Acessibilidade / Reportar erro

Desempenho do Eletrocardiograma no Diagnóstico da Hipertrofia Ventricular Esquerda em Pacientes Hipertensos na Presença de Bloqueio de Ramo Esquerdo

Resumo

Fundamento:

A hipertrofia ventricular esquerda (HVE) é importante fator de risco para eventos cardiovasculares, e sua identificação se inicia, geralmente, pela realização do eletrocardiograma (ECG).

Objetivo:

Avaliar, em hipertensos, o impacto do bloqueio completo do ramo esquerdo (BCRE) no desempenho diagnóstico da HVE pelo ECG.

Métodos:

Foram estudados 2.240 pacientes hipertensos. Todos realizaram ECG e ecocardiograma (ECO). Foram avaliados os critérios eletrocardiográficos mais utilizados para o diagnóstico de HVE: Cornell voltagem, Cornell voltagem produto, Sokolow-Lyon voltagem, Sokolow-Lyon produto, RaVL, RaVL produto, RaVL+SV3, Relação RV6/RV5, padrão strain, aumento atrial esquerdo e o intervalo QT. O padrão de identificação da HVE foi o índice de massa do ventrículo esquerdo (IMVE) obtido pelo ECO em todos participantes.

Resultados:

A média de idade foi de 11,3 anos ± 58,7 anos, 684 (30,5%) homens e 1.556 (69,5%) mulheres. Nos participantes sem BCRE, a sensibilidade do ECG para a presença de HVE variou de 7,6 a 40,9%, e a especificidade de 70,2 a 99,2%. Nos participantes com BCRE, a sensibilidade para a HVE variou de 11,9 a 95,2%, e a especificidade de 6,6 a 96,6%. Dentre os critérios com melhor desempenho para HVE com BCRE, destacou-se o de Sokolow-Lyon para voltagem ≥ 3,0mV com sensibilidade de 22,2% (IC 95% 15,8 - 30,8) e especificidade de 88,3% (IC 95% 77,8 - 94,2).

Conclusão:

Nos hipertensos com BCRE, os critérios mais utilizados para detecção da HVE pelo ECG apresentaram diminuição significativa de desempenho da sensibilidade e especificidade. Nesse cenário, o critério de Sokolow-Lyon com voltagem ≥3,0mV apresentou melhor comportamento.

Palavras-chave:
Hipertensão; Eletrocardiografia / métodos; Hipertrofia Ventricular Esquerda / diagnóstico; Bloqueio de Ramo

Abstract

Background:

Left ventricular hypertrophy (LVH) is an important risk factor for cardiovascular events, and its detection usually begins with an electrocardiogram (ECG).

Objective:

To evaluate the impact of complete left bundle branch block (CLBBB) in hypertensive patients in the diagnostic performance of LVH by ECG.

Methods:

A total of 2,240 hypertensive patients were studied. All of them were submitted to an ECG and an echocardiogram (ECHO). We evaluated the most frequently used electrocardiographic criteria for LVH diagnosis: Cornell voltage, Cornell voltage product, Sokolow-Lyon voltage, Sokolow-Lyon product, RaVL, RaVL+SV3, RV6/RV5 ratio, strain pattern, left atrial enlargement, and QT interval. LVH identification pattern was the left ventricular mass index (LVMI) obtained by ECHO in all participants.

Results:

Mean age was 11.3 years ± 58.7 years, 684 (30.5%) were male and 1,556 (69.5%) were female. In patients without CLBBB, ECG sensitivity to the presence of LVH varied between 7.6 and 40.9%, and specificity varied between 70.2% and 99.2%. In participants with CLBBB, sensitivity to LVH varied between 11.9 and 95.2%, and specificity between 6.6 and 96.6%. Among the criteria with the best performance for LVH with CLBBB, Sokolow-Lyon, for a voltage of ≥ 3,0mV, stood out with a sensitivity of 22.2% (CI 95% 15.8 - 30.8) and specificity of 88.3% (CI 95% 77.8 - 94.2).

Conclusion:

In hypertensive patients with CLBBB, the most often used criteria for the detection of LVH with ECG showed significant decrease in performance with regards to sensitivity and specificity. In this scenario, Sokolow-Lyon criteria with voltage ≥3,0mV presented the best performance.

