de um vaso conectado a um único ventrículo; e a presença de valvas semilunares1111 Hurlbutt-Jr FR. Peri kardies. A treatise on the heart from Hyppocratic Corpus. Bull Hist Med. 1939;7:1104-13.. Aparentemente, nada se sabia sobre a anatomia das valvas atrioventriculares1010 French RK. The thorax in history 1. From ancient times to Aristotle. Thorax. 1978;33(1):10-8.. A Figura 1 ilustra o conjunto de descobertas descritas anteriormente.

Figura 1
Esquema do sistema cardiovascular de acordo com os gregos antigos. Observe a presença de dois vasos paralelos originários no fígado e no baço, conectados ao coração no tórax, aos membros inferiores e à cabeça. Observe o coração com um poro no septo interventricular conectando o ventrículo direito ao ventrículo esquerdo, dois vasos conectados ao ventrículo direito, e um vaso conectado ao ventrículo esquerdo vindo dos pulmões. O ventrículo direito é maior do que o esquerdo, ao passo que o ventrículo esquerdo é mais espesso do que o direito. O ventrículo direito contém sangue, ao passo que o ventrículo esquerdo é preenchido com ar e bile amarela, de acordo com o Corpus Hippocraticum (século 5 a.C.). VE: ventrículo esquerdo; VD: Ventrículo direito; SIV: Septo interventricular.

Período aristotélico

Aristóteles (384-322 a.C.) acreditava que o coração era o órgão mais importante do corpo, a sede da alma. Ele não acreditava que o pneuma era inspirado pelo corpo. O pneuma era uma parte da alma, mas a respiração continha apenas ar, e a sua principal função era resfriar o coração1111 Hurlbutt-Jr FR. Peri kardies. A treatise on the heart from Hyppocratic Corpus. Bull Hist Med. 1939;7:1104-13.. Da mesma forma, ele concebeu o cérebro como um mecanismo de resfriamento cardíaco1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601.. Ele realizou centenas de dissecções em animais8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8., mas aparentemente não teve a oportunidade de dissecar cadáveres humanos. Portanto, ele acreditava que a experimentação animal era um método importante para se obter conhecimento1111 Hurlbutt-Jr FR. Peri kardies. A treatise on the heart from Hyppocratic Corpus. Bull Hist Med. 1939;7:1104-13..

Ainda que errônea, a grande inovação introduzida por Aristóteles na anatomia do SCV foi descrever três ventrículos cardíacos, em ordem decrescente de volume do lado direito ao esquerdo do corpo, mas todos eles conectados ao pulmão. Ele também descreveu a presença de vasos comunicando ambos os ventrículos ao pulmão, que transportava ar ao coração. Aristóteles acreditava que a artéria pulmonar e a veia cava superior eram subdivisões de outro grande vaso, que ele chamou de "grande veia". Além disso, ele descreveu outro vaso conectado ao ventrículo medial, que ele chamou de aorta, e acreditava que o coração era a origem de todos os nervos e vasos8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8..

Segundo Aristóteles, o ventrículo direito continha sangue mais quente e em maior quantidade em relação ao ventrículo esquerdo, que tinha ar e sangue mais puro. Provavelmente, este fato estava relacionado ao mecanismo de morte dos animais (estrangulamento) antes da dissecção. Ele não mencionou as válvulas cardíacas, em contraste com os membros do Corpus Hippocraticum, nem os átrios cardíacos. Portanto, existiam dois grandes vasos no modelo cardíaco de Aristóteles: o grande vaso (veia cava e a artéria pulmonar) e a aorta (aorta e veias pulmonares)1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601.. Hoje, acredita-se que o ventrículo médio seja de fato a aorta, ao passo que o ventrículo esquerdo corresponde ao átrio esquerdo, que não foi identificado por Aristóteles1313 Van Praagh R, Van Praagh S. Aristotles triventricular heart and the relevant early history of the cardiovascular system. Chest. 1983;84(4):462-8..

