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A Falta de Aplicações Clínicas Seria a Causa para Baixo Interesse em uma Classificação de Disfunção Endotelial

Palavras-chave
Endotélio / disfunção; Classificação; Doenças Cardiovasculares; Prevenção; Fatores de Risco

Com base no pressuposto de que um sistema de classificação é um assunto bastante crítico e que pode melhorar significativamente a predição das respostas individuais a um tratamento e a doenças relacionadas, nós propusemos há 16 anos uma classificação para a disfunção endotelial incluindo aspectos etiológicos, funcionais e evolutivos (Figura 1).11 Evora PR. An open discussion about endothelial dysfunction: is it timely to propose a classification? Int J Cardiol. 2000;73(3):289-292.

Figura 1
Proposta de classificação de disfunção endotelial. Modificada a partir de Evora et al.11 Evora PR. An open discussion about endothelial dysfunction: is it timely to propose a classification? Int J Cardiol. 2000;73(3):289-292.

Desde a nossa primeira publicação, nós escrevemos que uma proposta para uma classificação de disfunção endotelial poderia merecer crítica porque poderia ainda ser vista como inadequada e pretensiosa. A primeira dúvida é de natureza filosófica, pois os conceitos atuais sobre função e disfunção endotelial poderão eventualmente mudar dinamicamente ao longo do tempo. A classificação poderia também ser interpretada como um reducionismo prematuro, soando como uma proposta do tipo "fim de questão". A falta de aplicações clínicas poderia ser a causa para baixo interesse em uma classificação de disfunção endotelial. Este editorial visa explorar as diferenças entre os três eixos da classificação e as implicações práticas e clínicas de cada categoria proposta. Aspectos relevantes para a etiologia das disfunções, além de direções de tratamento, são também considerados.

A disfunção da célula endotelial precede a disfunção celular orgânica na maioria das doenças cardiovasculares e caracteriza a disfunção endotelial primária (caracterização etiológica).22 Taddei S, Virdis A, Mattei P, Arzilli F, Salvetti A. Endothelium-dependent forearm vasodilation is reduced in normotensive subjects with familial history of hypertension. J Cardiovasc Pharmacol. 1992;20 Suppl 12:S193-5. A disfunção endotelial pode ser primária (ou herdada geneticamente). Isso implica em uma necessidade de desenvolvimento de métodos diagnósticos aplicados à detecção precoce e prevenção primária da disfunção endotelial como uma medida útil para interromper o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. O tratamento, nestes casos, visa a prevenção de fatores de risco cardiovasculares através de modificações no estilo de vida, tais como controle de dieta e peso, exercício físico e cessação do tabagismo.33 Park KH, Park WJ. Endothelial dysfunction: clinical implications in cardiovascular disease and therapeutic approaches. J Korean Med Sci. 2015;30(9):1213-1225. A partir deste ponto de vista, a disfunção endotelial deve ser considerada um problema de saúde pública. Uma disfunção endotelial secundária (ou fenotípica) pode ocorrer quando as células endoteliais perdem a capacidade de produzir óxido nítrico (NO) e aumentam a expressão de fatores vasoconstritores, proinflamatórios e protrombóticos, configurando um cenário pró-aterosclerótico. Tais alterações fenotípicas contribuem para a formação, progressão e ruptura de lesões ateroscleróticas e são comumente encontradas na hipertensão, doença arterial coronariana e diabetes.44 Wang M, Monticone RE, Lakatta EG. Arterial aging: a journey into subclinical arterial disease. Curr Opin Nephrol Hypertens. 2010;19(2):201-7. Neste tipo de disfunção endotelial, o tratamento farmacológico mostra resultados consistentes em termos de restabelecimento da função endotelial. Por exemplo, medicamentos anti-hipertensivos para controle da pressão arterial, tratamento com estatinas para redução dos níveis de LDL-colesterol e antidiabéticos orais para redução dos níveis de glicemia.55 Matsuzawa Y, Lerman A. Endothelial dysfunction and coronary artery disease: assessment, prognosis, and treatment. Coron Artery Dis. 2014;25(8):713-24.

