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Dor Precordial em Idoso e Infarto. Não é Tão Elementar, Meu Caro Watson!

Dor no Peito; Angina Pectoris; Idoso; Envelhecimento; Infarto do Miocárdio/diagnóstico; Síndrome Coronariana Aguda/diagnóstico

Aprendemos na faculdade de medicina o modo tradicional de fazer processo investigativo, para chegar ao diagnóstico. O processo é classicamente baseado na coleta da anamnese e exame clínico, raciocínio clínico, geração de hipótese, e teste com exames complementares. Em geral, seguimos o princípio da Navalha de Ockham: “a resposta mais simples é em geral a correta”, ou como dizia William Osler: “Onde se escuta cascos, não pense em zebras”. Mas nesse processo investigativo, o raciocínio clínico é desafiado numa população idosa acima dos 80 anos de idade, e nem sempre a resposta mais simples é a mais correta. Nessa faixa etária, é comum a presença de várias comorbidades, que podem interferir, alterando a percepção dos sintomas cardiovasculares (depressão, demência, medicamentos que interferem no sistema nervoso central, diabetes, analgésicos, etc.), ou modificar a sintomatologia. A presença de sintomas atípicos, como dispneia, sudorese, vômitos, diarreia, dor epigástrica, e confusão mental, pode mascarar a patologia cardiovascular. 11. Jatene IB, Freitas EV. Cardiologia pediatrica e a cardiogeriatria .In: Kalil R, Campos LAC,(eds): Como Tratar - pediatria e cardiogeriatria.São Paulo:Editora Manole; 2010.p.295-310. , 22. Feitosa-Filho GS, Peixoto JM, Pinheiro JES, et al. Atualização das Diretrizes em Cardiogeriatria da Sociedade Brasileira de Cardiologia . Arq Bras Cardiol.2019;112:649-705.

Vários estudos demonstram a dificuldade de diagnosticar o infarto agudo do miocárdio (IAM) nessa população, o que, logicamente, acarreta atraso ou subtratamento. Mesmo quando estabelecidos o diagnóstico e o tratamento precoce do IAM, a mortalidade permanece alta nessa população. O subtratamento ou falta de tratamento contribuem para o aumento da mortalidade nessa faixa etária. 22. Feitosa-Filho GS, Peixoto JM, Pinheiro JES, et al. Atualização das Diretrizes em Cardiogeriatria da Sociedade Brasileira de Cardiologia . Arq Bras Cardiol.2019;112:649-705.

3. Dorsch MF, Lawrance RA, Sapsford RJ, Durham N, Oedham J, et al. Poor prognosis of patients presenting with symptomatic myocardial infarction but without chest pain. Heart 2001;86(5):494-8.
- 44. Brieger D, Eagle KA, Goodman SG, Steg PG, Budey A, White K, et al. Acute coronary syndromes without chest pain, an underdiagnosed and undertreated high-risk group: insights from the Global Registry of Acute Coronary Events. Chest 2004;126(2):461-9. O entendimento de fatores que dificultam o diagnóstico é de suma importância para estabelecermos protocolos direcionados para os muito idosos.

Era de se esperar que os médicos aplicassem o método analítico e metodologia no processo investigativo, mas não é o que ocorre na prática. Há outros fatores que influenciam o processo de diagnóstico. Dentre eles, fatores cognitivos, inicialmente descritos por Kahneman e Tversky 55. Tversky A, Kahneman D. Availability: A heuristic for judging frequency and probability. Cognitive Psychology 1973;5:207-32. (ganhador do prémio Nobel de economia), são descritos como atalhos mentais, intuitivos, para chegarmos rapidamente ao resultado (diagnóstico). Esse método é subjetivo e muito influenciado por fatores emocionais, e tem alta chance de erros. 66. Croskerry P. A universal model of diagnostic reasoning. Acad Med 2009;84:1022-8. Para pacientes que se apresentam no serviço de emergência com dor precordial, é até intuitivo descartar IAM. Aplicando protocolos bem estabelecidos para pacientes com dor precordial, temos alta acurácia diagnóstica para Síndrome Coronariana Aguda. Porém, a presença de sintomatologia atípica abre um leque de possibilidades diagnósticas, 77. Redelmeier DA, Shafir E. Medical Decision Making in Situations That Offer Multiple Alternatives. JAMA 1995;273(4):302-5. e há necessidade de um atendimento sistematizado para o diagnóstico correto. A aplicação desses atalhos mentais, seja ela decorrente de urgência, sobrecarga de trabalho (comum no setor da emergência), estresse, ou lacunas na formação e capacitação no atendimento, leva frequentemente à diminuição da acurácia diagnóstica.