Keywords:
Hypertension; Electrocardiography / methods; Hypertrophy, Left Ventricular / diagnosis; Bundle-Branch Block

Introdução

O diagnóstico da hipertrofia ventricular esquerda (HVE) pelo eletrocardiograma (ECG) em pacientes hipertensos envolve decisões clínicas e prognósticas. Os estudos pioneiros de Framingham demonstraram que as alterações na voltagem do QRS e na repolarização ventricular são determinantes importantes para eventos cardiovasculares.11 Levy D, Labib SB, Anderson KM, Christiansen JC, Kannel WB, Castelli WP. Determinants of sensitivity and specificity of electrocardiographic criteria for left ventricular hypertrophy. Framingham Heart Study. Circulation. 1990;81(3):815-20.,22 Prineas RJ, Rautaharju PM, Grandits G, Crow R; MRFIT Research Group. Independent risk for cardiovascular disease predicted by modified continuous score electrocardiographic criteria for 6-year incidence and regression of left ventricular hypertrophy among clinically disease free men: 16-year follow-up for the multiple risk factor intervention trial. J Electrocardiol. 2001;34(2):91-101.

O ECG, apesar da sensibilidade relativamente baixa, compensa essa limitação com alta especificidade na identificação da HVE. Além disso, é um método amplamente disseminado, de fácil acesso e de baixo custo. Entretanto, diversas situações podem alterar negativamente o desempenho do ECG no diagnóstico da HVE. Dentre essas, destaca-se a presença do bloqueio completo de ramo esquerdo (BCRE).33 Petersen GV, Tikoff G. Left bundle branch block and left ventricular hypertrophy: electrocardiographic-pathologic correlations. Chest. 1971;59(2):174-7. Por interferir na mensuração de seus critérios e parâmetros, as alterações promovidas pelo BCRE no traçado do ECG são descritas como restritivas para o diagnóstico eletrocardiográfico da HVE.

O objetivo deste estudo foi avaliar a influência do BCRE na sensibilidade e especificidade dos principais critérios eletrocardiográficos utilizados no diagnóstico de HVE em pacientes com hipertensão arterial sistêmica (HAS).

Métodos

Foram analisados os traçados eletrocardiográficos em 12 derivações de 2.240 pacientes hipertensos em tratamento ambulatorial. Pacientes com doença orovalvar, doença arterial coronária conhecida, infarto do miocárdio prévio, doença de Chagas, distúrbios do ritmo, bloqueio de ramo direito, uso de compostos digitálicos, pré-excitação ventricular ou qualidade técnica inadequada do ecocardiograma foram excluídos da presente análise.

Eletrocardiograma

Todos os participantes realizaram ECG de repouso nas 12 derivações clássicas, registro com velocidade de 25 mm/s e calibração padronizada para 10 mm/cm (aparelho Dixtal® EP3, Brasil). Para análise precisa do traçado foi utilizada lupa que permitia aumento de cinco vezes em sua face de contato. Em todos os traçados (analisados pelo mesmo observador), um cardiologista certificado e com experiência em interpretação de ECG foi convocado. Foram estimados o eixo e a duração do complexo QRS; a amplitude da onda R nas derivações aVL, V5 e V6; a amplitude da onda S em V1, V2 e V3 e o padrão "strain" em V5 e V6. Foram avaliados, em separado, 14 critérios eletrocardiográficos para HVE, a saber:

  1. Critério de Cornell voltagem: RaVL + SV3 ≥20 mm para mulheres e ≥28 mm para homens.44 Casale PN, Devereux RB, Alonso DR, Campo E, Kligfield P. Improved sex-specific criteria of left ventricular hypertrophy for clinical and computer interpretation of electrocadiograms: validation with autopsy findings. Circulation. 1987;75(3):565-72.

  2. Critério de Cornell duração: (RaVL + SV3) x duração de QRS, para mulheres adicionar 8 mm, ≥2440 mm.ms.55 Okin PM, Roman MJ, Devereux RB, Kligfield P. Electrocardiographic identification of increased left ventricular mass by simple voltage-duration products. J Am Coll Cardiol. 1995;25(2):417-23.

