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Epidemiologia das Doenças Cardiovasculares no Brasil: A Verdade Escondida nos Números

Doenças Cardiovasculares/mortalidade; Confiabilidade de Dados/tendências; Sistemas de Informação em Saúde/tendências; Formulação de Políticas; Epidemiologia

Segundo a Agenda 2030 da Organização Mundial de Saúde para o Desenvolvimento Sustentável, existe um comprometimento dos países-membros para uma redução de 30% na mortalidade prematura por doenças não transmissíveis, particularmente as doenças cardiovasculares (DCV) (cardiopatia isquêmica e acidente vascular cerebral — AVC), câncer, doença respiratória e diabetes.11. NCD Countdown 2030 Collaborators. NCD countdown 2030: worldwide trends in non-communicable disease mortality and progress towards Sustainable Development Goal target 3.4. Lancet 2018;392(10152):1072-88. Essas condições são responsáveis por aproximadamente 41 milhões de mortes por ano, equivalente a 71% das mortes no mundo.22. World Health Organization. (WHO). Global health estimates 2016: deaths by cause, age, sex, by country and by region, 2000-2016. World Health Organization. Geneva; 2018. [Internet] [Cited in 2020 Apr 12] Available from:http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/estimates/en/
http://www.who.int/healthinfo/global_bur...
Para direcionar estratégias de enfrentamento dessas doenças, informações provenientes de sistemas confiáveis, transparentes e reprodutíveis são essenciais. A análise de tendências de mortalidade é crucial para o desenvolvimento efetivo de políticas de saúde, seguridade social, investimentos, entre outras.

A iniciativa dos estudos do Global Burden of Disease (GBD) vem ao encontro dessa agenda, tendo como objetivo aprimorar o entendimento das doenças através da análise de dados disponíveis sobre a incidência, prevalência e mortalidade de modo consistente, atualizado, global, em âmbito regional e nacional.33. Reddy K.S. Global Burden of Disease Study 2015 provides GPS for global health 2030. Lancet. 2016;388:1448–9. Ao longo dos últimos anos, esta proposta metodológica trouxe informações práticas para o enfrentamento das doenças ao redor do mundo, vencendo desafios inerentes à metodologia, particularmente a heterogeneidade dos registros e dados oriundos dos diversos países. 44. Sridhar D. Making the SDGs useful: a Herculean task. Lancet 2016; 388(10053): 1453–4. , 55. Roth GA, Johnson C, Abajobir A, Abd-Allah F, Abera SF et al. Global, Regional, and National Burden of Cardiovascular Diseases for 10 Causes, 1990 to 2015. J Am Coll Cardiol. 2017; 70(1): 1–25. Através de dados provenientes de múltiplas fontes (registros de saúde, coortes e ensaios prospectivos, dados administrativos, análise verbal, entre outros) e aplicando modelos estatísticos complexos, a iniciativa tem fornecido dados por sexo, idade e país, de mais de 310 doenças e agravos, com aprimoramento metodológico constante. 66. The Lancet. GBD 2015: from big data to meaningful change. Lancet 2016; 388(10053): 1447.

A importância dessas novas métricas são apontadas no artigo de Malta et al.77. Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro AL. Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):152-160. Os autores compararam séries históricas de mortalidade por DCV entre 2000 e 2017, provenientes de três estimativas: dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) brutos, corrigidos para causas mal definidas e sub-registros e aquelas aplicadas pelo GBD. Ao longo desse período, em todas as bases, houve uma redução da mortalidade por DCV no Brasil, de 27% no SIM bruto e 28% pelo GBD. Entretanto, subanálises por unidades da federação mostraram como os dados do SIM bruto podem ser equivocados. Segundo registro do SIM, em 12 estados, houve aumento do número de mortes atribuídas às DCV, enquanto pelas estimativas do GBD, em todos estados, houve redução da mortalidade por essas doenças. Fato este relevante para o monitoramento das ações de prevenção e controle pelos gestores e pela sociedade. Entretanto, o ponto a ser destacado é ainda o percentual elevado em alguns estados de preenchimento inadequado de registros de óbitos, causas mal definidas, sendo, em 2017, 42% ainda classificados como códigos errados ( garbage code ).