Estudos na década de 90 estabeleceram definitivamente o papel do endotélio em todas as doenças cardiovasculares. Tais doenças estão associadas à disfunção endotelial devido a um prejuízo na liberação de fatores relaxantes derivados do endotélio e, consequentemente, risco de espasmo e trombose (doença coronariana obstrutiva aterosclerótica ou não aterosclerótica, hipertensão, diabetes, dislipidemia, aterosclerose, fenômeno de Raynaud e insuficiência cardíaca, entre outros).66 De Meyer GR, Herman AG. Vascular endothelial dysfunction. Prog Cardiovasc Dis. 1997;39(4):325-42.,77 Drexler H. Endothelial dysfunction: clinical implications. Prog Cardiovasc Dis. 1997;39(4):287-324. Intervenções terapêuticas têm sido desenvolvidas para este tipo de disfunção endotelial (vasotônica), que é caracterizada por comprometimento funcional, com o objetivo de melhorar a função do endotélio e evitar sua disfunção em indivíduos assintomáticos e em pacientes com doença arterial coronariana. Betabloqueadores, estatinas, antagonistas dos receptores da angiotensina, inibidores da enzima conversora de angiotensina, antioxidantes e sensibilizadores da insulina mostram benefícios nestes casos. Outras substâncias, como a L-arginina, a tetrahidrobiopterina e o ácido fólico também estão sendo investigados devido às suas contribuições para a melhoria da função endotelial.88 Tousoulis D, Simopoulou C, Papageorgiou N, Oikonomou E, Hatzis G, Siasos G, et al. Endothelial dysfunction in conduit arteries and in microcirculation. Novel therapeutic approaches. Pharmacol Ther. 2014;144(3):253-267.

9 Briasoulis A, Tousoulis D, Androulakis ES, Papageorgiou N, Latsios G, Stefanadis C. Endothelial dysfunction and atherosclerosis: focus on novel therapeutic approaches. Recent Pat Cardiovasc Drug Discov. 2012;7(1):21-32.
-1010 Garcia MM, Varela CG, Silva PF, Lima PR, Góes PM, Rodrigues MG, et al. Endothelial effect of statin therapy at a high dose versus low dose associated with ezetimibe. Arq Bras Cardiol. 2016;106(4):279-88.

A classificação da disfunção endotelial vasoplégica inclui as situações características de vasoplegias graves, muitas das quais são resistentes à ação de aminas vasoconstritoras. Este tipo de disfunção é caracterizado por uma produção excessiva de substâncias vasorrelaxantes produzidas pelo endotélio, especialmente o NO, e incluem, por exemplo, vasoplegias durante e após circulação extracorpórea, sepse e reações anafiláticas e anafilactoides.1111 Evora PR, Ribeiro PJ, de Andrade JC. Methylene blue administration in SIRS after cardiac operations. Ann Thorac Surg. 1997;63(4):1212-3. A síndrome vasoplégica tem uma gênese multifatorial e, no caso de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, ocorre principalmente devido à exposição corporal a materiais não fisiológicos e ao uso de heparina/protamina,1212 Viaro F, Dalio MB, Evora PR. Catastrophic cardiovascular adverse reactions to protamine are nitric oxide/cyclic guanosine monophosphate dependent and endothelium mediated: should methylene blue be the treatment of choice? Chest. 2002;122(3):1061-6. desencadeando uma síndrome de resposta inflamatória. Durante este processo, há ativação do complemento, liberação de citocinas, ativação de leucócitos e expressão de moléculas de adesão, bem como produção de radicais livres de oxigênio, metabólitos do ácido araquidônico, fator de ativação plaquetária e endotelina. As consequências da síndrome da resposta inflamatória podem levar à disfunção de múltiplos órgãos e sistemas, como a que ocorre no choque séptico. A diminuição da resistência vascular sistêmica observada nas síndromes vasoplégicas está associada com excesso de produção de NO e pode ser revertida por inibidores da NO sintase (NOS) e azul de metileno.1313 Evora PR, Alves Junior L, Ferreira CA, Menardi AC, Bassetto S, Rodrigues AJ, et al. Twenty years of vasoplegic syndrome treatment in heart surgery. Methylene blue revised. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2015;30(1):84-92.

O termo "disfunção endotelial vasoplégica" foi criado como parte da classificação proposta e merece alguns comentários. Ao pesquisar o banco de dados MEDLINE usando palavras entre aspas, encontramos: "endothelium dysfunction" (disfunção endotelial; 37.640 artigos), "endothelial dysfunction" (disfunção endotelial; 69.115 artigos), "vasoplegic endothelial dysfunction" (disfunção endotelial vasoplégica; 12 artigos), "vasoplegia" (206 artigos) e "vasoplegic syndrome" (síndrome vasoplégica; 243 artigos). Partindo do princípio de que a liberação excessiva de NO é, de fato, uma disfunção endotelial, esta terminologia seria unificada para a pesquisa de choque distributivo (sepse, anafilaxia), reações anafilactoides e vasoplegias relacionadas à circulação extracorpórea. Desta forma, este problema exige uma atenção especial por parte da comunidade científica, pelo menos em termos de unificar a terminologia.11 Evora PR. An open discussion about endothelial dysfunction: is it timely to propose a classification? Int J Cardiol. 2000;73(3):289-292.

