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Cardiologia Comportamental: Uma Nova Fronteira de Atuação da Cardiologia

Doenças Cardiovasculares / tendências; Indicadores de Morbimortalidade; Adesão à medicação; Resultado do Tratamento

As doenças cardiovasculares representam a principal causa de morbimortalidade ao redor do mundo, em especial no Brasil, apesar dos avanços no diagnóstico e no tratamento1Lozano R, Naghavi M, Foreman K, Lim S, Shibuya K, Aboyans V, et al. Global and regional mortality from 235 causes of death for 20 age groups in 1990 and 2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2095-128. Erratum in: Lancet. 2013;381(9867):628.. Especula-se que parte desses eventos adversos esteja associada à falta de aderência às recomendações médicas (farmacológicas e não farmacológicas) por parte dos pacientes2Osterberg L, Blaschke T. Adherence to medication. N Engl J Med. 2005;353(5):487-97.,3Bosworth HB, Granger BB, Mendys P, Brindis R, Burkholder R, Czajkowski SM, et al. Medication adherence: a call for action. Am Heart J. 2011;162(3):412-24.. Nesse sentido, existe a recomendação de que a avaliação da aderência e eventualmente a identificação das causas de falha na aderência sejam parte da anamnese cardiovascular4Perk J, De Backer G, Gohlke H, Graham I, Reiner Z, Verschuren M, et al; European Association for Cardiovascular Prevention & Rehabilitation (EACPR); ESC Committee for Practice Guidelines (CPG). European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice (version 2012). The Fifth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice (constituted by representatives of nine societies and by invited experts). Eur Heart J. 2012;33(13):1635-701. Erratum in Eur Heart J. 2012;33(17):2126.. No estudo publicado por Oliveira-Filho e cols.5Oliveira Filho AD, Morisky DE, Costa FA, Pacheco ST, Neves SF, Lyra-Jr DP. Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado - estudo piloto. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(5):502-512. nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, intitulado “Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado – Estudo piloto”, o tema aderência é abordado mediante um estudo clínico randomizado conduzido pelos autores. Nesse estudo, 61 pacientes com diagnóstico de doença cardiovascular no momento da alta hospitalar foram randomizados para receber uma intervenção centrada em educação e informação, incluindo simplificação de posologia, utilizando como base uma escala de aderência de quatro itens versus tratamento padrão. Os autores compararam desfechos de aderência em um mês e doze meses após o início do acompanhamento, além de desfechos clínicos (readmissão hospitalar e óbito) no período de acompanhamento. A taxa de aderência foi avaliada de acordo com a escala de adesão terapêutica de oito itens de Morisky6de Oliveira-Filho AD, Morisky DE, Neves SJ, Costa FA, de Lyra DP Jr. The 8-item Morisky Medication Adherence Scale: validation of a Brazilian-Portuguese version in hypertensive adults. Res Social Adm Pharm. 2014;10(3):554-61.,7Morisky DE, Ang A, Krousel-Wood M, Ward HJ. Predictive validity of a medication adherence measure in an outpatient setting. J Clin Hypertens (Greenwich). 2008;10(5):348-54.. Em um mês de acompanhamento, a taxa de aderência foi significativamente maior no grupo intervenção (83,3% versus 48,4%). Ao longo do acompanhamento a taxa de aderência decaiu entre os grupos, não sendo possível encontrar diferença estatisticamente significativa, permanecendo, entretanto, aproximadamente 61% no grupo intervenção. Quanto às readmissões e óbitos, não houve diferença significativa entre os grupos, embora o estudo não tenha sido desenhado para esse objetivo primordialmente. Ressaltamos, contudo, que, considerando os aderentes, independentemente do grupo de alocação, a taxa de desfechos clínicos foi menor quando comparada aos pacientes não aderentes. Em estudo recente, Castellano e cols.8Castellano JM, Sanz G, Penalvo JL, Bansilal S, Fernandez-Ortiz A, Alvarez L, et al. A polypill strategy to improve adherence: results from the FOCUS project. J Am Coll Cardiol. 2014 Sep 1. [Epub ahead of print]..avaliaram a polipílula versus tratamento padrão, em pacientes pós-infarto agudo do miocárdio, observando melhora na taxa de aderência, mas não em desfechos cardiovasculares. Comum em ambos estudos, a simplificação de posologia parece ser efetiva e deve ser uma tendência.

