Acessibilidade / Reportar erro

Padrão Lipídico Discordante e Placa Aterosclerótica Carotídea. Importância do Colesterol Remanescente

Resumo

Fundamento:

Indivíduos com níveis de não HDL-C excedendo em 30 mg/dl aqueles de LDL-C (discordância lipídica) ou com altos níveis de colesterol remanescente poderiam ter maior risco cardiovascular residual.

Objetivos:

  1. determinar a prevalência de discordância lipídica em uma população de prevenção primária e analisar as variáveis clínicas com ela associadas;

  2. investigar a associação de discordância lipídica e colesterol remanescente calculado com a presença de placa carotídea.

Métodos:

Pacientes de prevenção primária sem diabetes ou sem terapia hipolipemiante foram incluídos. Independentemente do nível de LDL-C, definiu-se “discordância lipídica” como um valor de não HDL-C excedendo em 30 mg/dl aquele de LDL-C. Calculou-se o colesterol remanescente como colesterol total menos HDL-C menos LDL-C na presença de triglicerídeos < 4,0 mmol/l. Usou-se ultrassom para avaliar a presença de placa carotídea. Modelos de regressão logística múltipla foram construídos.

Resultados:

Este estudo incluiu 772 pacientes (idade média, 52 ± 11 anos; 66% mulheres). A prevalência de discordância lipídica foi de 34%. Sexo masculino e índice de massa corporal mostraram associação independente com padrão lipídico discordante. A prevalência de placa carotídea foi maior em indivíduos com discordância lipídica (40,2% vs. 29,2; p = 0,002). A análise multivariada mostrou associação do padrão lipídico discordante com maior probabilidade de placa carotídea (OR: 1,58; IC95%: 1,08-2,34; p = 0,02). Da mesma forma, identificou-se uma significativa associação entre colesterol remanescente calculado e placa carotídea.

Conclusão:

Discordância lipídica e presença de nível mais alto de colesterol remanescente calculado acham-se associados com aterosclerose subclínica. Nossos achados podem ser usados para aprimorar a avaliação de risco cardiovascular residual.

Introdução

Elevações nas lipoproteínas ricas em triglicerídeos estão associadas com risco aumentado de eventos cardiovasculares ateroscleróticos mesmo em pacientes com bom controle dos níveis do colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-C) obtido por uso de estatinas.11 Le NA, Walter MF. The role of hypertriglyceridemia in atherosclerosis. Curr Atheroscler Rep. 2007;9(2):110-5.,22 Chapman MJ, Ginsberg HN, Amarenco P, Andreotti F, Borén J, Catapano AL, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Triglyceride-rich lipoproteins and high-density lipoprotein cholesterol in patients at high risk of cardiovascular disease: evidence and guidance for management. Eur Heart J. 2011;32(11):1345-61.

Embora o LDL-C tenha sido tipicamente o alvo da terapia, várias diretrizes reconhecem o não HDL-C como uma meta terapêutica secundária.33 Brunzell JD, Davidson M, Furberg CD, Goldberg RB, Howard BV, Stein JH, et al; American Diabetes Association; American College of Cardiology Foundation. Lipoprotein management in patients with cardiometabolic risk: consensus statement from the American Diabetes Association and the American College of Cardiology Foundation. Diabetes Care. 2008;31(4):811-22.

4 Catapano AL, Graham I, De Backer G, Wiklund O, Chapman MJ, Drexel H, et al; Authors/Task Force Members; Additional Contributor. 2016 ESC/EAS Guidelines for the Management of Dyslipidaemias. Eur Heart J. 2016;37(39):2999-3058.

5 Expert Dyslipidemia Panel of the International Atherosclerosis Society Panel members. An International Atherosclerosis Society Position Paper: global recommendations for the management of dyslipidemia - Full report. J Clin Lipidol. 2014;8(1):29-60.
-66 Rabar S, Harker M, O'Flynn N, Wierzbicki AS, Wierzbicki A, Ahmad R, et al; Guideline Development Group. Lipid modification and cardiovascular risk assessment for the primary and secondary prevention of cardiovascular disease: summary of updated NICE guidance. BMJ. 2014;349:g4356. Em recente recomendação publicada, a National Lipid Association (NLA) dos Estados Unidos reconhece tanto o não HDL-C quanto o LDL-C como metas terapêuticas primárias.77 Jacobson TA, Ito MK, Maki KC, Orringer CE, Bays HE, Jones PH, et al. National Lipid Association recommendations for patient-centered management of dyslipidemia: part 1-executive summary. J Clin Lipidol. 2014;8(5):473-88. Nesse cenário, as metas para não HDL-C foram 30 mg/dl mais altas do que as recomendadas para LDL-C.