Praxagoras de Cós (340 a.C.) avançou um pouco mais no conhecimento anatômico da SCV através da distinção entre veias e artérias, embora sem confirmação anatômica, e estas foram chamadas de vasos sanguíneos (flebes). De fato, Praxagoras fez esta distinção com base na suposição errônea de que as veias transportavam o sangue, ao passo que as artérias transportavam o pneuma1414 Androutsos G, Karamanou M, Stefanadis C. The contribution of Alexandrian physicians to cardiology. Helenic J Cardiol. 2013;54(1):15-7.. Além disso, ele afirmou que apenas as artérias estavam associadas ao pulso cardíaco, ao contrário do que se acreditava anteriormente, e enfatizou o valor diagnóstico da medida do pulso cardíaco pela primeira vez1414 Androutsos G, Karamanou M, Stefanadis C. The contribution of Alexandrian physicians to cardiology. Helenic J Cardiol. 2013;54(1):15-7.. No entanto, ele cometeu um erro importante em afirmar que as veias transportavam sangue, enquanto que as artérias transportavam o pneuma1515 Wilson LG. Erasistratus, Galen, and the pneuma. Bull Hist Med. 1959;33:293-314..

O Período de Alexandria

O conhecimento anatômico mais amplo a respeito do SCV ocorreu posteriormente, com as obras de Herófilo da Calcedônia (325-255 a.C.) e Erasístrato de Quios (310-250 a.C.), da escola de Alexandria, no Egito. Antes deste período, dissecções de cadáveres não eram realizadas, e quase todo o conhecimento anatômico era proveniente da dissecção de animais. Em contraste, na famosa escola de Alexandria, dissecções do corpo humano eram realizadas rotineiramente, provavelmente estimuladas pelo faraós ptolomaicos1616 Wiltse LL, Pait GT. Herophilus of Alexandria (325-255 B.C.): The father of anatomy. Spine. 1998;23(17):1904-14..

A contribuição principal de Herófilo para o conhecimento da SCV estava associada à diferenciação da espessura das artérias em relação às veias, sendo que as artérias eram 6 vezes mais espessas do que as veias. O vaso conectado ao ventrículo direito foi denominado "veia arterial", observando-se que as artérias eram menos espessas do que as veias nos pulmões1717 Dobson JF. Herophilus of Alexandria. Proc R Soc Med. 1925;18:19-32.. Herófilo também acreditava que apenas as artérias estavam associadas ao batimento cardíaco devido aos movimentos de contração e relaxamento dependentes do coração1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601..

Herófilo reconheceu que os nervos se originavam no cérebro e na medula espinal, e não no coração, e negou a participação do coração no processo de respiracao8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8.. Além disso, ele incluiu os átrios como parte da anatomia do coração8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8.,1313 Van Praagh R, Van Praagh S. Aristotles triventricular heart and the relevant early history of the cardiovascular system. Chest. 1983;84(4):462-8.. Provavelmente, ele foi o primeiro a realizar dissecções anatômicas publicamente1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601.. Herófilo descreveu as artérias carótidas, a veia subclávia, os vasos mesentéricos, vasos do aparelho genital, e os vasos linfáticos. Ele identificou as terminações nervosas dos pequenos vasos, e observou o sangue dentro das artérias1414 Androutsos G, Karamanou M, Stefanadis C. The contribution of Alexandrian physicians to cardiology. Helenic J Cardiol. 2013;54(1):15-7.. Ele acreditava que as artérias se originavam no coração, mas não especificou o seu local de origem1818 French RK. The thorax in history 2. Hellenistic experiment and human dissection. Thorax. 1978;33(2):153-66..

Erasístrato reconheceu a atividade do coração como uma bomba impulsora, que contrai devido à sua força intrínseca. Ao contrário do que Herófilo acreditava, Erasístrato enfatizou que as artérias não apresentavam movimento ativo de contração e relaxamento, mas eram passivamente preenchidas devido à contração do coração. Ele descreveu as valvas atrioventriculares, de modo que a valva cardíaca direita foi nomeada tricúspide, e esquerda foi denominada bicúspide. Além disso, ele verificou uma subdivisão progressiva das veias e artérias ao ponto em que, devido ao seu calibre extremamente pequeno, não seria mais possível distingui-las anatomicamente, enfatizando que esses vasos estavam sempre cheios de sangue. Ele chamou estes pequenos vasos de sinanastomoses, e foram mais tarde denominadas de capilares1919 Dobson JF. Erasistratus. Proc R Soc Med. 1927;20(6):825-32.. Alguns autores acreditam que Erasístrato foi o primeiro a descrever a presença de válvulas nas veias1414 Androutsos G, Karamanou M, Stefanadis C. The contribution of Alexandrian physicians to cardiology. Helenic J Cardiol. 2013;54(1):15-7..

