Acessibilidade / Reportar erro

Quando Operar Pacientes Pediátricos com Cardiopatia Congênita e Hipertensão Pulmonar

Palavras-chave
Cardiopatias Congênitas/cirurgia; Cardiopatias Congênitas/complicações; Hipertensão Pulmonar/congênito; Cuidados Pós Operatórios/complicações

Em se tratando de pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita (HP-CC), a decisão pela cirurgia pode ser difícil, dependendo do cenário diagnóstico. A maioria dos pacientes com comunicação entre as câmaras cardíacas ou os grandes vasos pode agora ser operada de maneira segura e com excelentes resultados. A HP apresenta complicações em menos de 10% dos casos. Em geral, considera-se o encaminhamento precoce para cirurgia a melhor estratégia para evitar complicações. Isso é inquestionável. Entretanto, o encaminhamento tardio ainda é um problema em países em desenvolvimento e áreas carentes. Ademais, deve-se reconhecer que a vasculopatia pulmonar grave pode estar presente numa fase precoce da vida, levando à especulação de que lesões vasculares possam se desenvolver a partir do nascimento, ou até antes. Anormalidades vasculares pulmonares moderadas a graves limitam o sucesso da correção das anomalias cardíacas. Em primeiro lugar, as denominadas crises hipertensivas pulmonares pós-operatórias são relativamente infrequentes na atualidade, mas ainda se associam a altas taxas de mortalidade (>20%).11 Lindberg L, Olsson AK, Jögi P, Jonmarker C. How common is severe pulmonary hypertension after pediatric cardiac surgery? J Thorac Cardiovasc Surg. 2002; 123(6):1155-63. PMID: 12063463 O manejo do paciente requer sofisticado armamentário de suporte à vida, como a oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Em segundo, os pacientes que sobrevivem ao pós-operatório imediato podem permanecer com risco de HP persistente pós-operatória, que se associa com mau desfecho em comparação às outras etiologias de HP pediátrica.22 Haworth SG, Hislop AA. Treatment and survival in children with pulmonary arterial hypertension: the UK Pulmonary Hypertension Service for Children 2001-2006. Heart. 2009; 95(4):312-7. doi: 10.1136/hrt.2008.150086
https://doi.org/10.1136/hrt.2008.150086...
Portanto, ao se conscientizarem dessas complicações, clínicos e cirurgiões precisam se unir e planejar a melhor estratégia terapêutica de maneira individual.

Por muito tempo, o cateterismo cardíaco (com teste de vasorreatividade pulmonar aguda, TVA) foi considerado o padrão-ouro para avaliação de HP-CC. Na maioria dos centros terciários, a informação fornecida pelo cateterismo ocupa uma alta posição hierárquica no processo de decisão pela operação de pacientes com HP-CC. Além disso, subclassificações da HP-CC conforme a gravidade da doença são baseadas em parâmetros hemodinâmicos. Entretanto, nem a obtenção nem a interpretação dos dados do cateterismo são fáceis, em especial na população pediátrica, por várias razões:

  • 1- o procedimento, em geral, é realizado sob anestesia geral, com ventilação mecânica e relaxamento muscular, estando, portanto, fora das condições fisiológicas;

  • 2- até mesmo a hipotensão sistêmica leve (como a consequente à hidratação inadequada relacionada aos efeitos dos anestésicos) impossibilita a análise dos resultados em indivíduos com shunts sistêmico-pulmonar;

  • 3- a medida direta do consumo de oxigênio, essencial ao cálculo dos fluxos sanguíneos pulmonar e sistêmico, não é realizada em muitas instituições;

  • 4- óxido nítrico inalante é caro, não estando disponível em muitos centros, o que limita o desempenho do TVA; sabe-se ser inapropriada a exposição da circulação pulmonar a oxigênio ~100% para se testar a vasorreatividade, pois leva a resultados imprecisos; e