O não HDL-C é constituído pelo colesterol transportado por todas as partículas potencialmente aterogênicas, que incluem LDL-C, lipoproteínas de densidade intermediária, lipoproteínas de densidade muito baixa, lipoproteínas remanescentes e lipoproteína(a). Além disso, várias meta-análises mostraram que o não HDL-C se correlacionou melhor com risco cardiovascular do que o LDL-C, tanto em condições basais quanto durante tratamento.88 Robinson JG, Wang S, Smith BJ, Jacobson TA. Meta-analysis of the relationship between non-high-density lipoprotein cholesterol reduction and coronary heart disease risk. J Am Coll Cardiol. 2009;53(4):316-22.,99 Boekholdt SM, Arsenault BJ, Mora S, Pedersen TR, LaRosa JC, Nestel PJ, et al. Association of LDL cholesterol, non-HDL cholesterol, and apolipoprotein B levels with risk of cardiovascular events among patients treated with statins: a meta-analysis. JAMA 2012;307(12)1302-9.

Da mesma maneira, a “dislipidemia aterogênica” está associada com maior risco cardiovascular. Seus principais achados consistem em hipertrigliceridemia, baixos níveis de HDL-C, alterações qualitativas nas partículas de LDL, acúmulo de lipoproteínas remanescentes e hiperlipidemia pós-prandial.1010 Alibasic E, Ramic E, Bajraktarevic A, Ljuca F, Batic-Mujanovic O, Zildzic M. Atherogenic dyslipidemia and residual vascular risk in practice of family doctor. Med Arch. 2015;69(5):339-41. O colesterol remanescente é aquele contido nas lipoproteínas remanescentes ricas em triglicerídeos, que, no jejum correspondem às lipoproteínas de densidade muito baixa e às lipoproteínas de densidade intermediária, e, no estado de não jejum, correspondem àquelas duas lipoproteínas somadas aos quilomícrons remanescentes. Da mesma maneira, as lipoproteínas remanescentes transportam grandes quantidades de colesterol e compartilham com o LDL o potencial de entrar na íntima da parede arterial e de ficar aí alojadas.1111 Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, West AS, Grande P, Nordestgaard BG, Tybjærg-Hansen A. Genetically elevated non-fasting triglycerides and calculated remnant cholesterol as causal risk factors for myocardial infarction. Eur Heart J. 2013;34(24):1826-33.

Por outro lado, o diagnóstico de placa aterosclerótica carotídea é um objetivo substituto, sendo um preditor independente de eventos coronarianos.1212 Nambi V, Chambless L, Folsom AR, He M, Hu Y, Mosley T, et al. Carotid intima-media thickness and presence or absence of plaque improves prediction of coronary heart disease risk: The ARIC (Atherosclerosis Risk In Communities) Study. J Am Coll Cardiol. 2010;55(15):1600-7. Nosso grupo de trabalho já relatou a considerável prevalência de placa carotídea em pacientes em prevenção primária.1313 Masson W, Lobo M, Huerín M, Molinero G, Manente D, Pángaro M, et al. Use of different scores for cardiovascular risk stratification in primary prevention and their implications in statin indication. Rev Argent Cardiol. 2014;82(6):473-5.,1414 Masson W, Huerín M, Vitagliano L, Zeballos C, Lobo M, Rostan M, et al. Estimation of cardiovascular risk and detection of subclinical carotid atheromatosis in middle-aged postmenopausal women. Rev Argent Cardiol. 2013;81(4):322-8.

Assim, levantamos a possibilidade de que indivíduos com níveis de não HDL-C 30 mg/dl acima daqueles de LDL (discordância lipídica) ou com colesterol remanescente calculado mais alto possam apresentar maior prevalência de aterosclerose carotídea.

Os objetivos do nosso estudo foram:

  1. determinar a prevalência de discordância lipídica em uma população de prevenção primária e analisar as variáveis clínicas com ela associadas;

  2. investigar a associação de discordância lipídica e colesterol remanescente calculado com a presença de placa carotídea.

Métodos

Estudo transversal descritivo multicêntrico realizado em amostras consecutivas obtidas em ambulatórios de prevenção cardiovascular de seis centros cardiológicos na cidade de Buenos Aires. Indivíduos em prevenção primária foram incluídos. Os critérios de exclusão foram:

  1. doença cardiovascular prévia;

  2. história de diabetes mellitus; e

  3. terapia hipolipemiante anterior.