No entanto, Erasístrato acreditava que as artérias também transportavam o pneuma. Por esse motivo, embora ele tenha observado terminações arteriais próximas ao início da estrutura das veias, ele não identificou a relação funcional de continuidade entre elas. O sangue seria formado no fígado e transportado ao ventrículo direito e, a partir dai, a todo o corpo através das veias. O ar (pneuma) seria inspirado pelos pulmões e chegaria à região esquerda do coração através das veias pulmonares. O espírito vital seria formado no ventrículo esquerdo e distribuído por todo o corpo através de nervos ocos (artérias, que não continham sangue). Nas sinanastomoses, pneuma e sangue seriam utilizados para a nutrição do organismo, ao passo que os produtos do metabolismo seriam excretados. Portanto, nenhum material retornaria ao ventrículo esquerdo1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601.. Ao contrário de Herófilo, Erasístrato acreditava que os vasos sanguíneos se originavam no coração1818 French RK. The thorax in history 2. Hellenistic experiment and human dissection. Thorax. 1978;33(2):153-66..

Com a conquista do Egito pelo Império Romano, a atividade científica em Alexandria diminuiu progressivamente, e as dissecções de corpos humanos foram interrompidas.

O período romano

Rufus de Éfeso, contemporâneo de Jesus Cristo, acreditava que os átrios faziam parte do coração, pois pulsavam em consonância. No ano 2 d.C., Galeno (130-200 d.C.), um médico de gladiadores no templo de Asclépio em Pérgamo, demonstrou que as artérias continham sangue, e não ar, como se acreditava até então. Além disso, Galeno afirmou que o coração era um músculo com diferentes planos de orientação, o que permitia a sua atividade forte e incessante.

Galeno reconheceu que o ventrículo esquerdo era mais hipertrofiado que o direito, e atribuiu a função do ventrículo esquerdo à sua capacidade de reter o ar, ao passo que a função do ventrículo direito seria a de transportar sangue.

Dois vasos se originariam no ventrículo direito: um transportaria sangue aos pulmões (artéria pulmonar), ao passo que o outro transportaria sangue periférico de volta ao coração (veia cava). A partir do ventrículo esquerdo surgiria a grande artéria (aorta), bem como outras estruturas venosas (veias pulmonares), que transportariam sangue dos pulmões ao coração8Mavrodi A, Paskevas G. Morphology of the heart associated with its function as conceived by ancient Greeks. Int J Cardiol. 2014;172(1):23-8..

No entanto, Galeno cometeu vários erros relacionados à anatomia do SCV, principalmente porque as dissecções eram feitas em animais, e não em seres humanos. Ele declarou que havia poros no septo interventricular do coração que permitiriam o escoamento do sangue do ventrículo direito para o esquerdo2020 Pasipoularides A. Galen, father of systematic medicine. An essay on the evolution of modern medicine and cardiology. Int J Cardiol. 2014;172(1):47-58.. Além disso, Galeno não considerou os átrios como parte do coração. Ele também acreditava na existência de vários tipos de pneumas (espíritos). O alimento digerido seria distribuído ao fígado, onde seria transformado em sangue, que se misturaria com o espírito animal. Este, por sua vez, fluiria através do sistema da veia cava, à semelhança do que ocorre com as marés, para nutrir o corpo1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601..

O sangue que chegava ao ventrículo direito seria transportado aos pulmões, onde as impurezas seriam eliminadas. Depois disso, o sangue purificado retornaria ao coração, e a partir dai seria distribuído por todo o corpo. Parte do sangue que entraria no ventrículo direito através dos poros do septo interventricular chegaria ao ventrículo esquerdo. No ventrículo esquerdo, o sangue se misturaria com o ar vindo da traqueia e veias pulmonares, formando assim o espírito vital, que fluiria através das artérias por todo o corpo1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601.. A mistura de espírito vital e sangue, juntamente com o calor das impurezas gasosas produzidas pelo coração, retornaria aos pulmões através da valva atrioventricular bicúspide2020 Pasipoularides A. Galen, father of systematic medicine. An essay on the evolution of modern medicine and cardiology. Int J Cardiol. 2014;172(1):47-58.. O sangue que chegava ao cérebro encontraria o terceiro tipo de pneuma (espírito animal), que seria então distribuído ao corpo através dos nervos ocos. Finalmente, Galeno acreditava que os vasos sanguíneos se dilatavam ativamente durante a contração cardíaca, em oposição a crença de Erasístrato1212 Atkinson MH. Man's changing concepts of the heart and circulation. Can Med Ass J. 1964;91:596-601..

