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Ablação por Cateter sem Uso de Raios X para Tratamento de Fibrilação Atrial e Arritmias Atriais

Ablação por Radiofrequência/métodos; Ondas de Radio/efeitos adversos; Equipamento de Proteção Individual; Fluoroscopia; Fistula Arteriovenosa; Eficácia; Segurança

A ablação por radiofrequência é um método consagrado e cada vez mais usado no tratamento das taquiarritmias. Tradicionalmente, é feita por meio da colocação de cateteres intracavitários guiados por fluoroscopia. Ao longo dos anos, no entanto, uma série de problemas relacionados com a exposição à radiação tornou-se mais evidente, tais como catarata, mutações genéticas e câncer.11. Rehani MM, Ortiz-Lopez P. Radiation effects in fluoroscopically guided cardiac interventions: Keeping them under control. Int J Cardiol. 2006; 109(2):147-51. Não por acaso, a quantidade de tumores no hemisfério cerebral esquerdo, que recebe maior quantidade de radiação, é maior do que no hemisfério direito, em intervencionistas. É importante lembrar que o risco de câncer é linear com a exposição, sem um limiar definido, e que existe efeito cumulativo. Em procedimentos mais longos, lesões graves cutâneas podem, inclusive, se desenvolver nos pacientes. Para reduzir esses riscos aos pacientes e à equipe médica, várias medidas foram tomadas: aparelhos e métodos de fluoroscopia com menor radiação e equipamentos de proteção individual, tais como avental, proteção de tireoide, óculos, touca e até mesmo luvas chumbadas.22. Heidbuchel H, Wittkampf F, Vano E, Ernst S, Schilling RJ, Picano E, et al. Practical ways to reduce radiation dose for patients and staff during device implantations and electrophysiological procedures. Europace. 2014; 16(7):946-64. A proteção aumentou, mas às custas de problemas ortopédicos pelo peso que se carregava, em tantos procedimentos, por tanto tempo.33. Ross AM, Segal J, Borenstein D, Jenkins E, Cho S. Prevalence of spinal disc disease among interventional cardiologists. Am J Cardiol. 1997; 79(1):68-70. Novas soluções foram criadas, como aventais chumbados suspensos. Contudo, junto a esse aumento da proteção individual, foi ganhando força a ideia também de, efetivamente, se realizar o procedimento com a menor quantidade de radiação possível. Para isso, o desenvolvimento de sistemas de mapeamento tridimensional foi o impulso que se precisava. Isso, associado ao uso de cateteres de ablação por força de contato, tornou possível realizar procedimentos, mesmo complexos, manipulando cateteres e aplicando energia com eficácia e segurança, sem necessitar de visualização por fluoroscopia. Em procedimentos menos complexos, especialmente do lado direito do coração, descreviam-se ablações sem fluoroscopia.44. Alvarez M, Bertomeu-Gonzalez V, Arcocha M. Nonfluoroscopic Catheter Ablation. Results From a Prospective Multicenter Registry. Rev Esp Cardiol. 2017; 70(9):699-705. , 55. Chen G, Wang Y, Proietti R, Wang X, Ouyang F, Ma CS, et al. Zero-fluoroscopy approach for ablation of supraventricular tachycardia using the Ensite NavX system: a multicenter experience. BMC Cardiovasc Disord. 2020; 20(1):48. Em gestantes, passou a ser uma solução factível. Mesmo para os procedimentos de maior complexidade, passou-se a preconizar a fluoroscopia “quase zero”. “Quase zero” porque ainda era necessário usar a fluoroscopia em alguns momentos, como a punção transeptal, por exemplo.

Ao mesmo tempo, o ultrassom passou a ser cada vez mais usado em procedimentos cardiológicos invasivos, e mais especificamente em eletrofisiologia. Ecografia vascular é usada para auxílio nas punções vasculares e redução de fístulas arteriovenosas (AV) e pseudoaneurismas. Ecocardiograma transesofágico é útil para excluir trombos em apêndice atrial e auxiliar punção transeptal. Ainda mais útil é o ecocardiograma intracardíaco, que auxilia punção transeptal, permite visualizar óstios de veias pulmonares, descarta derrame pericárdico, visualiza recessos durante ablação do istmo cavotricuspídeo e confirma contato adequado do cateter.

