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Equidade entre Sexos no Acesso à Reperfusão no Infarto Agudo do Miocárdio: Um Longo Caminho a ser Percorrido

Palavras-chave
Isquemia Miocárdica; Infarto do Miocárdio; Revascularização Miocárdica; Reperfusão Miocárdica; Mulheres; Homens

A doença isquêmica do miocárdio é a principal causa de morte no mundo. Sua apresentação de maior gravidade é o infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST), que corresponde a cerca de 1/3 das apresentações11. Soeiro am, silva p, roque eac, bossa as, biselli b, leal t et al. Prognostic differences between men and women with acute coronary syndrome. Data from a brazilian registry. Arq bras cardiol. 2018; 111(5): 648-53. e tem na reperfusão precoce a principal estratégia para a redução da mortalidade. Apesar do amplo conhecimento histórico das diferenças relacionadas ao sexo no tratamento e prognóstico de pacientes que apresentam doença cardíaca isquêmica em caráter agudo, os homens, além de terem acesso mais precoce aos sistemas de saúde, são mais propensos a receber angiografia coronária diagnóstica e revascularização de urgência do que as mulheres.22. Radovanovic d, erne p, urban p, bertel o, rickli h, gaspoz jm et al. Gender differences in management and outcomes in patients with acute coronary syndromes: results on 20.290 patients from the amis plus registry. Heart. 2007; 93(11): 1.369-75.

3. Soares gp. Analysis of a population-based registry of hospitalizations for acute myocardial infarction. Arq bras cardiol. 2020; 115(5): 925-6.
-44. Alves l, polanczyk ca. Hospitalization for acute myocardial infarction: a population-based registry. Arq bras cardiol. 2020; 115(5): 916-24. O artigo “Acesso às terapias de reperfusão e mortalidade em mulheres com infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento St: Registro VICTIM55. Oliveira JC, Barros MPS, Barreto IDC, Silva Filho RC, Andrade VA, Oliveira AM et al. Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(4):695-703.” mostra detalhadamente esta diferença na realidade brasileira.

Ao avaliar 878 pacientes admitidos com IAMCSST em Sergipe, estado do Nordeste brasileiro, constatou-se que as mulheres foram menos frequentemente submetidas às estratégias de reperfusão quando comparadas aos homens, tanto em intervenções coronarianas percutâneas (ICP) de urgência (44% x 54,5%; p = 0,003) quanto em fibrinólise (1,7% x 2,6%; p = 0,422). Tal realidade está em consonância com os dados de outros estudos prévios realizados sobre o tema em diferentes cenários (Tabela 1). No registro VICTIM,55. Oliveira JC, Barros MPS, Barreto IDC, Silva Filho RC, Andrade VA, Oliveira AM et al. Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(4):695-703. foi observada maior mortalidade hospitalar em pacientes do sexo feminino (16,1% x 6,7%; p < 0,001), provavelmente como consequência deste menor acesso a terapias de reperfusão. Tais dados são concordantes com revisões sistemáticas da literatura sobre o tema.66. Van der meer mg, nathoe hm, van der graaf y, doevendans pa, appelman y. Worse outcome in women with stemi: a systematic review of prognostic studies. Eur j clin invest. 2015; 45(2): 226-35.

Tabela 1
Acesso às terapias de reperfusão no infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST, por sexo

Seria a demora pelo pedido de socorro um dos motivos pelos quais as mulheres seriam menos submetidas às terapias de revascularização? O estudo em questão demonstrou que este parece não ter sido o problema em Sergipe, sendo o tempo do chamado por ajuda após início dos sintomas estatisticamente similar entre os gêneros. No entanto, as pacientes do sexo feminino tiveram maior atraso no percurso entre o hospital primário e a remoção para uma unidade com infraestrutura para a reperfusão percutânea (atraso de transferência). Tais dados diferem, em parte, dos achados em recente estudo na Itália. No país europeu, o tempo médio do início dos sintomas até a apresentação no hospital foi maior para mulheres (280 x 240 minutos), em que apenas 23,2% das mulheres x 29,1% dos homens apresentavam atraso menor que 120 minutos até a admissão (p = 0,002).77. Cenko e, van der schaar m, yoon j, kedev s, valvukis m, vasiljevic z et al. Sex-specific treatment effects after primary percutaneous intervention: a study on coronary blood flow and delay to hospital presentation. J am heart assoc. 2019; 8(4): e011190. Assim como no estudo VICTIM, houve impacto sobre a mortalidade: nos casos com atraso igual ou maior que 120 minutos, as taxas de mortalidade foram maiores entre as mulheres (5,5% x 2,8%), ao passo nos casos com apresentação menor que 120 minutos, a mortalidade foi consideravelmente mais baixa e estatisticamente similar entre sexos (mulheres 2,0% x homens 1,6%).77. Cenko e, van der schaar m, yoon j, kedev s, valvukis m, vasiljevic z et al. Sex-specific treatment effects after primary percutaneous intervention: a study on coronary blood flow and delay to hospital presentation. J am heart assoc. 2019; 8(4): e011190.