Após a época de Galeno, dissecções deixaram de ser realizadas com frequência e os estudos anatômicos foram interrompidos, em parte porque Galeno considerava o corpo humano como o templo da alma, e suas explicações teleológicas para todos os fenômenos estavam de acordo com a ideia predominante estabelecida em Roma no século 4 d.C. Visto que o conhecimento provinha da fé, o conhecimento anatômico não era importante. Isso explica porque as crenças errôneas de Galeno duraram até o Renascimento, e o funcionamento do SCV só foi entendido a partir do século XVII.

Período medieval

Período bizantino

Com o declínio progressivo do império romano ocidental, não houve mais avanços no conhecimento médico. Uma exceção foi o trabalho de Oribasio de Pérgamo (325-403 d.C.) (Império Romano Oriental). Trabalhando com lentes de aumento, este autor confirmou a descrição de Erasístrato a respeito da anastomose entre veias e artérias, principalmente nos rins. Oribasio nomeou as anastomoses de "capilares". Além disso, ele descreveu corretamente a circulação renal: perfusão através da artéria renal, que era uma ramificação da aorta, e o retorno venoso através da veia renal, que era uma ramificação da veia cava inferior2121 Eftychiadis AC. Renal and glomerular circulation according to Oribasius (4th century). Am J Nephrol. 2002;22(2-3):136-8..

Em 431 d.C., os nestorianos, seguidores de Nestório, patriarca de Constantinopla, foram expulsos de Constantinopla, acusados de heresia. Eles imigraram para Edessa, no norte da Assíria (Mesopotâmia), onde uma escola de medicina tinha sido fundada em 363 d.C., e um hospital tinha sido construído por São Efraim2222 Whipple AO. Role of nestorians. Ann Med Hist (New Ser). 1936;2:313-23.. Nesta escola, os assírios mantiveram uma conexão próxima com a literatura médica grega2222 Whipple AO. Role of nestorians. Ann Med Hist (New Ser). 1936;2:313-23.,2323 Johna S. From warriors to guardians: the Assyrians and their role in the history of medicine. Am Surg. 2002;68(10):927-9.. Quando a escola de Edessa foi fechada em 489 d.C., os nestorianos se refugiaram na cidade de Gondishapur na Pérsia, fundada em 271 d.C.2424 Miller AC. Jundi-shapur, bimaristans, and the rise of academic medical centres. J R Soc Med. 2006;99(12):615-7., levando com eles as obras de Hipócrates, Aristóteles e Galeno traduzidas para o siríaco. O mesmo aconteceu com os médicos gregos, que foram exilados em Gondishapur após a escola de Atenas ter sido fechada em 529 d.C. Esses intelectuais tornaram-se parte da escola de Gondishapur, criada em 555 d.C., e que posteriormente serviu de modelo para as escolas de medicina da Pérsia. Um hospital de ensino foi construído neste local, o que inspirou o surgimento de outros hospitais, não só no mundo islâmico, mas também na Europa2525 Zargaran A. Ancient Persian medical views on the heart and blood in the Sassanid era (224-637 DC). Int J Cardiol. 2014;172(2):307-12..

Os árabes, que conquistaram a Pérsia e a Mesopotâmia no século VII d.C., incorporaram este modelo para a escola de medicina presente naquele local. Isso se refletiu na Europa, onde os árabes mantiveram sua hegemonia sobre a Espanha e Portugal durante séculos. Desta forma, todo o conhecimento médico adquirido nos séculos anteriores e esquecido na Europa durante a Idade Média seria preservado nas escolas médicas do mundo islâmico. Com a tradução dessas obras para o latim, a partir do século XI, o conhecimento médico finalmente retornou à Europa.