A disfunção endotelial pode ser reversível ou parcialmente reversível em tais casos, de acordo com o prognóstico ou classificação evolutiva. A disfunção endotelial deve ser considerada em mulheres hipertensas na pós-menopausa que apresentam anormalidades da função vascular dependente do endotélio. No entanto, uma melhoria significativa da função endotelial pode ser alcançada após 6 meses de terapia anti-hipertensiva. Estas alterações podem identificar pacientes com um prognóstico mais favorável.1414 Modena MG, Bonetti L, Coppi F, Bursi F, Rossi R. Prognostic role of reversible endothelial dysfunction in hypertensive postmenopausal women. J Am Coll Cardiol. 2002;40(3):505-10. A disfunção do endotélio vascular coronariano ou periférico é um preditor independente de eventos cardiovasculares e fornece uma valiosa informação prognóstica. Em tais casos, a modificação dos fatores de risco e o tratamento medicamentoso (estatinas e inibidores da enzima conversora da angiotensina) podem melhorar a função endotelial e o prognóstico.1515 Bonetti PO, Lerman LO, Lerman A. Endothelial dysfunction: a marker of atherosclerotic risk. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2003;23(2):168-75. A maioria dos fatores de risco relacionados à aterosclerose e à morbidade e mortalidade cardiovascular tem sido descrita como tendo associação com o endotélio.1414 Modena MG, Bonetti L, Coppi F, Bursi F, Rossi R. Prognostic role of reversible endothelial dysfunction in hypertensive postmenopausal women. J Am Coll Cardiol. 2002;40(3):505-10. Esses fatores de risco incluem hiperlipidemia, hipertensão, diabetes e tabagismo, que podem ser revertidos pelo tratamento farmacológico ou não farmacológico. Em outras palavras, é possível melhorar a disfunção endotelial com tratamento médico e exercício, mesmo sem revertê-la totalmente.1616 Mota MM, Silva TL, Fontes MT, Barreto AS, Araújo JE, Oliveira AC, et al. Resistance exercise restores endothelial function and reduces blood pressure in type 1 diabetic rats.Arq Bras Cardiol. 2014;103(1):25-32.,1717 Menti E, Zaffari D, Galarraga T, Lessa JR, Pontin B, Pellanda LC, et al. Early markers of atherosclerotic disease in individuals with excess weight and dyslipidemia. Arq Bras Cardiol. 2016;106(6):457-63

A disfunção endotelial irreversível ocorre geralmente durante a progressão das doenças cardiovasculares e sepse.

Nós temos utilizado a classificação proposta desde 2000,11 Evora PR. An open discussion about endothelial dysfunction: is it timely to propose a classification? Int J Cardiol. 2000;73(3):289-292. como um modelo didático, enfatizando cuidadosamente eventuais vieses relativos à sua interpretação. No entanto, a utilidade atual de uma classificação de disfunção endotelial permanece ainda "uma discussão em aberto". Medidas semiquantitativas da disfunção endotelial podem, potencialmente, alterar a avaliação das categorias propostas. Nós esperávamos que o sistema de classificação fosse utilizado para melhorar e diagnosticar pacientes de maneira uniforme, além de fornecer um caminho para estudos colaborativos sobre a disfunção endotelial em centros acadêmicos. Porém, como já mencionamos, a falta de aplicações clínicas poderia ser a causa para o baixo interesse em uma classificação de disfunção endotelial. Talvez o desenvolvimento de biomarcadores possa reforçar o raciocínio clínico sobre as doenças cardiovasculares do ponto de vista da disfunção endotelial.1717 Menti E, Zaffari D, Galarraga T, Lessa JR, Pontin B, Pellanda LC, et al. Early markers of atherosclerotic disease in individuals with excess weight and dyslipidemia. Arq Bras Cardiol. 2016;106(6):457-63

18 França CN, Izar MC, Amaral JB, Tegani DM, Fonseca FA. Microparticles as potential biomarkers of cardiovascular disease. Arq Bras Cardiol. 2015;104(2):169-74.
-1919 Cerda A, Fajardo CM, Basso RG, Hirata MH, Hirata RD. Role of microRNAs 221/222 on statin induced nitric oxide release in human endothelial cells. Arq Bras Cardiol. 2015;104(3):195-201.

  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2017
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