Além disso, o presente artigo observou que o IAMCSST tende a acometer mulheres com idade mais avançada (> 63 anos) e com maior número de fatores de risco em comparação aos homens.55. Oliveira JC, Barros MPS, Barreto IDC, Silva Filho RC, Andrade VA, Oliveira AM et al. Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(4):695-703. Como demonstrado em publicação prévia com dados do Brasil, as mulheres também apresentam um maior nível de estresse, o que pode potencializar o risco de eventos agudos.88. Schmidt k, lima ads, schmitt kr, moraes ma, schmidt mm. Stress in women with acute myocardial infarction: a closer look. Arq bras cardiol. 2020; 115(4): 649-57. Padrão semelhante foi observado em estudos na Austrália e Itália, eles mostraram que as mulheres são mais propícias a apresentarem IAMCSST com idade superior e maior prevalência de hipertensão, diabetes e/ou hipercolesterolemia, o que contrasta com menores taxas de tabagismo.77. Cenko e, van der schaar m, yoon j, kedev s, valvukis m, vasiljevic z et al. Sex-specific treatment effects after primary percutaneous intervention: a study on coronary blood flow and delay to hospital presentation. J am heart assoc. 2019; 8(4): e011190.,99. Worrall-carter l, mcevedy s, wilson a, rahman ma. Gender differences in presentation, coronary intervention, and outcomes of 28.985 acute coronary syndrome patients in victoria, australia. Womens health issues. 2016; 26(1): 14-20. Nestas publicações questiona-se se a subestimação do risco cardiovascular feminino pode ter resultado em tratamentos mais conservadores, contribuindo para desfechos negativos.77. Cenko e, van der schaar m, yoon j, kedev s, valvukis m, vasiljevic z et al. Sex-specific treatment effects after primary percutaneous intervention: a study on coronary blood flow and delay to hospital presentation. J am heart assoc. 2019; 8(4): e011190.,99. Worrall-carter l, mcevedy s, wilson a, rahman ma. Gender differences in presentation, coronary intervention, and outcomes of 28.985 acute coronary syndrome patients in victoria, australia. Womens health issues. 2016; 26(1): 14-20. De modo semelhante, outros autores interrogam se a própria idade avançada das pacientes, associada ao maior número de comorbidades e ao mesmo tempo a apresentações clínicas menos típicas, não estariam influenciando a opção pelo tratamento conservador em pacientes do sexo feminino.1010. Dey s, flather md, devlin g, brieger d, gurfinkel ep, steg pg et al. Sex-related differences in the presentation, treatment and outcomes among patients with acute coronary syndromes: the global registry of acute coronary events. Heart. 2009; 95(1): 20-6.,1111. Shaw lj, miller dd, romeis jc, kargl d, younis lt, chaitman br. Gender differences in the noninvasive evaluation and management of patients with suspected coronary artery disease. Ann intern med. 1994; 120(7): 559-66.