Período islâmico

Durante este período, as dissecções do corpo humano eram proibidas por motivos religiosos; apenas dissecções de animais eram permitidas, e por este motivo não houve progresso científico acentuado em relação ao SCV. Rhazis (865-925 d.C.) contribuiu de forma significativa ao discordar de Galeno em relação à presença de osso na base cardíaca2626 Shoja MM, Tubbs RS. The history of anatomy in Persia. J Anat. 2007;210(4):359-78.. Haly Abbas (930-994 d.C.) avançou um pouco mais na caracterização morfológica da artéria pulmonar através da identificação de duas camadas musculares, ao descrever a aorta mais precisamente, e as artérias coronárias em 9652727 Dalfardi B, Nezhad GS, Mehdizadeh A. How did Hally Abas look at the cardiovascular system? Int J Cardiol. 2014;172(1):36-9.; ele sugeriu uma comunicação funcional entre as ramificações terminais de veias e artérias2828 Yarmohammadi H, Dalfardi B, Rezaian J, Ghanizadeh A. Al-Akhawayni's description of pulmonary circulation. Int J Cardiol. 2013;168(3):1819-21.. No entanto, é controverso se ele havia admitido a comunicação entre os dois ventrículos ou não2727 Dalfardi B, Nezhad GS, Mehdizadeh A. How did Hally Abas look at the cardiovascular system? Int J Cardiol. 2014;172(1):36-9.,2828 Yarmohammadi H, Dalfardi B, Rezaian J, Ghanizadeh A. Al-Akhawayni's description of pulmonary circulation. Int J Cardiol. 2013;168(3):1819-21..

Ainda no século X, Al-Bukhari Akhawayni (?-983 d.C.) fez importantes contribuições para o desenvolvimento do conhecimento da anatomofisiologia do SCV, e isto pode ter sido consequência da crença de que o autor era capaz de realizar autópsias no corpo humano na Pérsia antiga2727 Dalfardi B, Nezhad GS, Mehdizadeh A. How did Hally Abas look at the cardiovascular system? Int J Cardiol. 2014;172(1):36-9.. Ele afirmou que o coração tem quatro cavidades, vasos pulmonares e aorta, todos eles com valvas para impedir o refluxo sanguíneo. Ele descreveu o pericárdio com precisão anatômica.

Apesar de Al-Bukhari Akhawayni ter reconhecido dois poros no septo interventricular, o que permitiria a comunicação entre os dois ventrículos, ele enfatizou que a maior parte do sangue recebido pelo ventrículo direito era transportado aos pulmões. A partir dos pulmões, o sangue seria transportado ao ventrículo esquerdo, a partir daí ate a aorta, e da aorta seria distribuído por todo o corpo. Al-Akhawayni descreveu uma circulação rudimentar do pulmão, enfatizando que a função do coração era bombear o sangue, e os vasos sanguíneos transportavam apenas sangue, e não pneuma. Ele também descreveu com precisão as artérias coronárias2828 Yarmohammadi H, Dalfardi B, Rezaian J, Ghanizadeh A. Al-Akhawayni's description of pulmonary circulation. Int J Cardiol. 2013;168(3):1819-21. em 975 d.C.2727 Dalfardi B, Nezhad GS, Mehdizadeh A. How did Hally Abas look at the cardiovascular system? Int J Cardiol. 2014;172(1):36-9., mais ou menos na mesma época que Hally Abbas.

No entanto, coube a Avicena (980-1037 d.C.) voltar no tempo. Embora ele tenha reconhecido claramente a sístole e diástole cardíaca2929 Dalfardi B, Yarmohammadi H. The heart under the lens of Avicenna. Int J Cardiol. 2014;173(1):e1-2., Avicena adotou o modelo cardiocentrista de Aristóteles e aceitou a presença de poros no septo interventricular. O ventrículo esquerdo era a câmara cardíaca que abrigaria o pneuma e a sede das emoções3030 Khan MS. Ibn Sina's treatise on drugs for the treatment of cardiac diseases. Islam Quar. 1983;27(1):49-56..