Ensaios colorimétrico e turbidimétrico foram usados para medir os níveis plasmáticos fora do jejum de triglicerídeos, HDL-C e colesterol total. A equação de Friedewald foi usada para calcular o LDL-C. O colesterol remanescente foi calculado como colesterol total menos HDL-C menos LDL-C quando os triglicerídeos fossem <4,0 mmol/l.

Independentemente do nível de LDL-C, “discordância lipídica” foi definida como nível de não HDL-C excedendo em 30 mg/dl o de LDL-C.

Registrou-se placa aterosclerótica carotídea na presença de placa aterosclerótica nas artérias carotídeas em ultrassonografia bidimensional não invasiva. Definiu-se a presença de placa como:

  1. espessura anormal da parede (definida como espessura médio-intimal >1,5 mm);

  2. estrutura anormal (protrusão no lúmen, perda de alinhamento com a parede adjacente); e

  3. ecogenicidade anormal da parede.

Os seguintes três escores de risco cardiovascular foram calculados:

  1. escore de Framingham para eventos coronarianos usando o Terceiro Relatório do Painel de Especialistas sobre Detecção, Avaliação e Tratamento de Colesterol Sanguíneo Elevado em Adultos do Programa Nacional de Educação sobre Colesterol (NCEP-ATP III),1515 Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults. Executive Summary of The Third Report of The National Cholesterol Education Program (NCEP) Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (Adult Treatment Panel III). JAMA. 2001;285(19):2486-97. que define risco baixo, moderado e alto como níveis < 10%, entre 10% e 19%, e ≥ 20%, respectivamente;

  2. o novo escore usado pela última diretriz da ACC/AHA de 2013 para manejo de colesterol;1616 Stone NJ, Robinson JG, Lichtenstein AH, Bairey Merz CN, Blum CB, Eckel RH, et al; American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. ACC/AHA guideline on the treatment of blood cholesterol to reduce atherosclerotic cardiovascular risk in adults. A report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol. 2014;63(25 Pt B):2889-934. Erratum in: J Am Coll Cardiol. 2015;66(24):2812. J Am Coll Cardiol. 2014;63(25 Pt B):3024-5.

  3. o SCORE Europeu para eventos fatais, usando o escore específico correspondente aos países de baixo risco.1717 Piepoli MF, Hoes AW, Agewall S, Albus C, Brotons C, Catapano AL, et al. 2016 European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice: The Sixth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice (constituted by representatives of 10 societies and by invited experts): Developed with the special contribution of the European Association for Cardiovascular Prevention & Rehabilitation (EACPR). Eur J Prev Cardiol. 2016;23(11):NP1-NP96. A escolha do escore foi arbitrária, baseada no fato de que a maioria da população argentina imigrante vem desses países. Riscos < 1%, entre 1% e 4,9%, 5% e 9,9% ou ≥ 10% foram classificados como baixo, moderado, alto ou muito alto, respectivamente.

Análise estatística

A normalidade das variáveis foi avaliada analisando média, desvio-padrão, mediana, assimetria, curtose e histograma, e usando o teste de Shapiro-Wilk. Variáveis contínuas foram comparadas entre os grupos com o teste t não pareado para distribuição normal ou o teste de Mann-Whitney-Wilcoxon para distribuição não normal. A análise das variáveis categóricas foi realizada com o teste do qui-quadrado. A correlação entre LDL-C e não HDL-C foi feita com o teste de Pearson.

Construiu-se um modelo de regressão logística múltipla para identificar características independentes associadas com padrão lipídico discordante, incluindo todas as variáveis com p < 0,05 na análise univariada ou aquelas consideradas clinicamente relevantes (idade e tabagismo). Da mesma forma, construiu-se outro modelo de regressão logística múltipla para explorar a associação entre o padrão lipídico discordante e a presença de placa carotídea, incluindo todas as variáveis com p < 0,05 na análise univariada ou aquelas consideradas clinicamente relevantes (sexo). Por fim, um terceiro modelo multivariado foi construído para analisar a associação entre quartis mais altos e mais baixos de colesterol remanescente calculado e a presença de placa carotídea, ajustando para idade, sexo, índice de massa corporal, tabagismo e medicação anti-hipertensiva.