Metodologicamente bem planejado e executado, o estudo de Oliveira-Filho e cols.5Oliveira Filho AD, Morisky DE, Costa FA, Pacheco ST, Neves SF, Lyra-Jr DP. Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado - estudo piloto. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(5):502-512. traz ensinamentos para a prática clínica e para a maneira pela qual médicos e profissionais de saúde poderiam interagir com seus pacientes. Educação do paciente e simplificação da posologia devem ser parte da estratégia de melhorar aderência dos pacientes. Além disso, o pano de fundo desse estudo, em última análise, remete a comportamento. Nos últimos anos, a denominação “Cardiologia comportamental” tem sido utilizada para definir uma nova fronteira de atuação da Cardiologia e atualmente engloba a relação entre a saúde mental e cardiovascular, a influência de fatores psicossociais sobre a incidência das doenças cardiovasculares, e finalmente aspectos comportamentais dos pacientes, que determinam maior ou menor adesão às recomendações médicas9Rozanski A. Behavioral cardiology: current advances and future directions. J Am Coll Cardiol. 2014;64(1):100-10.,1010 Simao AF, Precoma DB, Andrade JP, Correa Filho H, Saraiva JF, Oliveira GM, et al. I cardiovascular prevention guideline of the Brazilian Society of Cardiology - executive summary. Arq Bras Cardiol. 2014;102(5):420-31.. Diversas teorias comportamentais se completam e procuram explorar os diferentes domínios que regem o comportamento de um paciente ante um fator de risco ou mesmo uma doença. Da mesma forma, há inúmeros exemplos na literatura demonstrando que intervenções em saúde, no âmbito individual ou populacional, têm maior chance de êxito quando baseadas na combinação de teorias comportamentais, com destaque para o modelo de crença em saúde, os estágios de mudança, a teoria cognitiva social, autoeficácia e reforço positivo1111 Glanz K, Bishop DB. The role of behavioral science theory in development and implementation of public health interventions. Annu Rev Public Health. 2010;31:399-418.. Em todas essas teorias, a questão de informação e educação do paciente é central.

Especificamente, de acordo com o modelo de crenças em saúde1212 Janz NK, Becker MH. The Health Belief Model: a decade later. Health Educ Q. 1984;11(1):1-47., os principais domínios que regem comportamento são a suscetibilidade percebida a determinado risco ou doença, a percepção de gravidade da doença, bem como dos benefícios e barreiras em relação a determinada mudança comportamental. De acordo com essa teoria, o primeiro passo para o paciente aderir às recomendações (quer seja praticando atividade física, ou tomando uma medicação para evitar um desfecho cardiovascular) é se perceber em risco de desenvolver a doença. E a literatura indica que já nesse primeiro passo os pacientes subestimam seu risco1313 Katz M, Laurinavicius AG, Franco FG, Conceicao RD, Carvalho JA, Pesaro AE, et al. Calculated and perceived cardiovascular risk in asymptomatic subjects submitted to a routine medical evaluation: The perception gap*. Eur J Prev Cardiol. 2014. Jul 18. [Epub ahead of print]..

Além disso, os benefícios da prevenção cardiovascular ocorrem em longo prazo, enquanto as barreiras para mudança de estilo de vida se colocam no presente. Os médicos e os profissionais da saúde devem procurar calibrar a percepção de risco dos pacientes e, nesse sentido, a educação e a informação em saúde são fundamentais. O paciente que conhece sua doença e recebe informação precisa sobre como manejar o tratamento tende a ter uma aderência maior ao tratamento, exatamente como demonstrado no estudo de Oliveira-Filho e cols.5Oliveira Filho AD, Morisky DE, Costa FA, Pacheco ST, Neves SF, Lyra-Jr DP. Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado - estudo piloto. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(5):502-512.. Somado a isso, informar o paciente ocasiona um maior engajamento. As teorias comportamentais têm proposto que o engajamento no plano de tratamento incluindo paciente e sua família é fundamental para superar barreiras e obter os melhores benefícios.

Vale ressaltar, porém, que nem todos os pacientes estão prontos para assumir a responsabilidade por seu tratamento. A teoria de estágios de mudança1414 Prochaska JM, Prochaska JO, Levesque DA. A transtheoretical approach to changing organizations. Adm Policy Ment Health. 2001;28(4):247-61. define diferentes estágios de aptidão para mudança. Os pacientes podem estar na fase pré-contemplativa, ou seja, não estão prontos para a mudança e em alguns casos até negam a doença ou os riscos inerentes; na fase contemplativa, os pacientes percebem os riscos e aceitam a necessidade de mudanças; na fase de preparação os paciente planejam efetivamente a ação de mudança, discutindo o “como executar a mudança”; na fase de ação, efetivamente iniciam as mudanças; e na fase de manutenção, as atitudes saudáveis se tornam um hábito sustentável. O papel do médico e dos profissionais da saúde é fundamental para o avanço nos estágios.

Algo útil para as mudanças é trabalhar com a autoeficácia dos pacientes, ou seja, a autoconfiança quanto à habilidade para mudar. Nesse sentido, definir metas intermediárias de tratamento, com reforços positivos após o cumprimento das metas, funciona na maior parte dos casos. Como exemplo, em um paciente sedentário, que não realiza exercício físico, estabelecer uma meta de atividade física duas vezes por semana; embora não seja a ideal, é tangível. O fato de o paciente atingir essa meta melhora sua autoconfiança, e o reforço positivo do profissional de saúde melhora a autoestima. O passo seguinte é definir, como meta, atividade três vezes por semana, e assim por diante.