  3. Critério de Sokolow-Lyon voltagem: SV1 + RV5 ou V6 ≥30 mm e ≥35 mm.66 Sokolow M, Lyon T. The ventricular complex in left ventricular hypertrophy as obtained by unipolar precordial and limb leads. Am Heart J. 1949;37(2):161-86.

  4. Critério de Sokolow-Lyon produto: (SV1 + RV5 ou V6) x duração QRS ≥3710 mm.ms.77 Molloy T, Okin P, Devereux R, Kligfield P. Electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy by the simple QRS voltage-duration product. J Am Coll Cardiol. 1992;20(5):1180-6.

  5. Escore de Gubner-Ungerleider: RD1+SV3 >25 mm.88 Gubner R, Ungerleider HE. Electrocardiographic criteria of left ventricular hypertrophy: factors determining the evolution of the electrocardiographic patterns in hypertrophy and bundle branch block. Arch Intern Med. 1943;72(2):196-209.

  6. Onda R de aVL ≥ 11 mm.99 Surawicz/Knilans. Chou's electrocardiography in clinical practice: adult & pediatric. 5th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2001.

  7. RaVL produto: RaVL x duração QRS ≥1030 mm.ms.77 Molloy T, Okin P, Devereux R, Kligfield P. Electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy by the simple QRS voltage-duration product. J Am Coll Cardiol. 1992;20(5):1180-6.

  8. RaVL +SV3 >16 mm em homens e >14mm em mulheres.1010 Casale PN, Devereux RB, Kligfield P, Eisenberg RR, Miller DH, Chaudhary BS, Phillips MC. Electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy: development and prospective validation of improved criteria. J Am Coll Cardiol. 1985;6(3):572-80.

  9. Relação RV6/RV5 >1.1111 Koito H, Spodick DH. Accuracy of the RV6: RV5 voltage ratio for increased left ventricular mass. Am J Cardiol. 1988;62(13):985-7.

  10. (Maior onda R + maior onda S) x (duração QRS): >28 mm.ms.1212 Mazzaro CL, Costa Fde A, Bombig MT, Luna Filho B, Paola AA, Carvalho AC, et al. Ventricular mass and electrocardiographic criteria of hypertrophy: evaluation of new score. Arq Bras Cardiol. 2008;90(4):227-31.

  11. Presença do padrão "strain": definido como depressão convexa do segmento ST com inversão assimétrica da onda T oposta ao complexo QRS nas derivações V5 ou V6.1313 Levy D, Salomon M, D'Agostino RB, Belanger AJ, Kannel WB. Prognostic implications of baseline electrocardiographic features and their serial changes in subjects with left ventricular hypertrophy. Circulation. 1994;90(4):1786-93.

  12. Aumento atrial esquerdo: duração ≥120 ms; alteração da onda P em D2 com empastamento no ápice ou sinal de Morris em V1: componente terminal com duração e amplitude ≥ 0,04 mm.s.1414 Miller DH, Eisenberg RR, Kligfield PD, Devereux RB, Casale PN, Phillips MC. Electrocardiographic recognition of left atrial enlargement. J Electrocardiol. 1983;16(1):15-22.

Outras variáveis eletrocardiográficas analisadas

  1. Intervalo QT: medido em ms, do início da onda Q até o final da onda T (corrigido pela fórmula de Bazett: QTc = QT/RR1/2; valores normais de 350 a 440 ms).1515 Schouten EG, Dekker JM, Meppelink P, Kok FJ, Vandenbroucke JP, Pool J. QT interval prolongation predicts cardiovascular mortality in an apparently healthy population. Circulation. 1991;84(4):1516-23.