No elegante estudo conduzido pelo Filgueiras et al., 88. Filgueiras PHC, Cerqueira Junior AM, Bagano GO, Correia VCA, Lopes FOA, Souza TMB, et al. Does Advanced Age Reduce the Typicality of Clinical Presentation in Patients with Acute Chest Pain Related to Coronary Artery Disease? Arq Bras Cardiol. 2021; 116(6):1039-1045 destaca-se a necessidade de 6 anos de coleta, para se obter uma amostra adequada de idosos acima de 80 anos (o que demonstra a dificuldade de estudar esse subgrupo populacional). O estudo foi conduzido num centro terciário (unidade coronariana - UCO), onde os pacientes foram previamente triados na emergência, setor onde ocorre a maioria dos equívocos diagnósticos. Podemos observar, nos dados apresentados, que a população idosa tinha 83% de troponina positiva, e 41% de pacientes com lesões obstrutivas vistas na coronariografia, sugerindo que os idosos com sintomas típicos, e associados com alteração do marcador de necrose miocárdica, tiveram maior chance de serem admitidos na UCO. Nessa amostra, o viés de seleção pode constituir um problema para validade externa dos dados obtidos.

Digna de nota é a falta de menção à descrição das comorbidades, além de um tema muito relevante que é o grau de fragilidade da população estudada. É muito comum os médicos não instituírem o tratamento completo para IAM, seja devido à baixa expectativa de vida, ou pelo risco de complicações, tais como sangramento. Portanto, esse grupo também tem menor chance de ser encaminhado para a UCO.

Nesse estudo, apesar de os pacientes muito idosos apresentarem sintomas típicos, quando comparados a pacientes mais jovens (índice de tipicidade 3,41 ± 1,77 x 3,49 ± 1,77; p=0,61), o resultado se contrapõe aos achados do estudo de Brieger, 44. Brieger D, Eagle KA, Goodman SG, Steg PG, Budey A, White K, et al. Acute coronary syndromes without chest pain, an underdiagnosed and undertreated high-risk group: insights from the Global Registry of Acute Coronary Events. Chest 2004;126(2):461-9. em que a prevalência de sintomas atípicos foi de 14% em pacientes acima de 75anos, e somente 5% se < 65 anos. Dos pacientes com sintomas atípicos, somente 60% receberam corretamente o diagnóstico de SCA 44. Brieger D, Eagle KA, Goodman SG, Steg PG, Budey A, White K, et al. Acute coronary syndromes without chest pain, an underdiagnosed and undertreated high-risk group: insights from the Global Registry of Acute Coronary Events. Chest 2004;126(2):461-9. . Ademais, a análise dos sintomas atípicos seria fundamental, para entender fatores que contribuem para a dificuldade diagnóstica e as chaves para o diagnóstico. Além do estudo dos sintomas, outro aspecto fundamental é a análise do processo investigativo médico: forma de coleta das informações, coleta de informações com cuidadores, tempo dispendido, forma de processamento das informações, e métodos complementares utilizados.

Em resumo, apesar de a maioria dos pacientes apresentar sintomas típicos, associados ao aumento de marcadores de necrose miocárdica, pacientes muito idosos, com sintomas atípicos, ainda representam um desafio ao médico, e, nessas condições, a arte médica investigativa e sistemática deve ser aplicada. Além disso, ainda carecemos de protocolos específicos para essa população.

Referências

  • 1
    Jatene IB, Freitas EV. Cardiologia pediatrica e a cardiogeriatria .In: Kalil R, Campos LAC,(eds): Como Tratar - pediatria e cardiogeriatria.São Paulo:Editora Manole; 2010.p.295-310.
  • 2
    Feitosa-Filho GS, Peixoto JM, Pinheiro JES, et al. Atualização das Diretrizes em Cardiogeriatria da Sociedade Brasileira de Cardiologia . Arq Bras Cardiol.2019;112:649-705.
  • 3
    Dorsch MF, Lawrance RA, Sapsford RJ, Durham N, Oedham J, et al. Poor prognosis of patients presenting with symptomatic myocardial infarction but without chest pain. Heart 2001;86(5):494-8.
  • 4
    Brieger D, Eagle KA, Goodman SG, Steg PG, Budey A, White K, et al. Acute coronary syndromes without chest pain, an underdiagnosed and undertreated high-risk group: insights from the Global Registry of Acute Coronary Events. Chest 2004;126(2):461-9.
  • 5
    Tversky A, Kahneman D. Availability: A heuristic for judging frequency and probability. Cognitive Psychology 1973;5:207-32.
  • 6
    Croskerry P. A universal model of diagnostic reasoning. Acad Med 2009;84:1022-8.
  • 7
    Redelmeier DA, Shafir E. Medical Decision Making in Situations That Offer Multiple Alternatives. JAMA 1995;273(4):302-5.
  • 8
    Filgueiras PHC, Cerqueira Junior AM, Bagano GO, Correia VCA, Lopes FOA, Souza TMB, et al. Does Advanced Age Reduce the Typicality of Clinical Presentation in Patients with Acute Chest Pain Related to Coronary Artery Disease? Arq Bras Cardiol. 2021; 116(6):1039-1045
  • Minieditorial referente ao artigo: Idade Avançada Reduz a Tipicidade da Apresentação Clínica em Pacientes Com Dor Torácica Aguda Relacionada a Doença Coronária Obstrutiva?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jun 2021
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