Em 1260, Ibn-Nafis (1210-1288 d.C.), comentando sobre as obras de Avicena, praticamente descreveu a circulação pulmonar. Embora seja provável que Ibn-Nafis tenha ocasionalmente realizado autópsias em humanos3131 Loukas M, Lam R, Tubbs S, Shoja MM, Apaydin N. Ibn al-Nafis (1210-1288); the first description of the pulmonary circulation. Am Surg. 2008:74(5):440-2., a descrição de Ibn-Nafis parece ser mais teórica do que baseada em dissecções em humanos3232 Meyhorf M. Ibn an-Nafis (XIIIth cent) and his theory of the lesser circulation. Isis. 1935;23:100-20.. No entanto, a convicção ética com a qual ele descreveu as características anatômicas do septo interventricular é evidência de que ele realmente tenha realizado dissecções anatômicas em seres humanos3333 Wilson LG. The problem of discovery of the pulmonary circulation. J Hist Med All Sci. 1962;17(4):229-44.. Portanto, Ibn-Nafis negou a presença de poros no septo interventricular-ou qualquer comunicação entre os dois ventrículos-bem como a presença de três ventrículos3434 Bittar EE. A study of Ibn Nafis. Bull Hist Med. 1955;29(5):429-47..

Ele ressaltou que o sangue seria transportado ao ventrículo direito, e dessa cavidade chegaria aos pulmões através da artéria pulmonar. A partir dos pulmões, o sangue regressaria ao coração por meio de veias pulmonares, e a partir do coração, através da aorta, o sangue seria distribuído por todo o corpo. Ainda sob a influência de Galeno, ele acreditava que a transformação do espírito vital ocorria no ventrículo esquerdo e seria distribuído juntamente com o sangue. Na sua opinião, o restante da circulação ocorreria de acordo com a ideia de Galeno. Ibn-Nafis acreditava que a nutrição cardíaca era feito por vasos que permeavam o corpo do coração (artérias coronárias)3535 Haddad SI, Khairallah A. A forgotten chapter in the history of the circulation of the blood. Ann Surg. 1936;104:1-8..

Período europeu

No século X, com o advento da escola médica de Salerno, na Itália, houve o renascimento da aprendizagem médica. As obras médicas clássicas dos gregos, cujos ensinamentos práticos guiaram a medicina antiga, haviam sido perdidas no tempo. No entanto, estas haviam sido mantidas em mosteiros e reproduzidas pelos monges beneditinos. Não mais sendo colocados em prática, tais ensinamentos haviam caído em desuso, e os procedimentos cirúrgicos haviam sido abandonados. Somente com o surgimento da escola médica de Salerno é que a dissecção de animais tornou-se rotina. Além disso, os mestres de Salerno traduziram obras gregas antigas para o latim, incluindo informações relativas a procedimentos cirúrgicos. Por isso, eles enfatizavam a terapêutica cirúrgica, que ressurgiu devido a necessidade de obtenção de conhecimento anatômico3636 Lyons AS. Medical sects and the center at Alexandria. In: Lyons AS, Petrucelli RJ. (eds.). Medicine: an illustrated history. New York: Abradale Press; 1978..

Não havia proibição pela Igreja Católica para a realização de dissecções humanas. Em ocasiões especiais, quando se suspeitava da causa da morte, ou durante o período de epidemias, a autópsia era realizada para a realização do diagnóstico correto da causa da morte3737 Andrioli G, Trincia G. Padua: the renaissance of human anatomy and medicine. Neurosurgery. 2004;55(4):746-54.. Um registro de autópsias foi mantido por Pietro D'Abano em torno de 1306, com finalidade médico-legal3838 Del Nero P. L'Università di Padova. Otto secoli di storia. Signun Padova Editrice: Padova; 2002. A falta de cadáveres para dissecção foi outro fator que limitou a obtenção de conhecimento anatômico3939 Alston MN. The attitude of the church towards dissection before 1500. Bull Hist Med. 1944;16:221-38..