A metodologia empregada pelo GBD visa padronizar internacionalmente as causas de morte, que na sua origem são estabelecidas em um registro único de um médico. Devido à ampla variabilidade nesses aspectos, tratamento com algoritmos e modelagem permitem que uma proporção de causas de morte mal definidas ou classificadas como outras sejam realocadas para causas mais prováveis.88. BrantI LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, IJM Bensenõr, Malta DC, et al. Variations and particularities in cardiovascular disease mortality in Brazil and Brazilian states in 1990 and 2015: estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol . 2017; 20 (Suppl 1): 116-28. Ponto sensível da metodologia é a inferência para alguns códigos, denominados “ garbage codes ”. Alguns são intuitivos, como causas mal definidas ou sintomas; outros são sujeitos a interpretação e arbitrariedade. Por exemplo, insuficiência cardíaca é compreendida como causa intermediária de morte, e as mortes atribuídas a esse código são reclassificadas através de modelo de regressão considerando idade, sexo e localização. A precisão e acurácia desses ajustes a cada realidade é algo a ser explorado. Certamente, a metodologia do GBD nos traz luz para desvendar os casos obscuros de registro. Entretanto, o lado obscuro existe e precisa ser continuamente trabalhado. Para confiarmos mais nessas estimativas, devemos buscar melhor qualidade no registro de base original.44. Sridhar D. Making the SDGs useful: a Herculean task. Lancet 2016; 388(10053): 1453–4. , 88. BrantI LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, IJM Bensenõr, Malta DC, et al. Variations and particularities in cardiovascular disease mortality in Brazil and Brazilian states in 1990 and 2015: estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol . 2017; 20 (Suppl 1): 116-28.

O Brasil é um país de dimensões continentais, com uma das maiores desigualdades socioeconômicas, uma situação que inevitavelmente está relacionada com maior mortalidade por doenças não transmissíveis, especialmente DCV.99. Malta DC C, França E, Abreu DMX, Perillo RD, Salmen M C, Teixeira R A, et al . Mortality due to noncommunicable diseases in Brazil, 1990 to 2015, according to estimates from the Global Burden of Disease study. Sao Paulo Med. J. 2017;135(3):213-21. O envelhecimento da população, globalização, urbanização com aumento da obesidade e inatividade física são fatores determinantes desses números. Nas últimas décadas, felizmente muito foi alcançado e reduzimos de modo expressivo a mortalidade por essas condições em todos os estados. Entretanto, sabemos que há muito a ser feito; existem desigualdades imensas nesses números, parte expressiva relacionada a fatores como baixo nível de estrutura e recursos na saúde, baixo nível socioeconômico e cultural da população. O mais preocupante é saber que em condições de recursos escassos, os custos com tratamento das DCV acabam drenando mais ainda os recursos existentes, gerando um círculo vicioso de mais pobreza e atraso para o crescimento.

Nosso desafio é como levar esses dados para além da academia e dos cientistas. Como fazer que as estimativas de prevalência, incidência e fatores de risco das doenças cardiovasculares sejam empregadas por gestores e políticos para tomada de decisão?44. Sridhar D. Making the SDGs useful: a Herculean task. Lancet 2016; 388(10053): 1453–4. , 77. Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro AL. Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):152-160. O primeiro passo, dado por Malta et al.,77. Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro AL. Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):152-160. é transformar registros existentes em informações relevantes e válidas que possam nortear ações objetivas de controle das DCV. A aceitação de que registros brutos locais são insuficientes para este propósito é extremamente relevante. Por outro lado, é fundamental que estes dados sejam empregados por gestores, tomadores de decisão, organismos não governamentais e certamente pela comunidade médica, para entender melhor as doenças da nossa população e reavaliar esforços, identificar ações prioritárias para combate e melhorias para a saúde cardiovascular no Brasil.

Referências

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    NCD Countdown 2030 Collaborators. NCD countdown 2030: worldwide trends in non-communicable disease mortality and progress towards Sustainable Development Goal target 3.4. Lancet 2018;392(10152):1072-88.
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    World Health Organization. (WHO). Global health estimates 2016: deaths by cause, age, sex, by country and by region, 2000-2016. World Health Organization. Geneva; 2018. [Internet] [Cited in 2020 Apr 12] Available from:http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/estimates/en/
    » http://www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/estimates/en/
  • 3
    Reddy K.S. Global Burden of Disease Study 2015 provides GPS for global health 2030. Lancet. 2016;388:1448–9.
  • 4
    Sridhar D. Making the SDGs useful: a Herculean task. Lancet 2016; 388(10053): 1453–4.
  • 5
    Roth GA, Johnson C, Abajobir A, Abd-Allah F, Abera SF et al. Global, Regional, and National Burden of Cardiovascular Diseases for 10 Causes, 1990 to 2015. J Am Coll Cardiol. 2017; 70(1): 1–25.
  • 6
    The Lancet. GBD 2015: from big data to meaningful change. Lancet 2016; 388(10053): 1447.
  • 7
    Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro AL. Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):152-160.
  • 8
    BrantI LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, IJM Bensenõr, Malta DC, et al. Variations and particularities in cardiovascular disease mortality in Brazil and Brazilian states in 1990 and 2015: estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol . 2017; 20 (Suppl 1): 116-28.
  • 9
    Malta DC C, França E, Abreu DMX, Perillo RD, Salmen M C, Teixeira R A, et al . Mortality due to noncommunicable diseases in Brazil, 1990 to 2015, according to estimates from the Global Burden of Disease study. Sao Paulo Med. J. 2017;135(3):213-21.
  • Minieditorial referente ao artigo: Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Ago 2020
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