Variáveis contínuas foram expressas como média (desvio-padrão) se a distribuição fosse normal, e como mediana (intervalo interquartil) se a distribuição não fosse normal. Variáveis categóricas foram expressas como porcentagens. Considerou-se um valor de p bicaudal < 0,01 como estatisticamente significativo. Os programas STATA 11.1 e 3.1 EPIDAT foram usados para a análise estatística.

Cálculo do tamanho da amostra: Para se obter poder de 80% e erro alfa de 0,05 para detectar uma diferença absoluta ≥ 7% na prevalência de placa carotídea em indivíduos com e sem discordância lipídica, estimamos ser necessária uma amostra de 513 indivíduos. Assumindo-se uma perda de 15%, chegou-se ao número de 604 pacientes.

Considerações éticas

O estudo foi conduzido seguindo-se as recomendações para pesquisa médica de Declaração de Helsinki, Diretrizes de Boa Prática Clínica e regulamentos éticos válidos. As questões éticas foram avaliadas e aprovadas pela Seção de Investigação da Sociedade Argentina de Cardiologia.

Resultados

Este estudo incluiu um total de 772 pacientes (idade média, 52 ± 11 anos; 66% mulheres). Os valores médios dos seguintes parâmetros foram observados: índice de massa corporal, 26,9 ± 4,5; colesterol, LDL-C e HDL-C, 219 ± 45 mg/dl, 142 ± 43 mg/dl e 50 ± 14 mg/dl, respectivamente. A mediana do nível de triglicerídeos foi 117 mg/dl (80-173). Tratamento anti-hipertensivo era administrado a 36% dos pacientes e 20,5% deles eram tabagistas ativos.

Discordância lipídica (não HDL-C > LDL-C+30 mg/dl) foi observada em 34% da população estudada. A Figura 1 mostra a relação entre LDL-C e não HDL-C na população estudada.

Figura 1
Relação entre LDL-C e não HDL-C na população. A linha negra representa o valor do não HDL-C (30 mg/dl acima) associado com cada valor de LDL-C.

Entre os pacientes com discordância lipídica, havia uma maior proporção de homens e indivíduos recebendo medicação anti-hipertensiva, e ainda mais alto índice de massa corporal em comparação aos indivíduos com concordância lipídica. Além disso, observou-se uma menor proporção de indivíduos de baixo risco conforme os diferentes escores cardiovasculares no grupo com discordância lipídica. A Tabela 1 apresenta as características da população de acordo com o padrão lipídico. A Tabela 2 apresenta os níveis lipídicos de acordo com o padrão lipídico.

Tabela 1
Associação entre diferentes fatores de risco não lipídicos e padrões lipídicos
Tabela 2
Níveis lipídicos de acordo com o padrão lipídico

Na análise multivariada, sexo masculino (OR: 1,50; IC95%: 1,07-2,11; p = 0,02) e índice de massa corporal (OR: 1,12; IC95%: 1,08-1,17; p < 0,001) apresentaram associação independente com maior probabilidade de padrão lipídico discordante.

A Tabela 3 apresenta as características da população (fatores de risco não lipídicos) de acordo com a presença ou ausência de placa carotídea. A prevalência de placa carotídea foi significativamente maior em indivíduos com discordância lipídica (40,2% vs. 29,2; p = 0,002). Na análise univariada, observou-se uma associação significativa entre padrão lipídico discordante e a presença de placa carotídea (OR: 1,61; IC95%: 1,17-2,19; p = 0,003). Da mesma forma, a análise multivariada mostrou associação independente do padrão lipídico discordante com a maior probabilidade de exibir placa carotídea (OR: 1,58; IC95%: 1,08-2,34; p = 0,02). Isso ocorreu após ajuste por idade, sexo, índice de massa corporal, pressão arterial sistólica, tratamento anti-hipertensivo, tabagismo ativo e história familiar de doença coronariana precoce.

Tabela 3
Associação entre fatores de risco não lipídicos e placa carotídea

Da mesma forma, observou-se associação significativa entre o colesterol remanescente calculado e a presença de placa carotídea na análise univariada (quartil superior vs. inferior: OR: 1,82; IC95%: 1,19-2,79; p = 0,006). Essa associação permaneceu após ajuste para outros fatores de risco (quartil superior vs. inferior: OR: 1,84; IC95%: 1,11-3,05; p = 0,02). A Figura 2 mostra a associação entre os quartis do colesterol remanescente calculado e a presença de placa carotídea.