A ideia de que o ultrassom poderia ser usado para substituir o que ainda era feito com fluoroscopia foi descrita há mais de 10 anos, e lentamente vem ganhando espaço na literatura.66. Ferguson JD, Helms A, Mangrum J, ahapatra S, Mason P, Bilchick K, et al. Catheter ablation of atrial fibrillation without fluoroscopy using intracardiac echocardiography and electroanatomic mapping. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2009 Dec; 2(6):611-9. No Brasil, o Dr. Eduardo Saad foi um pioneiro no uso do ecocardiograma intracardíaco em ablações complexas, e agora o seu grupo publica a primeira série de casos realizados no Brasil e América Latina com uso zero de fluoroscopia, e sem a necessidade sequer de vestir o avental de chumbo.77. Saad EB, Slater C, Oliveira Jr LAI, Santos GV, Dias LC, Camanho LE. Ablação por cateter sem uso de raios x para tratamento de fibrilação atrial e arritmias atriais. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):1015-1026. Foram 95 pacientes que realizaram o procedimento usando apenas ecocardiograma intracardíaco e mapeamento tridimensional, sendo 69 submetidos à ablação de fibrilação atrial, e incluindo 9 pacientes com marca-passo definitivo. Os procedimentos transcorreram com sucesso e sem complicações maiores. Mesmo as punções transeptais mais difíceis foram realizadas sem o uso de fluoroscopia. “Não foi utilizada fluoroscopia de backup, e nenhum vestuário de chumbo foi necessário“, dizem os autores.

Resultados similares, com sucesso elevado e poucas complicações, têm sido descritos por outros grupos.88. Sadek MM, Ramirez FD, Nery PB, Golian M, Redpath CJ, Nair GM, et al. Completely non-fluoroscopic catheter ablation of left atrial arrhythmias and ventricular tachycardia. J Cardiovasc Electrophysiol. 2019; 30(1):78-88. , 99. Reddy VY, Morales G, Ahmed H, Neuzil P, Dukkipati S, Kim S, et al. Catheter ablation of atrial fibrillation without the use of fluoroscopy. Heart Rhythm. 2010; 7(11):1644-53. Além disso, trabalhos comparativos têm mostrado que o tempo de aplicação de energia não aumenta, e o sucesso de médio prazo (1 ano) é mantido.1010. Bulava A, Hanis J, Eisenberger M. Catheter ablation of atrial fibrillation using zero-fluoroscopy technique: a randomized trial. Pacing Clin Electrophysiol. 2015; 38(7):797-806. A maior parte dos dados se refere a taquiarritmias supraventriculares, mas também apresenta bons resultados em ablações de extrassístoles e taquicardias ventriculares.1111. Johnson A, Mejia-Lopez E, Bilchick K. Catheter ablation of ventricular arrhythmias without fluoroscopy using intracardiac echocardiography and electroanatomic mapping. [abstract] In: 40th Annual Heart Rhythm Scientific Sessions, May 08 November 2019. San Francisco,California.

Ao mesmo tempo que o conceito de que é possível e desejável realizar os procedimentos sem usar a fluoroscopia é aceito e se torna a norma, passam a ser buscadas outras técnicas, além da associação do mapeamento tridimensional com o ecocardiograma intracardíaco. Estudos recentes descrevem a realização de punção transeptal e ablação de fibrilação atrial sem o uso do ecocardiograma intracardíaco, mas usando sa agulhas de punção transeptal como “cateter bipolar”,1212. Guarguagli S, Cazzoli I, Kempny A, Gatzoulius MA, Ernst S. A New Technique for Zero Fluoroscopy Atrial Fibrillation Ablation Without the Use of Intracardiac Echocardiography. JACC Clin Electrophysiol. 2018; 4(12):1647-8. ou identificando a fossa ovalis somente com o sistema de mapeamento 3-D.1313. Weber R, Minners J, Allgeier HJ, Jadidi A, Muller-Edenborn B, Neumann FJ, et al. 3D mapping for the identification of the fossa ovalis in left atrial ablation procedures: a pilot study of a first step towards an electroanatomic-guided transseptal puncture EP Europace. 2020; 22(5):732-8.