Neste contexto, os dados do estudo VICTIM também chamam atenção para a importância de um menor limiar de suspeição ao solicitar exames e indicar procedimentos invasivos para pacientes do sexo feminino.55. Oliveira JC, Barros MPS, Barreto IDC, Silva Filho RC, Andrade VA, Oliveira AM et al. Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(4):695-703. Assim como demonstrado em estudo suíço com 51.725 pacientes durante um período de 19 anos (1997-2016), a mortalidade intra-hospitalar diminuiu significativamente de 9,8% para 5,5% em homens e de 18,3% para 6,9% nas mulheres como resultado do aumento da indicação de terapias de reperfusão (trombólise ou ICP) no IAMCSST: de 60% para 93% (p < 0,001) em homens e de 45% para 90% (p < 0,001) em mulheres1212. Radovanovic d, seifert b, roffi m, urban p, rickli h, pedrazzini g et al. Gender differences in the decrease of in-hospital mortality in patients with acute myocardial infarction during the last 20 years in switzerland. Open heart. 2017; 4(2): e000689.,1313. Hansen kw, soerensen r, madsen m, madsen jk, jensen js, von kappelgaard lm et al. Developments in the invasive diagnostic-therapeutic cascade of women and men with acute coronary syndromes from 2005 to 2011: a nationwide cohort study. Bmj open. 2015; 5(6): e007785. – tendo aumentado proporcionalmente mais entre homens. Tais dados reforçam a importância de um julgamento clínico detalhado e individualizado na emergência médica.

Dito isso, as implicações do estudo para a comunidade médica e o médico assistente são diretas: as múltiplas comorbidades, a idade mais avançada e as apresentações atípicas não devem ser impeditivas para a indicação de terapias de reperfusão, a análise do quadro clínico como um todo se faz necessária. Ademais, devem ser propostas políticas públicas que possibilitem um encaminhamento mais rápido desses pacientes para um serviço que possua serviço de angioplastia, além de programas de educação em saúde e conscientização sobre sintomas cardiovasculares, com foco nas mulheres. Com tais ações multifacetadas, o maior acesso à reperfusão pode ser a responsável por reduzir ainda mais a mortalidade causada por doenças cardiovasculares, sobretudo no sexo feminino, nos próximos anos.

  • Minieditorial referente ao artigo: Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM

Referências

  • 1
    Soeiro am, silva p, roque eac, bossa as, biselli b, leal t et al. Prognostic differences between men and women with acute coronary syndrome. Data from a brazilian registry. Arq bras cardiol. 2018; 111(5): 648-53.
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    Soares gp. Analysis of a population-based registry of hospitalizations for acute myocardial infarction. Arq bras cardiol. 2020; 115(5): 925-6.
  • 4
    Alves l, polanczyk ca. Hospitalization for acute myocardial infarction: a population-based registry. Arq bras cardiol. 2020; 115(5): 916-24.
  • 5
    Oliveira JC, Barros MPS, Barreto IDC, Silva Filho RC, Andrade VA, Oliveira AM et al. Acesso à Terapia de Reperfusão e Mortalidade em Mulheres com Infarto Agudo do Miocárdio com Supradesnivelamento do Segmento ST: Registro VICTIM. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(4):695-703.
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  • 7
    Cenko e, van der schaar m, yoon j, kedev s, valvukis m, vasiljevic z et al. Sex-specific treatment effects after primary percutaneous intervention: a study on coronary blood flow and delay to hospital presentation. J am heart assoc. 2019; 8(4): e011190.
  • 8
    Schmidt k, lima ads, schmitt kr, moraes ma, schmidt mm. Stress in women with acute myocardial infarction: a closer look. Arq bras cardiol. 2020; 115(4): 649-57.
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    Worrall-carter l, mcevedy s, wilson a, rahman ma. Gender differences in presentation, coronary intervention, and outcomes of 28.985 acute coronary syndrome patients in victoria, australia. Womens health issues. 2016; 26(1): 14-20.
  • 10
    Dey s, flather md, devlin g, brieger d, gurfinkel ep, steg pg et al. Sex-related differences in the presentation, treatment and outcomes among patients with acute coronary syndromes: the global registry of acute coronary events. Heart. 2009; 95(1): 20-6.
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    Shaw lj, miller dd, romeis jc, kargl d, younis lt, chaitman br. Gender differences in the noninvasive evaluation and management of patients with suspected coronary artery disease. Ann intern med. 1994; 120(7): 559-66.
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    Radovanovic d, seifert b, roffi m, urban p, rickli h, pedrazzini g et al. Gender differences in the decrease of in-hospital mortality in patients with acute myocardial infarction during the last 20 years in switzerland. Open heart. 2017; 4(2): e000689.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Abr 2021
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