  2. O BCRE foi identificado quando: duração do QRS ≥120ms; ausência de onda "q" em D1, aVL, V5 e V6; ondas R alargadas e com entalhes e/ou empastamento médio-terminais em D1, aVL, V5 e V6; onda "r" com crescimento lento de V1 a V3 podendo ocorrer QS; ondas S alargadas com espessamentos e/ou entalhes em V1 e V2; deflexão intrinsecóide em V5 e V6 ≥0,05 s, eixo elétrico entre -30º e + 60º; depressão de ST e onda T assimétrica em oposição ao retardo médio-terminal.1616 Pastore CA, Pinho C, Germiniani H, Samesima N, Mano R, Grupi CJ, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre análise e emissão de laudos eletrocardiográficos (2009). Arq Bras Cardiol. 2009;93(3 supl. 2):1-19.

Ecocardiograma transtorácico

Os exames foram realizados em aparelho ATL® 1500, USA, com transdutores de 2,0 e 3,5 MHz. Todas as medições foram obtidas pelo mesmo observador, que desconhecia as características clínicas dos participantes, e de acordo com as recomendações da Associação Européia de Ecocardiografia.1717 Lang RM, Bierig M, Devereux RB, Feachskampt FA, Foster E, Pellika PA, et al; Chamber Quantification Writing Group; American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee; European Association of Echocardiography. Recommendations for chamber quantifications. A report from the American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee and the chamber quantifications writing group, developed in conjunction with the European Association of Echocardiography, a branch of the European Society of Cardiology. J Am Soc Echocardiogr. 2005;18(12):1440-63. As imagens foram obtidas com o participante em decúbito lateral esquerdo a partir da região paraesternal esquerda entre o quarto ou quinto espaço intercostal, procedendo-se aos cortes habituais para completo estudo aos modos M e bidimensional, simultaneamente ao registro do ECG. De acordo com as recomendações da Convenção de Penn, as seguintes medidas foram efetuadas: tamanho do ventrículo esquerdo (VE) em sístole e diástole; espessura do septo interventricular em diástole (SIVD) e da parede posterior do VE no final da diástole (PPVED); diâmetro diastólico final do VE (DDVE); volumes diastólico e sistólico finais e percentual de encurtamento diastólico e fração de ejeção pelo método do cubo. A massa do VE foi calculada pela fórmula: massa do VE = 0,8 X {1,04 [(SIVD + DDVE + PPVED)3 - (DDVE)3]} + 0,6 g.1717 Lang RM, Bierig M, Devereux RB, Feachskampt FA, Foster E, Pellika PA, et al; Chamber Quantification Writing Group; American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee; European Association of Echocardiography. Recommendations for chamber quantifications. A report from the American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee and the chamber quantifications writing group, developed in conjunction with the European Association of Echocardiography, a branch of the European Society of Cardiology. J Am Soc Echocardiogr. 2005;18(12):1440-63. A massa do VE foi indexada para a superfície corpórea para ajuste das diferenças do tamanho do coração às variações do tamanho do paciente. A superfície corpórea foi calculada pela fórmula: SC = (P - 60) X 0,01 + H, em que SC é a superfície corpórea em m2, P é o peso, em Kg e H é a altura em metros.1818 Mattar JA. A simple calculation to estimate body surface área in adults and its correlation with Du Bois formula. Crit Care Med. 1989;17(8):846-7. Foi considerado aumento da massa do VE quando o índice de massa era ≥96 g/m2 para mulheres e ≥ 116 g/m2 para homens.

Análise estatística

Variáveis contínuas foram expressas em média e desvio-padrão. Variáveis categóricas foram expressas em percentagem. Utilizou-se o coeficiente de correlação linear de Pearson para determinar a associação entre o IMVE e os diversos critérios eletrocardiográficos. Para a análise do desempenho dos critérios eletrocardiográficos de HVE foram utilizados os valores obtidos para sensibilidade e especificidade com os respectivos intervalos de confiança de 95%. Na avaliação das diferenças estatísticas entre os critérios eletrocardiográficos para HVE nos pacientes com e sem BCRE empregou-se o teste de McNemar pareado. O estudo da reprodutibilidade dos traçados do ECG foi realizado por três observadores que interpretaram 100 traçados retirados aleatoriamente da amostra. Com esse objetivo foram analisadas a amplitude das ondas R e S e duração do complexo QRS e utilizou-se do teste de Kappa.1919 Cohen J. A coefficient of agreement for nominal scales. Educational Psychological Measurement. 1960;20(1):37-67. Para a verificação de significância estatística, em todas as comparações, foram considerados intervalos de confiança de 95% e p < 0,05. Todas as análises foram executadas em programa SPSS (versão 17.0, SPSS Inc., Chicago, IL EUA).