  • 5- não há consenso quanto ao protocolo para o TVA na população pediátrica, não se correlacionando a magnitude da resposta com o desfecho em CC.33 Giglia TM, Humpl T. Preoperative pulmonary hemodynamics and assessment of operability: is there a pulmonary vascular resistance that precludes cardiac operation? Pediatr Crit Care Med. 2010; 11(2 Suppl):S57-S69. doi: 10.1097/PCC.0b013e3181d10cce
    https://doi.org/10.1097/PCC.0b013e3181d1...
    O cateterismo cardíaco permanece uma etapa importante na avaliação de HP-CC,44 Lopes AA, O'Leary PW. Measurement, interpretation and use of haemodynamic parameters in pulmonary hypertension associated with congenital cardiac disease. Cardiol Young. 2009;19:431-5. PMID: 19419599 mas, devido a essas dificuldades, seus dados devem ser considerados como parte do cenário diagnóstico integral.

Na era das drogas específicas para manejo da HP, tentou-se tratar pacientes inoperáveis (indivíduos mais idosos com elevada resistência vascular pulmonar e, por vezes, shunt bidirecional através das comunicações) com o objetivo de torná-los operáveis. Tal abordagem ficou conhecida como “estratégia tratar e reparar”. Entretanto, não houve evidência suficiente para embasar tal recomendação de maneira generalizada.55 Beghetti M, Galiè N, Bonnet D. Can "inoperable" congenital heart defects become operable in patients with pulmonary arterial hypertension? Dream or reality? Congenit Heart Dis. 2012; 7(1):3-11. doi: 10.1111/j.1747-0803.2011.00611.x
https://doi.org/10.1111/j.1747-0803.2011...
Se por um lado, não há garantia de que as drogas permanecerão efetivas no longo prazo, por outro, a persistência de HP grave é uma complicação preocupante após correção de shunts cardíacos congênitos, com significativa redução de sobrevida.22 Haworth SG, Hislop AA. Treatment and survival in children with pulmonary arterial hypertension: the UK Pulmonary Hypertension Service for Children 2001-2006. Heart. 2009; 95(4):312-7. doi: 10.1136/hrt.2008.150086
https://doi.org/10.1136/hrt.2008.150086...
Frequentemente, a reabertura da comunicação requer reoperação com circulação extracorpórea, um procedimento de alto risco para pacientes com HP. Em alguns casos, pode-se optar pelo reparo da lesão extracardíaca sem a correção da comunicação intracardíaca, ou ainda pelo fechamento parcial do defeito.

A escolha da melhor estratégia terapêutica na HP-CC, em especial na população pediátrica, deve ser feita em bases individuais. Às vezes, deve-se considerar a cirurgia mesmo sem a perspectiva de completa normalização hemodinâmica. Esse pode ser o caso, por exemplo, de uma criança com comunicação interventricular não restritiva e HP, com grave regurgitação mitral e ventrículo esquerdo quase insuficiente. Nesse caso, a cardiopatia esquerda provavelmente representará maior limitação à vida do que a própria HP. Assim, poderíamos tentar definir operabilidade no sentido geral, sem relacioná-la com qualquer ponto de corte de um índice específico. Um paciente deve ser considerado operável quando, com base em todos os dados diagnósticos, uma equipe multiprofissional estiver convencida de que a cirurgia pode ser realizada com riscos aceitáveis, vislumbrando-se significativos benefícios em médio e longo prazo.