Não parece haver dúvidas de que o futuro aponta para ablações sem o uso de fluoroscopia, até mesmo porque questões éticas e jurídicas deverão impulsionar nessa direção. No entanto, quais são, atualmente, os obstáculos que dificultam o uso regular da técnica? Em primeiro lugar, é preciso lembrar situações nas quais ainda não se testou a técnica, e que parece de mais difícil aplicação, como na ablação epicárdica ou em arritmias relacionadas com cardiopatia congênita complexa. Em segundo lugar, o custo. Não são todos os seguros que cobrem o uso do ecocardiograma intracardíaco, e a maior parte dos pacientes não tem condições de arcar com esse custo. Em terceiro lugar, a inércia. A maior parte dos eletrofisiologistas está acostumada com as técnicas tradicionais (que obtêm bons resultados) e não está disposta a passar por uma nova curva de aprendizado. Para procedimentos como ablação de fibrilação atrial, não parece que esses obstáculos se sustentem frente aos benefícios da técnica. Creio que fica a dúvida com relação aos procedimentos de baixa complexidade, como a ablação de taquicardia supraventricular, que hoje são feitos com alto sucesso, raríssimas complicações e doses muito baixas de radiação. Se o ganho que se obtém com o mapeamento tridimensional e uso do ecocardiograma intracardíaco compensa o custo e a necessidade de se colocar uma bainha mais calibrosa para a sonda do ecocardiograma, ainda deverá ser mais bem-definido.

A ablação sem fluoroscopia é um grande avanço, e já está pronta para ser implementada em grande escala. Contudo, como ocorre com todo grande avanço na ciência, já aguarda o próximo passo na evolução. Os procedimentos em geral estão sendo realizados progressivamente de formas menos invasivas. Cirurgias abertas são substituídas por procedimentos por cateteres e videolaparoscopia. Na área das arritmias cardíacas, ablações já estão sendo feitas sem a necessidade da colocação de cateteres, mas usando mapeamento por sistemas de eletrodos externos, e ablação por estereotaxia, com radiação por feixe externo (como a radioterapia). Inicialmente desenvolvida e descrita no tratamento das taquicardias ventriculares,1414. Cuculich PS, Schill MR, Kashaniand R, Mutic S, Lang A, Cooper D, et al. Noninvasive cardiac radiation for ablation of ventricular tachycardia. N Engl J Med. 2017; 377(24):2325-36. a técnica agora engatinha também para ser usada na ablação de fibrilação atrial.1515. Qjan P, Azpiri J, Assad J, Gonzales EM, Cordona Ibarra CE, de la Pena C, et al. Noninvasive stereotactic radioablation for the treatment of atrial fibrillation: First-in-man experience. J Arrhythmia.2020;36(1):67-74.

A ablação é terapêutica indispensável e vai se manter como tratamento usual para taquiarritmias. A fluoroscopia, por sua vez, é danosa e vai ser eliminada por procedimentos eletrofisiológicos. O assunto é premente, e o interesse é mundial. É hora de aposentar o avental de chumbo. Aqui, ao contrário do que se costuma popularmente dizer, quanto menos, melhor. E se for zero, melhor ainda.