Resultados

Dos 2.240 participantes estudados, 684 eram do gênero masculino (30,5%) e 1.556 do feminino (69,5%), com idade média de 11,3 ± 58,7 anos. Desse total, 2.054 (91,7%) constituíam o grupo dos pacientes sem BCRE e 186 (8,3%) formavam o grupo de pacientes com BCRE. No grupo de pacientes sem BCRE, 46,8% tinham HVE, ao passo que no grupo com BCRE, 67,7% dos pacientes tinham HVE, conforme descrito na Tabela 1. Nessa casuística tivemos 11,8% (22/186) dos pacientes com BCRE com bloqueio divisional anterior esquerdo.

Tabela 1
Características da amostra de acordo com presença ou ausência de BCRE

De acordo com a correlação de Pearson, houve, em ambos os grupos, associação significante entre o IMVE e as variáveis eletrocardiográficas para a maioria dos critérios de HVE (Tabela 2). Todavia, as correlações entre os diversos critérios e o IMVE evidenciaram correlação moderada ou fraca, sugerindo que esses critérios têm baixa capacidade para explicar a presença da HVE, independentemente da presença do BCRE no traçado eletrocardiográfico. Não foram executadas as correlações entre o IMVE com o aumento do átrio esquerdo e o padrão "strain" por serem essas variáveis qualitativas.

Tabela 2
Correlação de Pearson entre o IMVE e os critérios eletrocardiográficos analisados

Em relação à especificidade dos critérios eletrocardiográficos para a HVE, os pacientes com BCRE apresentaram alterações significantes com diminuições expressivas de valores. Os critérios de Sokolow-Lyon voltagem (≥3,0 mV e ≥3,5 mV), a amplitude da onda R em aVL e o aumento do átrio esquerdo foram os que tiveram as menores reduções de especificidades. De forma interessante, isso ocorreu com inexpressiva alteração da sensibilidade (Tabelas 3 e 4). Nos critérios em que ocorreram aumentos substanciais dos índices de sensibilidade, como o de Cornell voltagem e Cornell voltagem produto, isso foi concomitante com a expressiva perda de especificidade, o que inviabiliza a aplicação desses critérios no cenário de ECG com presença de BRE.

Tabela 3
Sensibilidade das variáveis eletrocardiográficas para HVE em pacientes com e sem BCRE
Tabela 4
Especificidade das variáveis eletrocardiográficas para HVE em pacientes com e sem BCRE

Quanto ao estudo de reprodutibilidade, o nível de concordância entre os três observadores variou de 0,82 a 0,98, números considerados excelentes. A primeira cifra corresponde à duração do complexo QRS e a última à amplitude das ondas R e S respectivamente.

Discussão

A presença de HVE é preditora consistente de alto risco cardiovascular, independentemente de outras comorbidades. Tanto em estudos clínicos quanto em epidemiológicos há clara relação entre HVE e eventos cardiovasculares adversos. Daí a importância de sua detecção precoce e, se possível, por meio de métodos diagnósticos de baixo custo e amplo acesso. O ECG, inquestionavelmente, é um dos métodos mais utilizados na detecção da HVE, seja pelo baixo custo operacional ou por sua disponibilidade. O ECG, frequentemente, constitui em instrumento inicial de identificação de várias manifestações cardiológicas. No cenário da HVE secundária à HAS é, indiscutivelmente, o exame mais custo-efetivo. Sabe-se, todavia, que diversos fatores interferem na precisão diagnóstica da HVE, especificamente a presença de distúrbios de condução, principalmente a do tipo BCRE que é um dos mais conhecidos a criar limitações para o diagnóstico da HVE.2020 Bacharova L, Schoken D, Estes EH, Strauss D. The role of ECG in the diagnosis of left ventricular hypertrophy. Curr Cardiol Rev. 2014;10(3):257-61.