Vale ressaltar a importância da avaliação do ambiente em que se insere o paciente quando se pretende promover uma mudança comportamental positiva. É preciso entender os núcleos familiar, de trabalho e comunitário como essenciais para o planejamento da mudança. Um bom exemplo é a questão da obesidade. Discutir dieta nesse contexto passa pela avaliação da família, daquilo que o paciente come no trabalho, e que tipo de alimento, e a que custo, é oferecido na comunidade em que ele se insere.

Destacamos que em se tratando de comportamento e aderência, mais de cem fatores foram identificados como potenciais preditores de adesão, e portanto não se pode esperar uma “intervenção tamanho único”3Bosworth HB, Granger BB, Mendys P, Brindis R, Burkholder R, Czajkowski SM, et al. Medication adherence: a call for action. Am Heart J. 2011;162(3):412-24.. Nesse sentido, é realmente fundamental desenvolver métodos alternativos de implementação de intervenções, que sejam eficazes e acessíveis. Além disso, é preciso utilizar recursos de tecnologia como instrumentos no engajamento e participação dos pacientes. Por fim, entendemos que o financiamento e a divulgação de estudos sobre aderência devem ser uma prioridade.

Assim, dentro desse cenário de teorias comportamentais aplicadas às intervenções em saúde, o estudo de Oliveira-Filho e cols.5Oliveira Filho AD, Morisky DE, Costa FA, Pacheco ST, Neves SF, Lyra-Jr DP. Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado - estudo piloto. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(5):502-512. traz grande contribuição ao conhecimento atual. Acreditamos que a leitura desse artigo será de grande utilidade aos leitores dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia.

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    Lozano R, Naghavi M, Foreman K, Lim S, Shibuya K, Aboyans V, et al. Global and regional mortality from 235 causes of death for 20 age groups in 1990 and 2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet. 2012;380(9859):2095-128. Erratum in: Lancet. 2013;381(9867):628.
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    Osterberg L, Blaschke T. Adherence to medication. N Engl J Med. 2005;353(5):487-97.
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    Bosworth HB, Granger BB, Mendys P, Brindis R, Burkholder R, Czajkowski SM, et al. Medication adherence: a call for action. Am Heart J. 2011;162(3):412-24.
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    Perk J, De Backer G, Gohlke H, Graham I, Reiner Z, Verschuren M, et al; European Association for Cardiovascular Prevention & Rehabilitation (EACPR); ESC Committee for Practice Guidelines (CPG). European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice (version 2012). The Fifth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice (constituted by representatives of nine societies and by invited experts). Eur Heart J. 2012;33(13):1635-701. Erratum in Eur Heart J. 2012;33(17):2126.
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    Oliveira Filho AD, Morisky DE, Costa FA, Pacheco ST, Neves SF, Lyra-Jr DP. Otimização da adesão terapêutica pós-alta hospitalar de pacientes com DCV: ensaio clínico randomizado - estudo piloto. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(5):502-512.
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    de Oliveira-Filho AD, Morisky DE, Neves SJ, Costa FA, de Lyra DP Jr. The 8-item Morisky Medication Adherence Scale: validation of a Brazilian-Portuguese version in hypertensive adults. Res Social Adm Pharm. 2014;10(3):554-61.
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    Morisky DE, Ang A, Krousel-Wood M, Ward HJ. Predictive validity of a medication adherence measure in an outpatient setting. J Clin Hypertens (Greenwich). 2008;10(5):348-54.
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    Castellano JM, Sanz G, Penalvo JL, Bansilal S, Fernandez-Ortiz A, Alvarez L, et al. A polypill strategy to improve adherence: results from the FOCUS project. J Am Coll Cardiol. 2014 Sep 1. [Epub ahead of print]..
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    Rozanski A. Behavioral cardiology: current advances and future directions. J Am Coll Cardiol. 2014;64(1):100-10.
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    Simao AF, Precoma DB, Andrade JP, Correa Filho H, Saraiva JF, Oliveira GM, et al. I cardiovascular prevention guideline of the Brazilian Society of Cardiology - executive summary. Arq Bras Cardiol. 2014;102(5):420-31.
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    Glanz K, Bishop DB. The role of behavioral science theory in development and implementation of public health interventions. Annu Rev Public Health. 2010;31:399-418.
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    Janz NK, Becker MH. The Health Belief Model: a decade later. Health Educ Q. 1984;11(1):1-47.
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    Katz M, Laurinavicius AG, Franco FG, Conceicao RD, Carvalho JA, Pesaro AE, et al. Calculated and perceived cardiovascular risk in asymptomatic subjects submitted to a routine medical evaluation: The perception gap*. Eur J Prev Cardiol. 2014. Jul 18. [Epub ahead of print].
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    Prochaska JM, Prochaska JO, Levesque DA. A transtheoretical approach to changing organizations. Adm Policy Ment Health. 2001;28(4):247-61.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2015
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