Parada Cardiorrespiratória Extra-Hospitalar durante a Pandemia da Doença por Coronavírus 2019 (COVID-19) no Brasil: A Mortalidade Oculta

Resumo

O mundo mudou em apenas alguns meses após o surgimento da doença do novo coronavírus 2019 (COVID-19), causada por um betacoronavírus denominado síndrome respiratória aguda grave por coronavírus 2 (SARS-CoV-2). A COVID-19 foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. O Brasil apresenta atualmente o segundo maior índice de mortalidade por COVID-19 do mundo, perdendo apenas para os EUA. A pandemia da COVID-19 está se espalhando rapidamente pelo mundo, com mais de 181 países afetados. O presente editorial se refere ao artigo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia: “Aumento de óbitos domiciliares devido a parada cardiorrespiratória em tempos de pandemia de COVID-19”¹ Seus principais resultados mostram um aumento gradual na taxa de paradas cardiorrespiratórias extra-hospitalares durante a pandemia da doença por coronavírus 2019 (COVID-19) na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Seus dados demonstram um aumento proporcional de 33% dos óbitos domiciliares em março de 2020 em relação aos períodos anteriores. O estudo é o primeiro artigo brasileiro a demonstrar a mesma tendência observada em outros países.

COVID-19/complicações; Betacoronavírus; Mortalidade; Pandemia; Parada Cardíaca; Fatores de Risco; Idoso; Doenças Cardiovasculares; Pneumopatias

Abstract

The world changed in just a few months after the emergence of the novel coronavirus disease 2019 (COVID-19), caused by a beta coronavirus named severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2). COVID-19 was declared a pandemic by the World Health Organization (WHO) on March 11, 2020. Brazil currently has the world’s second-highest COVID-19 death toll, second only to the USA. The COVID-19 pandemic is spreading fast in the world with more than 181 countries affected. This editorial refers to the article published in Arquivos Brasileiros de Cardiologia: “Increase in home deaths due to cardiorespiratory arrest in times of COVID-19 pandemic.”¹ Their main results show a gradual increase in the rate of out-of-hospital cardiac arrest during the Coronavirus disease 2019 (COVID-19) pandemic in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. Their data demonstrate a proportional increase of 33% of home deaths in March 2020 compared to previous periods. Their study is the first Brazilian paper to demonstrate the same trend observed in other countries.

COVID-19/complications; Betacoronavirus; Mortality; Pandemics; Heart Arrest; Risk Factors, Elderly; Cardiovascular Diseases, Pneumopathies

“Em algum lugar, algo incrível está esperando para ser descoberto”.

Carl Sagan

Meu interesse pessoal pela Ciência deve ser creditado a Carl Sagan. Durante minha juventude, tive a oportunidade de assistir seu programa de TV “Cosmos” e isso mudou tudo. Hoje, a Ciência é uma das principais prioridades da humanidade. O mundo mudou em apenas alguns meses após o surgimento da doença do novo coronavírus 2019 (COVID-19), causada por um betacoronavírus denominado síndrome respiratória aguda grave por coronavírus 2 (SARS-CoV-2). A COVID-19 foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020.² O Brasil apresenta atualmente o segundo maior índice de mortalidade por COVID-19 do mundo, perdendo apenas para os EUA. A pandemia de COVID-19 está se espalhando rapidamente pelo mundo, com mais de 181 países afetados.

Na maioria dos pacientes, a COVID-19 é uma doença leve com alguns sintomas respiratórios. A COVID-19 é mais grave e fatal entre pacientes com fatores de risco cardiovascular ou doenças preexistentes.³ O Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças publicou uma pesquisa que demonstrou que entre os pacientes com diagnóstico de COVID-19, 13% tinham hipertensão, 5% tinham diabetes mellitus e 4% tinham histórico de doença cardiovascular. Porém, na mesma coorte, entre os pacientes que não sobreviveram, 40% eram hipertensos, 20% eram diabéticos e 22% apresentavam doenças cardiovasculares preexistentes.⁴ Pacientes com doenças cardiovasculares apresentaram a maior taxa de letalidade (10,5%). Os fatores de risco de eventos cardíacos após a pneumonia por COVID-19 incluem idade avançada, doenças cardiovasculares pré-existentes e maior gravidade da pneumonia na apresentação.² Doenças coronarianas também estão associadas a eventos cardíacos agudos e desfechos desfavoráveis na influenza e outras infecções virais respiratórias.⁵,⁶ A COVID-19 também demonstrou danos ao sistema cardiovascular com manifestações diversas como lesão miocárdica, infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca, síndrome de Takotsubo (ST), arritmias, miocardite e choque.⁷ Não apenas as condições cardiovasculares crônicas como hipertensão ou insuficiência cardíaca são relevantes para os desfechos da COVID-19, mas também a idade, o estado imunológico do hospedeiro e o efeito de medicamentos para doenças cardiovasculares como antitrombóticos ou anti-hipertensivos.⁸ A Figura 1 demonstra a interação entre doenças cardiovasculares/fatores de risco e COVID-19.

Figura 1
– Interação entre doenças cardiovasculares/fatores de risco e COVID-19. Comorbidades cardiovasculares como hipertensão e doença arterial coronariana estão associadas a maior suscetibilidade e maior mortalidade em pacientes com COVID-19. A COVID-19 também está associada a manifestações cardiovasculares, incluindo lesão miocárdica, miocardite, arritmias, síndrome coronariana aguda e tromboembolismo.