Em 1316, Mondino da Luzzi (1276-1326 d.C.), em Bolonha, reiniciou dissecções anatômicas sistemáticas em seres humanos, com o objetivo de conhecer a anatomia humana4040 Crivellato E, Ribatti D. Mondino de Liuzzi and his Anathomia. Cl Anat 2006;19(7):581-7.. No entanto, tais dissecções eram realizadas por um barbeiro. A principal consequência desta prática incorreta foi a falta de progresso no conhecimento anatômico. Assim, Mondino da Luzzi acreditava na presença de três ventrículos cardíacos. Pior ainda, além da presença do terceiro ventrículo, Mondino da Luzzi enfatizou a presença de poros no septo interventricular4141 Infusino MH, Win D, O'Neil YV. Mondino's book and the human body. Vesalius. 1995;1(2):71-6.. Este autor não identificou os átrios.

Berengario de Carpi (1470? -1550 d.C.) foi a médico italiano que alterou o conceito de anatomia. Ele pôs-se à mesa cirúrgica e dissecou vários cadáveres. Sendo assim, em 1521, ele mostrou claramente a existência de apenas dois ventrículos, dois átrios, valvas semilunares e atrioventriculares, e a existência de músculos papilares como componentes do aparato subvalvar. Desta forma, este anatomista recuperou o conhecimento adquirido na Grécia antiga e na escola de Alexandria4242 Fontanini F, Signorelli S. Berengário da Carpi: ci mostrò muscoli papillari, corde tendinae e valvole del cuore. G Ital Cardiol. 1997;27(6):621-3..

Leonardo da Vinci (1452-1518 d.C.), que provavelmente dissecou cadáveres humanos, atribuiu um significado funcional aos átrios, mostrando que eles contraem quando os ventrículos se dilatam. Ele enfatizou que o coração é um simples músculo, e não um lugar de espíritos ou ar. Além disso, ele forneceu uma imagem detalhada do aparato mitral e descreveu a banda moderadora do ventrículo direito. No entanto, da Vinci ainda acreditava na existência de poros no septo interventricular, e adotou o modelo de Galeno sobre a distribuição do sangue por todo o corpo4343 Shoja MM, Agutter OS, Loukas M, Benninger B, Shokouhi G, Namdar H, et al. Leonardo da Vinci's studies of the heart. Int J Cardiol. 2013;167(4):1126-38..

Miguel Servet (1511-1553 d.C.) (Figura 2), teólogo treinado em anatomia, descreveu a circulação pulmonar em detalhes em poucas páginas na obra religiosa Christianismi Restitutio (1553), o que levou a sua morte na fogueira em 1553. Servet acreditava que o sangue do ventrículo direito passava ao lado esquerdo do coração através dos capilares pulmonares, e que não havia poros no septo interventricular. Além disso, o sangue misturava-se com ar nos pulmões e não no ventrículo esquerdo, e utilizou esta informação como base para o seu argumento da mudança da cor do sangue que ocorria nos pulmões, além do tamanho da artéria pulmonar, que era muito maior do que a necessária se a função deste vaso fosse apenas de nutrição pulmonar4444 Cattermole GN. Michael Servetus: physician, Socinian and victm. J R Soc Med. 1997;90(11):640-4.. Servet acreditava que o sangue passava da artéria pulmonar para as veias pulmonares através dos capilares sanguíneos4545 Temkin O. Was Servetus influenced by Ibn An-Nafis? Bull Hist Med. 1940;8:731-4.. Essas convicções foram obtidas através da prática rotineira de dissecção anatômica.

Figura 2
Miguel Servet, que descreveu a circulação pulmonar. Semmelweiss Medical History Museum, Budapeste, Hungria. Cortesia do autor (RBB).

Andrea Vesalius (1514-1564 d.C.), tornou-se o mais célebre anatomista do período medieval. Tendo sido contratado para trabalhar na Faculdade de Pádua em 1537, Vesalius realizou varias dissecções anatômicas. A consequência disso foi a publicação do livro De humani corporis fabrica, libri septem, em 1543, em que Vesalius corrigiu os inúmeros erros cometidos pelos anatomistas precedentes. No que diz respeito ao SCV, Vesalius demonstrou a ausência da rede mirabilis em seres humanos3737 Andrioli G, Trincia G. Padua: the renaissance of human anatomy and medicine. Neurosurgery. 2004;55(4):746-54..