Gostaríamos de complementar tal visão do problema apresentando um resumo das características clínicas e parâmetros diagnósticos que vêm sendo usados para a tomada de decisão sobre a cirurgia na HP-CC, com ênfase na população pediátrica (Tabela 1). Devem ser consideradas a idade do paciente e a complexidade da anomalia cardíaca. Por exemplo, enquanto atualmente o truncus arteriosus é corrigido com sucesso em uma fase precoce da vida, ele se associa ao desenvolvimento de grave vasculopatia pulmonar com o aumento da idade. A ecocardiografia é útil para avaliar a gravidade da HP e a adaptação ou a disfunção ventricular direita, pois parâmetros numéricos, além de informação anatômica, podem ser obtidos. A ecocardiografia é particularmente útil quando medidas repetidas são necessárias nos pacientes pediátricos, antes e depois da operação. Por fim, o cateterismo cardíaco com medida direta da resistência vascular pulmonar deve ser considerado em todos os pacientes com defeitos do septo cardíaco não restritivos e sem história de insuficiência cardíaca congestiva e comprometimento do desenvolvimento. Em lugar de se considerar apenas um único parâmetro, a melhor política é usar a abordagem diagnóstica holística nesses pacientes delicados.66 Lopes AA, Barst RJ, Haworth SG, Rabinovitch M, Al Dabbagh M, Del Cerro MJ, et al. Repair of congenital heart disease with associated pulmonary hypertension in children: what are the minimal investigative procedures? Consensus statement from the Congenital Heart Disease and Pediatric Task Forces, Pulmonary Vascular Research Institute (PVRI). Pulm Circ. 2014;4(2):330-41. doi: 10.1086/675995. Erratum in: Pulm Circ. 2014;4(3):531.
https://doi.org/10.1086/675995...
Quanto à decisão sobre a cirurgia, “negligência benigna” é provavelmente a melhor atitude humanista quando os riscos superam os benefícios. Caso contrário, a decisão pela cirurgia deve ser baseada em múltiplos aspectos diagnósticos e na opinião de uma equipe multiprofissional de especialistas.

Tabela 1
Características clínicas e parâmetros invasivos e não invasivos a serem considerados na tomada de decisão sobre cirurgia em pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita

References

  • 1
    Lindberg L, Olsson AK, Jögi P, Jonmarker C. How common is severe pulmonary hypertension after pediatric cardiac surgery? J Thorac Cardiovasc Surg. 2002; 123(6):1155-63. PMID: 12063463
  • 2
    Haworth SG, Hislop AA. Treatment and survival in children with pulmonary arterial hypertension: the UK Pulmonary Hypertension Service for Children 2001-2006. Heart. 2009; 95(4):312-7. doi: 10.1136/hrt.2008.150086
    » https://doi.org/10.1136/hrt.2008.150086
  • 3
    Giglia TM, Humpl T. Preoperative pulmonary hemodynamics and assessment of operability: is there a pulmonary vascular resistance that precludes cardiac operation? Pediatr Crit Care Med. 2010; 11(2 Suppl):S57-S69. doi: 10.1097/PCC.0b013e3181d10cce
    » https://doi.org/10.1097/PCC.0b013e3181d10cce
  • 4
    Lopes AA, O'Leary PW. Measurement, interpretation and use of haemodynamic parameters in pulmonary hypertension associated with congenital cardiac disease. Cardiol Young. 2009;19:431-5. PMID: 19419599
  • 5
    Beghetti M, Galiè N, Bonnet D. Can "inoperable" congenital heart defects become operable in patients with pulmonary arterial hypertension? Dream or reality? Congenit Heart Dis. 2012; 7(1):3-11. doi: 10.1111/j.1747-0803.2011.00611.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1747-0803.2011.00611.x
  • 6
    Lopes AA, Barst RJ, Haworth SG, Rabinovitch M, Al Dabbagh M, Del Cerro MJ, et al. Repair of congenital heart disease with associated pulmonary hypertension in children: what are the minimal investigative procedures? Consensus statement from the Congenital Heart Disease and Pediatric Task Forces, Pulmonary Vascular Research Institute (PVRI). Pulm Circ. 2014;4(2):330-41. doi: 10.1086/675995. Erratum in: Pulm Circ. 2014;4(3):531.
    » https://doi.org/10.1086/675995

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2017
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br