21 Petersen GV, Tikoff G. Left bundle branck block and left ventricular hypertrophy: electrocardiographic-pathologic correlations. Chest. 1971;59(2):174-7.
-2222 Baranowski R, Malek L, Prokopowicz D, Spiewack M, Misko J. Electrocardiographic diagnosis of the left ventricular hypertrophy in patients with left bundle branch block: is it necessary to verify old criteria? Cardiol J. 2012;19(6):591-6.

Nas últimas décadas, o ECO tornou-se exame de referência na avaliação da função e da massa do VE. Nesse sentido, é utilizado não apenas para a confirmação da presença de HVE, mas também de outras manifestações patológicas. Em contraposição ao ECG, o ECO constatou a limitação na identificação da HVE e propiciou o diagnóstico mais precoce e a abordagem mais agressiva das doenças associadas, como a HAS. Todavia, o ECG, não obstante sua relativa baixa sensibilidade, ainda é o exame mais usado para detecção da HVE em pacientes com hipertensão arterial. Isso se deve tanto à facilidade de realização como também à excelente reprodutividade inter e intraobservador. De forma distinta, o ECO, além de ser técnica de maior custo operacional, é extremamente dependente não só da qualidade do aparelho, como também do observador que interpreta as imagens.

Como o BCRE interfere em vários parâmetros eletrocardiográficos empregados no diagnóstico da HVE, avaliamos, neste estudo, os principais critérios utilizados pelo ECG nessa situação.2323 Rautaharju PM, Manolio TA, Siscovick D, Zhou SH, Gardin JM, Kronmal R, et al. Utility of new electrocardiographic models for left ventricular mass in older adults. The cardiovascular Health Study Collaborative Research Group. Hypertension. 1996;28(1):8-15. Considerando que o cálculo de massa do VE pressupõe coração com forma normal, elipsóide, os pacientes com órgãos dilatados foram excluídos. Para aumentar a homogeneidade na análise dos membros da amostra, utilizamos a IMVE para comparar indivíduos com diferentes composições corpóreas e, dessa maneira, obter valores que identificassem mais fidedignamente os grupos de alto risco para eventos cardiovasculares.2424 Warner RA, Ariel Y, Gasperina MD, Okin PM. Improved electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy. J Electrocardiol 2002;35(5):111-5.

25 Missouris CG, Forbat SM, Singer DR, Markandu ND, Underwood R, MacGregor GA. Echocardiography overestimates left ventricular mass: a comparative study with magnetic resonance imaging in patients with hypertension. J Hypertens. 1996;14(8):1005-10.
-2626 Reichek N, Helak J, Plappert T, Sutton MS, Weber KT. Anatomic validation of left ventricular mass estimates from clinical two-dimensional echocardiography: initial results. Circulation. 1983;67(2):348-52.

A associação do IMVE com os critérios eletrocardiográficos para HVE mostrou correlação moderada ou fraca tanto nos pacientes com BCRE quanto naqueles sem BCRE. Entretanto, no grupo com BCRE os critérios de Sokolow-Lyon voltagem e RaVL, embora não apresentassem correlação significante estatisticamente com o IMVE, foram aqueles com melhores desempenhos diagnósticos.

Nos pacientes com BCRE a sensibilidade variou de 12,7 a 95,2% e a especificidade de 6,6 a 96,6%. Os critérios eletrocardiográficos que utilizaram predominantemente a voltagem do complexo QRS apresentaram aumento da sensibilidade, mas à custa de grande redução da especificidade. Observou-se que os critérios que tiveram maiores aumentos da sensibilidade como os critérios de Cornell, RaVL duração, RaVL+SV3 tiveram também maiores diminuições estatisticamente significantes da especificidade. Exceções apenas para os critérios de Sokolow-Lyon voltagem e RaVL. Esses últimos tiveram reduções discretas, não significativas, da especificidade.