Figura 2
Associação entre quartis do colesterol remanescente calculado e a presença de placa carotídea. Q: quartil.

Discussão

A análise de discordância é uma técnica analítica na qual variáveis biologicamente ligadas são analisadas por grupos de concordância ou discordância entre suas distribuições relativas.1818 Sniderman AD, Lamarche B, Contois JH, de Graaf J. Discordance analysis and the Gordian Knot of LDL and non-HDL cholesterol versus apoB. Curr Opin Lipidol. 2014;25(6):461-7. No nosso estudo, definimos "discordância lipídica" arbitrariamente, mas de modo original. Para cada paciente, categorizamos o padrão lipídico como discordante caso o nível de não HDL-C nível excedesse em 30 mg/dl aquele de LDL-C. Assim, o valor clínico dessa análise acha-se mais intimamente relacionado ao número de partículas aterogênicas do que à massa total de colesterol.

Neste estudo, os pacientes do sexo masculino ou aqueles com índice de massa corporal mais alto apresentaram maior probabilidade de discordância lipídica. Como no nosso estudo, um outro conduzido na população de Barcelona relatou prevalência de dislipidemia aterogênica maior em homens do que em mulheres, usando o ponto de corte de HDL-C recomendado pelas diretrizes europeias.1919 Caballero Sarmiento R. [Epidemiology of atherogenic dyslipidemia in an urban area of the city of Barcelona]. Clin Investig Arterioscler. 2014;26(1):17-9. Além disso, um estudo realizado com usuários de atenção primária de saúde de Portugal mostrou maior prevalência de hipertrigliceridemia e de baixos níveis de HDL-C em homens.2020 Cortez-Dias N, Robalo Martins S, Belo A, Fiúza M. [Characterization of lipid profile in primary health care users in Portugal]. Rev Port Cardiol. 2013;32(12):987-96. Em outro estudo, Williams et al. demonstraram em homens não diabéticos níveis mais altos de apolipoproteína B, não HDL-C e pequenas partículas de LDL do que em mulheres não diabéticas.2121 Williams K, Tchernof A, Hunt KJ, Wagenknecht LE, Haffner SM, Sniderman AD. Diabetes, abdominal adiposity, and atherogenic dyslipoproteinemia in women compared with men. Diabetes. 2008;57(12):3289-96. Por outro lado, a associação entre sobrepeso ou obesidade e altos níveis de não HDL-C foi amplamente demonstrada.2222 Bosomworth NJ. Approach to identifying and managing atherogenic dyslipidemia: a metabolic consequence of obesity and diabetes. Can Fam Physician. 2013;59(11):1169-80.,2323 Holewijn S, den Heijer M, Swinkels DW, Stalenhoef AF, de Graaf J. Apolipoprotein B, non-HDL cholesterol and LDL cholesterol for identifying individuals at increased cardiovascular risk. J Intern Med. 2010;268(6):567-77.

Nossa análise mostrou uma associação entre padrão lipídico discordante e maior prevalência de placa carotídea. Da mesma forma, Holewijn et al. relataram que indivíduos com altos níveis de não HDL-C tinham índice tornozelo-braquial mais baixo, maior espessura médio-intimal média e mais placas ateroscleróticas do que aqueles com baixos níveis de não HDL-C.2323 Holewijn S, den Heijer M, Swinkels DW, Stalenhoef AF, de Graaf J. Apolipoprotein B, non-HDL cholesterol and LDL cholesterol for identifying individuals at increased cardiovascular risk. J Intern Med. 2010;268(6):567-77. Além disso, a discordância ‘alto não HDL-C’/‘baixo LDL-C’ foi associada com mais alto escore de cálcio coronário medido por tomografia computadorizada.2424 Wilkins JT, Li RC, Sniderman A, Chan C, Lloyd-Jones DM. Discordance between apolipoprotein B and LDL-Cholesterol in young adults predicts coronary artery calcification. The CARDIA Study. J Am Coll Cardiol 2016;67(2):193-201. Há vários fatores para explicar a associação entre padrão lipídico discordante e maior prevalência de aterosclerose subclínica. Primeiro, alguns remanescentes de lipoproteína rica em triglicerídeos entram na parede arterial à semelhança do LDL-C, contribuindo para o início e progressão da aterosclerose. Segundo, o não HDL-C se correlaciona mais intimamente com a carga total de todas as partículas aterogênicas. Por fim, níveis elevados de triglicerídeos e de colesterol da lipoproteína de muito baixa densidade poderiam refletir produção hepática excessiva de partículas aterogênicas e densas caracterizadas por uma depuração da circulação mais lenta.