No entanto, na primeira edição do livro De humani corporis fabrica, Vesalius não faz alusão à ausência de poros no septo interventricular3737 Andrioli G, Trincia G. Padua: the renaissance of human anatomy and medicine. Neurosurgery. 2004;55(4):746-54.. Foi somente em 1559, depois de Colombo ter apontado a ausência de poros no septo interventricular, que Vesalius definitivamente corrigiu os erros relacionados à anatomia cardíaca. Foi ele quem nomeou a valva atrioventricular, que separa o átrio esquerdo do ventrículo esquerdo, de "mitral"4646 Silverman ME. Andreas Vesalius and De Humani Corporis Fabrica. Clin Cardiol. 1991;14(3):276-9..

Matteo Realdo Colombo (1516-1559 d.C.), em seu livro De Re Anatomica libri XV de 1559, ao contrário de Vesalius, descreveu corretamente a posição anatômica dos rins e demonstrou a circulação pulmonar. Ele afirmou que o sangue era transportado do ventrículo direito à artéria pulmonar, e a partir dai aos pulmões, onde o sangue seria atenuado e, juntamente com o ar, seria transportado ao ventrículo esquerdo através da veia pulmonar. Ele também enfatizou a largura da artéria pulmonar, como Servet havia feito. Colombo nunca mencionou a existência de poros no septo interventricular4747 Eknoyan G, De Santo NG. Realdo Colombo (1516-1559). Am J Nephrol. 1997;17(3-4):261-8..

Também é discutível se Colombo, a exemplo do que tinha acontecido com Servet e Ibn-Nafis, foi influenciado pelo próprio Servet. Aparentemente, Servet enviou o rascunho de seu livro a Pádua em 1546. Se Colombo teve acesso a ele é ainda uma questão em aberto3131 Loukas M, Lam R, Tubbs S, Shoja MM, Apaydin N. Ibn al-Nafis (1210-1288); the first description of the pulmonary circulation. Am Surg. 2008:74(5):440-2., e se Colombo teve ou não contato com o trabalho de Ibn-Nafis também é uma questão em aberto4848 Coppola ED. The Discovery of the pulmonary circulation: a new approach. Bull Hist Med. 1957;31:44-77..

Com exceção de Antônio Benivieni, em 1507, poucos cientistas deram atenção suficiente às anomalias anatomopatológicas humanas. Colombo descreve curiosamente as anomalias cardíacas, o hidrotórax provavelmente secundário a insuficiência cardíaca crônica descompensada, a endocardite bacteriana, o enfarte do miocárdio, e a pericardite crônica4949 Moes RJ, O'Malley CD. Realdo Colombo: "On those things rarely found in anatomy". Bull Hist Med. 1960;34:508-28..

Embora Amatus Lusitanus tenha descrito a existência de valvas na veia ázigo em 1551, ele forneceu uma explicação errada sobre o significado anatômico dessas estruturas. Desta forma, Fabricius ab Aquapendente, em sua publicação seminal de 1603, De venarum ostiolis, foi o responsável pela descrição da presença, estrutura, e características anatômicas de tais valvas, e a percepção de que elas funcionavam para conter o refluxo sanguíneo. No entanto, Fabricius observou apenas uma contenção parcial do refluxo sanguíneo, afirmando que parte do sangue seria distribuído aos tecidos pelas veias5050 Franklin KJ. Valves in the veins: an historical survey. Proc R Soc Med. 1927;21(1):1-33..

William Harvey foi um discípulo de Fabricius na Universidade de Pádua. Levando em consideração a descoberta de Fabricius a respeito das válvulas venosas, Harvey identificou corretamente a sua função, ou seja, a de conter o sangue. Isto abriu a perspectiva para a sua descoberta da circulação sanguínea, muitos anos depois, em 1628.

O esquema temporal das principais descobertas está apresentado na Figura 3.

Figure 3
Desenvolvimento do conhecimento do sistema cardiovascular através dos tempos. Painel A) eventos antes de Cristo (a.C.). Painel B) eventos depois de Cristo (d.C.). SIV: septo interventricular.

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  • Contribuição dos autores
    Concepção e desenho da pesquisa e Análise e interpretação dos dados: Bestetti RB, Restini CBA; Obtenção de dados: Bestetti RB; Redação do manuscrito e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Bestetti RB, Restini CBA, Couto LB.
  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2014
  • Revisado
    23 Jul 2014
  • Aceito
    24 Jul 2014
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