De forma geral, houve redução da especificidade em maior ou menor intensidade em todos os critérios. Todavia, entre os critérios que demonstraram melhores desempenhos para detectar a HVE na presença do BCRE, destacou-se o critério de Sokolow-Lyon para voltagem ≥3,0mV com sensibilidade de 22,2% (IC 95% 15,8 - 30,8) e especificidade de 88,3% (IC 95% 77,8 - 94,2). Ressalva para o fato de esses valores não terem significância estatística. É conhecido que os dados de sensibilidade e especificidade estão relacionados à prevalência do fenômeno na amostra avaliada. Também é reconhecido que os pacientes hipertensos com BCRE geralmente são mais idosos e com mais tempo de doença. Isso explica por que no presente estudo o grupo de pacientes com BCRE apresentou prevalência de 67,7%. Já o grupo sem BCRE teve uma prevalência mais baixa (46,8%).

As razões para os diferentes desempenhos dos diversos critérios eletrocardiográficos não estão claras. Porém, se relacionam à especificidade dos parâmetros que compõem cada critério, aliados às limitações de um método, essencialmente decorrente da atividade elétrica do músculo cardíaco e, dedutivamente, correlacionado à alteração anatômica tridimensional. Por conseguinte, além das limitações específicas de cada critério em particular, há ainda características individuais da amostra estudada.

Conclusão

O BCRE modifica a sensibilidade e especificidade do ECG em detectar a HVE. Todavia, o melhor desempenho diagnóstico do ECG na presença de BCRE ocorreu com os critérios de Sokolow-Lyon voltagem e RaVL. Os demais critérios eletrocardiográficos apresentaram perdas expressivas da especificidade, tornando-os menos recomendáveis na presença desse distúrbio de condução. Por tratar-se de estudo realizado em população de hipertensos relativamente jovens e em acompanhamento ambulatorial, é necessário cuidado na extrapolação desses resultados para grupos de pacientes mais idosos e com doenças hipertensivas mais avançadas.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo foi parcialmente financiado pela Capes.
  • Vinculação acadêmica
    Este artigo é parte de tese de Doutorado de Paula Freitas Martins Burgos pela Universidade Federal de São Paulo.