Os danos que a COVID-19 causa no sistema cardiovascular provavelmente são multifatoriais e podem resultar de um desequilíbrio entre alta demanda metabólica e baixa reserva cardíaca, inflamação sistêmica e trombogênese, além de dano cardíaco direto provocado pelo vírus.⁷ As complicações do sistema cardiovascular ocorrem principalmente em pacientes com fatores de risco cardiovascular (idade avançada, hipertensão e diabetes) ou doenças cardiovasculares preexistentes. Existem poucos relatos de pacientes com COVID-19 que apresentaram supradesnivelamento agudo do segmento ST e, para esses pacientes, as alterações ECG estavam presentes nas derivações inferiores. Em cada caso, o diagnóstico de miocardite foi apoiado por troponinas cardíacas elevadas, diminuição moderada da fração de ejeção do ventrículo esquerdo e ausência de doença arterial coronariana com limitação de fluxo por angiocoronariografia invasiva.⁹ Os achados da autópsia corroboram o conceito de que a patogênese da COVID-19 grave envolve lesão direta induzida por vírus em múltiplos órgãos, incluindo coração e pulmões, juntamente com as consequências de um estado pró-coagulante com coagulopatia.¹⁰ A Tabela 1 lista as consequências cardiovasculares mais frequentes da COVID-19 descritas na literatura.

Tabela 1
– Consequências cardiovasculares da COVID-19

Complicação Cardiovascular	Frequência	Implicações
Lesão miocárdica e miocardite	7–20% dos pacientes com COVID-19	A lesão miocárdica está associada a um aumento de 5 vezes na necessidade de ventilação mecânica invasiva e a um aumento de 11 vezes na mortalidade
Síndrome coronariana aguda (SCA)	Menos de 5% dos pacientes com COVID-19	Redução nas hospitalizações por SCA e redução de 40% no infarto do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST durante a pandemia. Essa redução nos casos de SCA está associada a um aumento semelhante nas paradas cardiorrespiratórias extra-hospitalares.
Insuficiência cardíaca	Incidência de 24% em todos os pacientes com COVID-19 e 49% em pacientes que vieram a óbito	A insuficiência cardíaca pode contribuir para a insuficiência respiratória em pacientes com SDRA. O manejo adequado da IC é obrigatório para reduzir a mortalidade.
Arritmias e parada cardiorrespiratória súbita	Arritmias malignas como taquicardia ventricular e fibrilação podem ocorrer em pacientes com níveis elevados de troponina T	Taquicardia atrial e ventricular e fibrilação podem ser desencadeadas por lesão miocárdica, causas sistêmicas ou interações medicamentosas. É necessária atenção especial ao prolongamento do intervalo QT induzido por drogas
Alterações de coagulação e trombose	Níveis elevados de dímero-d (>0,5 mg/l) podem ser encontrados em 60% dos indivíduos com doenças graves	Não se tem conhecimento do regime ideal de anticoagulação para prevenir eventos tromboembólicos, mas, geralmente, a anticoagulação é prescrita empiricamente. Recomendações sobre tratamento antitrombótico e ICP para síndromes coronarianas agudas devem ser mantidas durante o tratamento da COVID-19

• ¹¹¹²

Em relação à epidemiologia da doença arterial coronariana, alguns estudos mostraram diminuição na incidência de hospitalização por infarto agudo do miocárdio durante a pandemia de Covid-19. Solomon et al.,¹³ observaram que as taxas semanais de hospitalização por infarto agudo do miocárdio diminuíram em até 48% durante o período da COVID-19(12). De Filippo et al.,¹⁴ encontraram diminuição semelhante na hospitalização por síndrome coronariana aguda em 15 hospitais no norte da Itália.¹⁴ Essa diminuição está parcialmente relacionada à ansiedade e ao medo que muitos pacientes demonstraram durante os meses iniciais da pandemia de contrair a COVID-19 nas unidades de emergência. Devido a essa diminuição nas internações por infarto do miocárdio, observou-se um aumento transitório de paradas cardiorrespiratórias extra-hospitalares (PCEH) em comparação ao mesmo período nos anos anteriores à pandemia.¹⁵ Esse aumento de casos de PCEH é diretamente atribuível às infecções por COVID-19 e ao possível aumento de pacientes com síndrome coronariana aguda que não se dirigiram imediatamente aos serviços de emergência.

Devemos parabenizar os autores do artigo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia.¹ Seus principais achados mostram um aumento gradual na taxa de paradas cardiorrespiratórias extra-hospitalares durante a pandemia de COVID-19 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Seus dados demonstram um aumento proporcional de 33% nos óbitos domiciliares em março de 2020 em relação aos períodos anteriores. O estudo é o primeiro artigo brasileiro a demonstrar a mesma tendência observada em outros países.¹⁴,¹⁵ As principais limitações do estudo são: curto período de observação, amostra de uma única região metropolitana brasileira e a falta de informações completas sobre comorbidades em cerca de 40% dos casos. No entanto, esses dados não invalidam as principais mensagens do estudo, que são: (1) a necessidade de organizar o sistema de saúde para lidar com os casos de doenças agudas durante a pandemia de COVID-19, (2) conscientizar a população sobre a necessidade de buscar cuidados continuados de saúde e (3) a busca por melhores tratamentos e prevenção.

A aprovação de vacinas eficazes para a prevenção da COVID-19 e o início do programa nacional de imunização contra a COVID-19 em janeiro de 2021 nos enchem de esperança e otimismo.¹⁶,¹⁷ Porém, enquanto a vacinação não estiver amplamente disponível para a população, é necessário dar continuidade a medidas eficazes e cientificamente comprovadas de distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos. Só então a pandemia de COVID-19 será uma página da história e não mais uma dura realidade.

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• Minieditorial referente ao artigo: Aumento de Óbitos Domiciliares devido a Parada Cardiorrespiratória em Tempos de Pandemia de COVID-19

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  01 Mar 2021
• Data do Fascículo
  Fev 2021