Outro achado do nosso estudo foi a associação entre colesterol remanescente calculado e a presença de placa carotídea. Tal associação permaneceu mesmo após ajuste para fatores de risco não lipídicos.

Colesterol remanescente elevado acha-se associado com cardiopatia isquêmica.2525 Varbo A, Benn M, Tybjærg-Hansen A, Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG. Remnant cholesterol as a causal risk factor for ischemic heart disease. J Am Coll Cardiol. 2013;61(4):427-36. Da mesma forma, concentrações aumentadas do colesterol remanescente tanto calculado quanto medido estão associadas com aumento da mortalidade por todas as causas em pacientes com cardiopatia isquêmica.2626 Jepsen AM, Langsted A, Varbo A, Bang LE, Kamstrup PR, Nordestgaard BG. Increased remnant cholesterol explains part of residual risk of all-cause mortality in 5414 patients with ischemic heart disease. Clin Chem. 2016;62(4):593-604. A principal explicação para o efeito causal da elevação do colesterol remanescente no risco de cardiopatia isquêmica seria que os remanescentes entram na camada íntima da parede arterial e ficam aí presos.2727 Nordestgaard BG, Wootton R, Lewis B. Selective retention of VLDL, IDL, and LDL in the arterial intima of genetically hyperlipidemic rabbits in vivo. Molecular size as a determinant of fractional loss from the intima-inner media. Arterioscler Thromb Vasc Biol 1995;15(4):534-42. Além disso, os remanescentes podem prescindir de oxidação para serem englobados por macrófagos para causar a formação de células espumosas e aterosclerose.2828 Nakajima K, Nakano T, Tanaka A. The oxidative modification hypothesis of atherosclerosis: the comparison of atherogenic effects on oxidized LDL and remnant lipoproteins in plasma. Clin Chim Acta 2006;367(1-2):36-47. Logo, nossos achados são consistentes com os dados fisiopatológicos e clínicos já relatados.

Nosso achado da associação de padrão lipídico discordante e de altos níveis de colesterol remanescente com placa aterosclerótica enfatiza o papel do não HDL-C na prática clínica. No mundo real, pacientes com risco cardiovascular muito alto têm uma significativa prevalência de dislipidemia aterogênica a despeito de terem atingido as metas de LDL-C.2929 Plana N, Ibarretxe D, Cabré A, Ruiz E, Masana L. Prevalence of atherogenic dyslipidemia in primary care patients at moderate-very high risk of cardiovascular disease. Cardiovascular risk perception. Clin Investig Arterioscler. 2014;26(6):274-84.

Entretanto, as recomendações das diretrizes são confusas e nem sempre consistentes.3030 Pedro-Botet J, Mantilla-Morató T, Díaz-Rodríguez Á, Brea-Hernando Á, González-Santos P, Hernández-Mijares A, et al. [The role of atherogenic dyslipidaemia in clinical practice guidelines]. Clin Investig Arterioscler. 2016;28(2):65-70. As diretrizes da ACC/AHA de 2013 para manejo de colesterol não consideram HDL-C e triglicerídeos na prevenção cardiovascular. Contudo, a NLA enfatiza a relevância da dislipidemia aterogênica e as diretrizes canadenses introduziram o não HDL-C e a apolipoproteína B como metas alternativas. As diretrizes da Sociedade Internacional de Aterosclerose e do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) promovem a importância do não HDL-C. As diretrizes europeias enfatizam o papel de HDL-C e triglicerídeos, mas com a limitação de que a principal evidência tem origem em subanálise de estudos clínicos.

Nosso estudo tem algumas limitações. Primeiro, como em qualquer estudo transversal, não se pode descartar a possibilidade de viés, em especial de seleção, influenciando os resultados. Acreditamos que possa existir um viés de seleção na nossa amostra, pois os pacientes atendidos em clínica de prevenção cardiovascular não necessariamente representam a população geral. Segundo, não medimos o colesterol remanescente diretamente. Contudo, o uso do colesterol remanescente calculado já foi relatado em vários estudos. Por fim, no nosso estudo, a placa carotídea foi definida conforme os critérios do estudo Atherosclerosis Risk in Communities. A mudança da definição de placa poderia modificar nossos resultados.

