Acessibilidade / Reportar erro

A Galectina-3 (Biomarcador de Fibrose Miocárdica) Prediz a Progressão na Doença de Chagas?

Galectina 3; Apoptose; Fibrose Endomiocárdica; Doença de Chagas; Biomarcadores

Nas últimas décadas, a epidemiologia da Doença de Chagas (DCh) mudou significativamente, como consequência da urbanização e da migração.11. Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, RibeiroALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burdenof Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018; 12(6):e0006559. No Brasil, até o momento, é a doença negligenciada com a maior carga, da qual ~30% dos indivíduos evoluirá para a estágio sintomático de ruptura do tecido em 20 a 30 anos após a infecção22. Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverría LE et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018 Sep 18;138(12):e169-e209. (cerca de 2% ao ano evoluem da forma indeterminada da doença para a forma cardíaca, de acordo com um estudo atual).33. Sabino EC, Ribeiro AL, Salemi VM, Di Lorenzo OC, Antunes AP, Menezes MM, et al. Ten-year incidence of Chagas cardiomyopathy among asymptomatic Trypanosoma cruzi-seropositive former blood donors. Circulation 2013; 127(10):1105-15.

A inflamação miocárdica persistente e a fibrose representam as principais características patológicas da DCh que estariam relacionadas com a sua progressão.44. Chaves AT, Menezes CAS, Costa HS, Nunes MCP, Rocha MOC. Myocardial fibrosis in chagas disease and molecules related to fibrosis. Parasite Immunol 2019; 41(10): e12663.,55. Bonney KM, Luthringer DJ, Kim SA, Garg NJ, Engman DM. Pathology and Pathogenesis of Chagas Heart Disease. Annu Rev Pathol 2019; 14: 421-47. O uso de biomarcadores de fibrose miocárdica para prever a progressão em pacientes com função normal ou quase normal do VE é certamente importante na DCh, onde fatores de risco tradicionais, como a FEVE, podem não ser tão úteis. No entanto, estudos têm demonstrado o valor dos biomarcadores de fibrose miocárdica na progressão da patogênese da DCh.66. L. Giordanengo L, Gea S, Barbieri G, Rabinovich GA. Anti-galectin-1 autoantibodies in human Trypanosoma cruzi infection: differential expression of this β- galactoside-binding protein in cardiac Chagas’ disease. Clin. Exp. Immunol 2001; 124(2):266–73.

Nesta edição, Fernandes et al.,77. Fernandes F, Moreira CHV, Oliveira LC, Souza-Basqueira M, Ianni BM, di Lorenzo C, et al. Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):248-256. apresentam dados que contribuem para o nosso entendimento relacionado à carga da fibrose miocárdica em diferentes estágios da DCh. Para tanto, os autores avaliaram a presença (ou não) da Galectina-3 (Gal-3), um biomarcador de fibrose miocárdica, em diferentes estágios da doença comparados à um grupo controle e se ela está associada a mortalidade ou necessidade de transplante de coração no estágio mais avançado da doença. Para esse propósito, foram realizados 2 estudos com desenhos distintos. Inicialmente, a fim de estratificar os grupos pelo status de cardiomiopatia chagásica (CC) utilizando um desenho de estudo transversal, 330 pacientes soropositivos para T. cruzi (187 sem cardiomiopatia; 46 com CC/ECG anormal e FEVE >50%; e 97 com CC/ECG anormal com FEVE <50%) foram incluídos, além de 153 controles soronegativos (pareados por idade e sexo). Desses pacientes soropositivos, 97 com formas cardíacas mais graves de CC fizeram parte do estudo longitudinal prospectivo censurado até o evento (mortalidade ou necessidade de transplante cardíaco).

Os resultados foram resumidos e analisados nos diferentes grupos. A mediana de idade foi de 49 ± 9,2 anos, com mediana de seguimento de 58 meses. Pacientes com doença de Chagas sem cardiomiopatia (n = 187) e aqueles com cardiomiopatia e FEVE >50% (n = 46) tinham níveis de Gal-3 semelhantes aos de controles saudáveis (n = 153), mas aqueles com cardiomiopatia e FEVE <50% (n = 97) apresentaram níveis de Gal-3 significativamente maiores do que os controles saudáveis (p = 0,0001). Uma correlação significativa foi observada entre os níveis de Gal-3 e FEVE (rs = -0,16, p = 0,001). Foram observados eventos em 28 pacientes (29%). Em pacientes com cardiopatia e FEVE <50%, o modelo de regressão linear ajustado mostrou uma associação significativa entre os níveis de Gal-3 e morte ou transplante cardíaco durante um seguimento de cinco anos (Hazard ratio - HR 3,11; IC 95% = 1,21– 8,04; p = 0,019).

Os autores concluíram que, em pacientes com a forma cardíaca, níveis mais elevados de Gal-3 estavam significativamente associados a formas graves da doença e a uma maior taxa de mortalidade em longo prazo, o que significa que podem ser utilizados de forma eficaz para identificar pacientes de alto risco.