References

  • 1
    Levy D, Labib SB, Anderson KM, Christiansen JC, Kannel WB, Castelli WP. Determinants of sensitivity and specificity of electrocardiographic criteria for left ventricular hypertrophy. Framingham Heart Study. Circulation. 1990;81(3):815-20.
  • 2
    Prineas RJ, Rautaharju PM, Grandits G, Crow R; MRFIT Research Group. Independent risk for cardiovascular disease predicted by modified continuous score electrocardiographic criteria for 6-year incidence and regression of left ventricular hypertrophy among clinically disease free men: 16-year follow-up for the multiple risk factor intervention trial. J Electrocardiol. 2001;34(2):91-101.
  • 3
    Petersen GV, Tikoff G. Left bundle branch block and left ventricular hypertrophy: electrocardiographic-pathologic correlations. Chest. 1971;59(2):174-7.
  • 4
    Casale PN, Devereux RB, Alonso DR, Campo E, Kligfield P. Improved sex-specific criteria of left ventricular hypertrophy for clinical and computer interpretation of electrocadiograms: validation with autopsy findings. Circulation. 1987;75(3):565-72.
  • 5
    Okin PM, Roman MJ, Devereux RB, Kligfield P. Electrocardiographic identification of increased left ventricular mass by simple voltage-duration products. J Am Coll Cardiol. 1995;25(2):417-23.
  • 6
    Sokolow M, Lyon T. The ventricular complex in left ventricular hypertrophy as obtained by unipolar precordial and limb leads. Am Heart J. 1949;37(2):161-86.
  • 7
    Molloy T, Okin P, Devereux R, Kligfield P. Electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy by the simple QRS voltage-duration product. J Am Coll Cardiol. 1992;20(5):1180-6.
  • 8
    Gubner R, Ungerleider HE. Electrocardiographic criteria of left ventricular hypertrophy: factors determining the evolution of the electrocardiographic patterns in hypertrophy and bundle branch block. Arch Intern Med. 1943;72(2):196-209.
  • 9
    Surawicz/Knilans. Chou's electrocardiography in clinical practice: adult & pediatric. 5th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2001.
  • 10
    Casale PN, Devereux RB, Kligfield P, Eisenberg RR, Miller DH, Chaudhary BS, Phillips MC. Electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy: development and prospective validation of improved criteria. J Am Coll Cardiol. 1985;6(3):572-80.
  • 11
    Koito H, Spodick DH. Accuracy of the RV6: RV5 voltage ratio for increased left ventricular mass. Am J Cardiol. 1988;62(13):985-7.
  • 12
    Mazzaro CL, Costa Fde A, Bombig MT, Luna Filho B, Paola AA, Carvalho AC, et al. Ventricular mass and electrocardiographic criteria of hypertrophy: evaluation of new score. Arq Bras Cardiol. 2008;90(4):227-31.
  • 13
    Levy D, Salomon M, D'Agostino RB, Belanger AJ, Kannel WB. Prognostic implications of baseline electrocardiographic features and their serial changes in subjects with left ventricular hypertrophy. Circulation. 1994;90(4):1786-93.
  • 14
    Miller DH, Eisenberg RR, Kligfield PD, Devereux RB, Casale PN, Phillips MC. Electrocardiographic recognition of left atrial enlargement. J Electrocardiol. 1983;16(1):15-22.
  • 15
    Schouten EG, Dekker JM, Meppelink P, Kok FJ, Vandenbroucke JP, Pool J. QT interval prolongation predicts cardiovascular mortality in an apparently healthy population. Circulation. 1991;84(4):1516-23.
  • 16
    Pastore CA, Pinho C, Germiniani H, Samesima N, Mano R, Grupi CJ, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre análise e emissão de laudos eletrocardiográficos (2009). Arq Bras Cardiol. 2009;93(3 supl. 2):1-19.
  • 17
    Lang RM, Bierig M, Devereux RB, Feachskampt FA, Foster E, Pellika PA, et al; Chamber Quantification Writing Group; American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee; European Association of Echocardiography. Recommendations for chamber quantifications. A report from the American Society of Echocardiography's Guidelines and Standards Committee and the chamber quantifications writing group, developed in conjunction with the European Association of Echocardiography, a branch of the European Society of Cardiology. J Am Soc Echocardiogr. 2005;18(12):1440-63.
  • 18
    Mattar JA. A simple calculation to estimate body surface área in adults and its correlation with Du Bois formula. Crit Care Med. 1989;17(8):846-7.
  • 19
    Cohen J. A coefficient of agreement for nominal scales. Educational Psychological Measurement. 1960;20(1):37-67.
  • 20
    Bacharova L, Schoken D, Estes EH, Strauss D. The role of ECG in the diagnosis of left ventricular hypertrophy. Curr Cardiol Rev. 2014;10(3):257-61.
  • 21
    Petersen GV, Tikoff G. Left bundle branck block and left ventricular hypertrophy: electrocardiographic-pathologic correlations. Chest. 1971;59(2):174-7.
  • 22
    Baranowski R, Malek L, Prokopowicz D, Spiewack M, Misko J. Electrocardiographic diagnosis of the left ventricular hypertrophy in patients with left bundle branch block: is it necessary to verify old criteria? Cardiol J. 2012;19(6):591-6.
  • 23
    Rautaharju PM, Manolio TA, Siscovick D, Zhou SH, Gardin JM, Kronmal R, et al. Utility of new electrocardiographic models for left ventricular mass in older adults. The cardiovascular Health Study Collaborative Research Group. Hypertension. 1996;28(1):8-15.
  • 24
    Warner RA, Ariel Y, Gasperina MD, Okin PM. Improved electrocardiographic detection of left ventricular hypertrophy. J Electrocardiol 2002;35(5):111-5.
  • 25
    Missouris CG, Forbat SM, Singer DR, Markandu ND, Underwood R, MacGregor GA. Echocardiography overestimates left ventricular mass: a comparative study with magnetic resonance imaging in patients with hypertension. J Hypertens. 1996;14(8):1005-10.
  • 26
    Reichek N, Helak J, Plappert T, Sutton MS, Weber KT. Anatomic validation of left ventricular mass estimates from clinical two-dimensional echocardiography: initial results. Circulation. 1983;67(2):348-52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2016
  • Data do Fascículo
    Jan 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2016
  • Revisado
    24 Ago 2016
  • Aceito
    13 Set 2016
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br