Conclusão

Na nossa análise, a discordância lipídica e a presença de um nível mais alto de colesterol remanescente calculado acham-se associadas com aterosclerose subclínica. Nossos resultados expandem as estratégias na prevenção primária para avaliação do risco cardiovascular residual.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

  • 1
    Le NA, Walter MF. The role of hypertriglyceridemia in atherosclerosis. Curr Atheroscler Rep. 2007;9(2):110-5.
  • 2
    Chapman MJ, Ginsberg HN, Amarenco P, Andreotti F, Borén J, Catapano AL, et al; European Atherosclerosis Society Consensus Panel. Triglyceride-rich lipoproteins and high-density lipoprotein cholesterol in patients at high risk of cardiovascular disease: evidence and guidance for management. Eur Heart J. 2011;32(11):1345-61.
  • 3
    Brunzell JD, Davidson M, Furberg CD, Goldberg RB, Howard BV, Stein JH, et al; American Diabetes Association; American College of Cardiology Foundation. Lipoprotein management in patients with cardiometabolic risk: consensus statement from the American Diabetes Association and the American College of Cardiology Foundation. Diabetes Care. 2008;31(4):811-22.
  • 4
    Catapano AL, Graham I, De Backer G, Wiklund O, Chapman MJ, Drexel H, et al; Authors/Task Force Members; Additional Contributor. 2016 ESC/EAS Guidelines for the Management of Dyslipidaemias. Eur Heart J. 2016;37(39):2999-3058.
  • 5
    Expert Dyslipidemia Panel of the International Atherosclerosis Society Panel members. An International Atherosclerosis Society Position Paper: global recommendations for the management of dyslipidemia - Full report. J Clin Lipidol. 2014;8(1):29-60.
  • 6
    Rabar S, Harker M, O'Flynn N, Wierzbicki AS, Wierzbicki A, Ahmad R, et al; Guideline Development Group. Lipid modification and cardiovascular risk assessment for the primary and secondary prevention of cardiovascular disease: summary of updated NICE guidance. BMJ. 2014;349:g4356.
  • 7
    Jacobson TA, Ito MK, Maki KC, Orringer CE, Bays HE, Jones PH, et al. National Lipid Association recommendations for patient-centered management of dyslipidemia: part 1-executive summary. J Clin Lipidol. 2014;8(5):473-88.
  • 8
    Robinson JG, Wang S, Smith BJ, Jacobson TA. Meta-analysis of the relationship between non-high-density lipoprotein cholesterol reduction and coronary heart disease risk. J Am Coll Cardiol. 2009;53(4):316-22.
  • 9
    Boekholdt SM, Arsenault BJ, Mora S, Pedersen TR, LaRosa JC, Nestel PJ, et al. Association of LDL cholesterol, non-HDL cholesterol, and apolipoprotein B levels with risk of cardiovascular events among patients treated with statins: a meta-analysis. JAMA 2012;307(12)1302-9.
  • 10
    Alibasic E, Ramic E, Bajraktarevic A, Ljuca F, Batic-Mujanovic O, Zildzic M. Atherogenic dyslipidemia and residual vascular risk in practice of family doctor. Med Arch. 2015;69(5):339-41.
  • 11
    Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, West AS, Grande P, Nordestgaard BG, Tybjærg-Hansen A. Genetically elevated non-fasting triglycerides and calculated remnant cholesterol as causal risk factors for myocardial infarction. Eur Heart J. 2013;34(24):1826-33.
  • 12
    Nambi V, Chambless L, Folsom AR, He M, Hu Y, Mosley T, et al. Carotid intima-media thickness and presence or absence of plaque improves prediction of coronary heart disease risk: The ARIC (Atherosclerosis Risk In Communities) Study. J Am Coll Cardiol. 2010;55(15):1600-7.
  • 13
    Masson W, Lobo M, Huerín M, Molinero G, Manente D, Pángaro M, et al. Use of different scores for cardiovascular risk stratification in primary prevention and their implications in statin indication. Rev Argent Cardiol. 2014;82(6):473-5.
  • 14
    Masson W, Huerín M, Vitagliano L, Zeballos C, Lobo M, Rostan M, et al. Estimation of cardiovascular risk and detection of subclinical carotid atheromatosis in middle-aged postmenopausal women. Rev Argent Cardiol. 2013;81(4):322-8.
  • 15
    Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults. Executive Summary of The Third Report of The National Cholesterol Education Program (NCEP) Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (Adult Treatment Panel III). JAMA. 2001;285(19):2486-97.