Entretanto, os principais achados de Fernandes et al.,77. Fernandes F, Moreira CHV, Oliveira LC, Souza-Basqueira M, Ianni BM, di Lorenzo C, et al. Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):248-256. foram os seguintes: primeiro, os níveis de Gal-3 não mostraram nenhuma diferença entre indivíduos normais e pacientes com DCh sem cardiomiopatia e com cardiomiopatia / FEVE >50%. Esta observação sugere que os níveis de Gal-3 nesta amostra de pacientes não puderam ser utilizados como um marcador de progressão da doença miocárdica. O segundo achado importante deste estudo foi que os níveis mais elevados de Gal-3 estavam significativamente associados às formas graves da doença e a uma maior taxa de mortalidade em longo prazo. Esse resultado não é exclusivo da DCh, pois achados semelhantes foram observados nos estudos de Nagase et al.88. Nagase H, Visse R, Murphy G. Structure and function of matrix metalloproteinases and TIMPs. Cardiovasc Res 2006; 69(3):562-73. e Spinale.99. Spinale FG. Myocardial matrix remodeling and the matrix metalloproteinases: influence on cardiac form and function. Physiol Rev 2007; 87(4):1285-342.

A interpretação desses resultados deve considerar o pequeno número de pacientes com seguimento de cinco anos e experiência em centro único já citados pelos autores. No grupo de pacientes com cardiomiopatia e FEVE <50%, possivelmente foram utilizados diferentes graus de comprometimento miocárdico, já que havia um amplo espectro de FEVE (variando de 20% a 40%) levando a diferentes perfis de pacientes incluídos nos grupos.77. Fernandes F, Moreira CHV, Oliveira LC, Souza-Basqueira M, Ianni BM, di Lorenzo C, et al. Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):248-256. É evidente que a taxa de eventos foi baixa e significativamente inferior à da coorte de alto risco de Rassi (taxa de mortalidade anual de 5,8% vs. 12,6%); assim, os resultados das análises multivariadas, que incluíram cinco variáveis independentes, devem ser considerados com cautela devido à provável supersaturação do modelo.

Um dos maiores desafios da DCh é a dificuldade da identificação, em um estágio inicial, os indivíduos infectados que farão parte dos 20% a 30% que podem desenvolver cardiomiopatia. Infelizmente, no momento, não há como prever essa possível progressão. Assim, encontrar biomarcadores confiáveis de progressão da doença significaria o maior salto na história da DCh desde sua descoberta em 1909 pelo Dr. Carlos Chagas. Por esse motivo, existem inúmeros grupos de pesquisa que se dedicam à busca de biomarcadores derivados do hospedeiro e do T. cruzi .1010. Linhares-Lacerda L, Granato A, Gomes-Neto JF, Conde L, Freire-de-Lima L, de Freitas EO, et al. Circulating Plasma MicroRNA-208a as Potential Biomarker of Chronic Indeterminate Phase of Chagas Disease Front Microbiol. 2018 Mar 6;9:269. Referências Isso significaria um avanço no manejo da DCh.

Referências

  • 1
    Martins-Melo FR, Carneiro M, Ramos Jr AN, Heukelbach J, RibeiroALP, Werneck GL. The burden of Neglected Tropical Diseases in Brazil, 1990-2016: A subnational analysis from the Global Burdenof Disease Study 2016. PLoS Negl Trop Dis. 2018; 12(6):e0006559.
  • 2
    Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverría LE et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018 Sep 18;138(12):e169-e209.
  • 3
    Sabino EC, Ribeiro AL, Salemi VM, Di Lorenzo OC, Antunes AP, Menezes MM, et al. Ten-year incidence of Chagas cardiomyopathy among asymptomatic Trypanosoma cruzi-seropositive former blood donors. Circulation 2013; 127(10):1105-15.
  • 4
    Chaves AT, Menezes CAS, Costa HS, Nunes MCP, Rocha MOC. Myocardial fibrosis in chagas disease and molecules related to fibrosis. Parasite Immunol 2019; 41(10): e12663.
  • 5
    Bonney KM, Luthringer DJ, Kim SA, Garg NJ, Engman DM. Pathology and Pathogenesis of Chagas Heart Disease. Annu Rev Pathol 2019; 14: 421-47.
  • 6
    L. Giordanengo L, Gea S, Barbieri G, Rabinovich GA. Anti-galectin-1 autoantibodies in human Trypanosoma cruzi infection: differential expression of this β- galactoside-binding protein in cardiac Chagas’ disease. Clin. Exp. Immunol 2001; 124(2):266–73.
  • 7
    Fernandes F, Moreira CHV, Oliveira LC, Souza-Basqueira M, Ianni BM, di Lorenzo C, et al. Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):248-256.
  • 8
    Nagase H, Visse R, Murphy G. Structure and function of matrix metalloproteinases and TIMPs. Cardiovasc Res 2006; 69(3):562-73.
  • 9
    Spinale FG. Myocardial matrix remodeling and the matrix metalloproteinases: influence on cardiac form and function. Physiol Rev 2007; 87(4):1285-342.
  • 10
    Linhares-Lacerda L, Granato A, Gomes-Neto JF, Conde L, Freire-de-Lima L, de Freitas EO, et al. Circulating Plasma MicroRNA-208a as Potential Biomarker of Chronic Indeterminate Phase of Chagas Disease Front Microbiol. 2018 Mar 6;9:269. Referências
  • Minieditorial referente ao artigo: Galectina-3 Associada a Formas Graves e Mortalidade em Longo Prazo em Pacientes com Doença de Chagas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Fev 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br