Referências

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    Rehani MM, Ortiz-Lopez P. Radiation effects in fluoroscopically guided cardiac interventions: Keeping them under control. Int J Cardiol. 2006; 109(2):147-51.
  • 2
    Heidbuchel H, Wittkampf F, Vano E, Ernst S, Schilling RJ, Picano E, et al. Practical ways to reduce radiation dose for patients and staff during device implantations and electrophysiological procedures. Europace. 2014; 16(7):946-64.
  • 3
    Ross AM, Segal J, Borenstein D, Jenkins E, Cho S. Prevalence of spinal disc disease among interventional cardiologists. Am J Cardiol. 1997; 79(1):68-70.
  • 4
    Alvarez M, Bertomeu-Gonzalez V, Arcocha M. Nonfluoroscopic Catheter Ablation. Results From a Prospective Multicenter Registry. Rev Esp Cardiol. 2017; 70(9):699-705.
  • 5
    Chen G, Wang Y, Proietti R, Wang X, Ouyang F, Ma CS, et al. Zero-fluoroscopy approach for ablation of supraventricular tachycardia using the Ensite NavX system: a multicenter experience. BMC Cardiovasc Disord. 2020; 20(1):48.
  • 6
    Ferguson JD, Helms A, Mangrum J, ahapatra S, Mason P, Bilchick K, et al. Catheter ablation of atrial fibrillation without fluoroscopy using intracardiac echocardiography and electroanatomic mapping. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2009 Dec; 2(6):611-9.
  • 7
    Saad EB, Slater C, Oliveira Jr LAI, Santos GV, Dias LC, Camanho LE. Ablação por cateter sem uso de raios x para tratamento de fibrilação atrial e arritmias atriais. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):1015-1026.
  • 8
    Sadek MM, Ramirez FD, Nery PB, Golian M, Redpath CJ, Nair GM, et al. Completely non-fluoroscopic catheter ablation of left atrial arrhythmias and ventricular tachycardia. J Cardiovasc Electrophysiol. 2019; 30(1):78-88.
  • 9
    Reddy VY, Morales G, Ahmed H, Neuzil P, Dukkipati S, Kim S, et al. Catheter ablation of atrial fibrillation without the use of fluoroscopy. Heart Rhythm. 2010; 7(11):1644-53.
  • 10
    Bulava A, Hanis J, Eisenberger M. Catheter ablation of atrial fibrillation using zero-fluoroscopy technique: a randomized trial. Pacing Clin Electrophysiol. 2015; 38(7):797-806.
  • 11
    Johnson A, Mejia-Lopez E, Bilchick K. Catheter ablation of ventricular arrhythmias without fluoroscopy using intracardiac echocardiography and electroanatomic mapping. [abstract] In: 40th Annual Heart Rhythm Scientific Sessions, May 08 November 2019. San Francisco,California.
  • 12
    Guarguagli S, Cazzoli I, Kempny A, Gatzoulius MA, Ernst S. A New Technique for Zero Fluoroscopy Atrial Fibrillation Ablation Without the Use of Intracardiac Echocardiography. JACC Clin Electrophysiol. 2018; 4(12):1647-8.
  • 13
    Weber R, Minners J, Allgeier HJ, Jadidi A, Muller-Edenborn B, Neumann FJ, et al. 3D mapping for the identification of the fossa ovalis in left atrial ablation procedures: a pilot study of a first step towards an electroanatomic-guided transseptal puncture EP Europace. 2020; 22(5):732-8.
  • 14
    Cuculich PS, Schill MR, Kashaniand R, Mutic S, Lang A, Cooper D, et al. Noninvasive cardiac radiation for ablation of ventricular tachycardia. N Engl J Med. 2017; 377(24):2325-36.
  • 15
    Qjan P, Azpiri J, Assad J, Gonzales EM, Cordona Ibarra CE, de la Pena C, et al. Noninvasive stereotactic radioablation for the treatment of atrial fibrillation: First-in-man experience. J Arrhythmia.2020;36(1):67-74.
  • Minieditorial referente ao artigo: Ablação Por Cateter Sem Uso de Fluoroscopia Para Tratamento de Fibrilação Atrial e Arritmias Atriais: Eficácia e Segurança
  • Errata

    Edição de Junho de 2020, vol. 114 (6), págs. 1027-1028
    No Minieditorial “Ablação por Cateter sem Uso de Raios X para Tratamento de Fibrilação Atrial e Arritmias Atriais”, com número de DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20200159, publicado no periódico Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 114(6):1027-1028, na página 1027, alterar o DOI para: https://doi.org/10.36660/abc.20200451.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jun 2020
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