  • 16
    Stone NJ, Robinson JG, Lichtenstein AH, Bairey Merz CN, Blum CB, Eckel RH, et al; American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. ACC/AHA guideline on the treatment of blood cholesterol to reduce atherosclerotic cardiovascular risk in adults. A report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol. 2014;63(25 Pt B):2889-934. Erratum in: J Am Coll Cardiol. 2015;66(24):2812. J Am Coll Cardiol. 2014;63(25 Pt B):3024-5.
  • 17
    Piepoli MF, Hoes AW, Agewall S, Albus C, Brotons C, Catapano AL, et al. 2016 European Guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice: The Sixth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and Other Societies on Cardiovascular Disease Prevention in Clinical Practice (constituted by representatives of 10 societies and by invited experts): Developed with the special contribution of the European Association for Cardiovascular Prevention & Rehabilitation (EACPR). Eur J Prev Cardiol. 2016;23(11):NP1-NP96.
  • 18
    Sniderman AD, Lamarche B, Contois JH, de Graaf J. Discordance analysis and the Gordian Knot of LDL and non-HDL cholesterol versus apoB. Curr Opin Lipidol. 2014;25(6):461-7.
  • 19
    Caballero Sarmiento R. [Epidemiology of atherogenic dyslipidemia in an urban area of the city of Barcelona]. Clin Investig Arterioscler. 2014;26(1):17-9.
  • 20
    Cortez-Dias N, Robalo Martins S, Belo A, Fiúza M. [Characterization of lipid profile in primary health care users in Portugal]. Rev Port Cardiol. 2013;32(12):987-96.
  • 21
    Williams K, Tchernof A, Hunt KJ, Wagenknecht LE, Haffner SM, Sniderman AD. Diabetes, abdominal adiposity, and atherogenic dyslipoproteinemia in women compared with men. Diabetes. 2008;57(12):3289-96.
  • 22
    Bosomworth NJ. Approach to identifying and managing atherogenic dyslipidemia: a metabolic consequence of obesity and diabetes. Can Fam Physician. 2013;59(11):1169-80.
  • 23
    Holewijn S, den Heijer M, Swinkels DW, Stalenhoef AF, de Graaf J. Apolipoprotein B, non-HDL cholesterol and LDL cholesterol for identifying individuals at increased cardiovascular risk. J Intern Med. 2010;268(6):567-77.
  • 24
    Wilkins JT, Li RC, Sniderman A, Chan C, Lloyd-Jones DM. Discordance between apolipoprotein B and LDL-Cholesterol in young adults predicts coronary artery calcification. The CARDIA Study. J Am Coll Cardiol 2016;67(2):193-201.
  • 25
    Varbo A, Benn M, Tybjærg-Hansen A, Jørgensen AB, Frikke-Schmidt R, Nordestgaard BG. Remnant cholesterol as a causal risk factor for ischemic heart disease. J Am Coll Cardiol. 2013;61(4):427-36.
  • 26
    Jepsen AM, Langsted A, Varbo A, Bang LE, Kamstrup PR, Nordestgaard BG. Increased remnant cholesterol explains part of residual risk of all-cause mortality in 5414 patients with ischemic heart disease. Clin Chem. 2016;62(4):593-604.
  • 27
    Nordestgaard BG, Wootton R, Lewis B. Selective retention of VLDL, IDL, and LDL in the arterial intima of genetically hyperlipidemic rabbits in vivo. Molecular size as a determinant of fractional loss from the intima-inner media. Arterioscler Thromb Vasc Biol 1995;15(4):534-42.
  • 28
    Nakajima K, Nakano T, Tanaka A. The oxidative modification hypothesis of atherosclerosis: the comparison of atherogenic effects on oxidized LDL and remnant lipoproteins in plasma. Clin Chim Acta 2006;367(1-2):36-47.
  • 29
    Plana N, Ibarretxe D, Cabré A, Ruiz E, Masana L. Prevalence of atherogenic dyslipidemia in primary care patients at moderate-very high risk of cardiovascular disease. Cardiovascular risk perception. Clin Investig Arterioscler. 2014;26(6):274-84.
  • 30
    Pedro-Botet J, Mantilla-Morató T, Díaz-Rodríguez Á, Brea-Hernando Á, González-Santos P, Hernández-Mijares A, et al. [The role of atherogenic dyslipidaemia in clinical practice guidelines]. Clin Investig Arterioscler. 2016;28(2):65-70.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2016
  • Revisado
    01 Fev 2017
  • Aceito
    08 Fev 2017
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br