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Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Intermediária - Condição Temporária ou um Grupo Específico?

Palavras-chave:
Insuficiência Cardíaca/fisiopatologia; Volume Sistólico; Epidemiologia; Hospitalização; Mortalidade

O último levantamento epidemiológico da American Heart Association aponta que 6,2 milhões de americanos acima de 20 anos apresentam insuficiência cardíaca (IC), havendo projeção que esse número chegue a mais de 8 milhões em 2030.11. Virani SS, Alonso A, Benjamin EJ, Bittencourt MS, Callaway CW, Carson AP, et al. Heart disease and stroke statistics – 2020 update: summary. Circulation.2020;141(9):e139-e596. No Brasil, entre 2008 e 2017, a IC foi a principal causa cardiovascular de hospitalização, perfazendo 2,25% de todos os internamentos, com mortalidade de 14/100.000.22. Fernandes ADF, Fernandes GC, Mazza MR, Knijnik LM, Fernandes GS, Vilela AT, et al. Insuficiência cardíaca no Brasil subdesenvolvido: análise de tendência de dez anos. Arq Bras Cardiol.2020;114(2):222-31. Segundo Fernandes et al., essa taxa chega a 19,2/100.000 em estados menos desenvolvidos da federação.22. Fernandes ADF, Fernandes GC, Mazza MR, Knijnik LM, Fernandes GS, Vilela AT, et al. Insuficiência cardíaca no Brasil subdesenvolvido: análise de tendência de dez anos. Arq Bras Cardiol.2020;114(2):222-31.

Diante da prevalência e gravidade da doença, o estudo “Características e Tendências na Mortalidade em Diferentes Fenótipos de Insuficiência Cardíaca na Atenção Primária” traz valiosos dados para melhor compreender, estratificar e tratar os pacientes com IC.33. Jorge AJL, Barbetta LMS, Correia ETO, Martins WA, Leite AR, Saad MAN, et al. Characteristics and Temporal Trends in the Mortality of Different Heart Failure Phenotypes in Primary Care. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(2):300-306. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20190912
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Descrita na última década, a insuficiência cardíaca com fração de ejeção intermediária (ICFEi) ocupou uma “zona cinzenta” de pacientes com fração de ejeção (FE) entre 41% e 49%, compreendendo aproximadamente 7% a 25% de todos os pacientes com IC. Trata-se de um grupo com características heterogêneas, que ora apresentam semelhanças com o grupo de pacientes com FE reduzida (ICFEr), ora com o grupo de FE preservada (ICFEp) e ora apresentam-se com um fenótipo único.44. Srivastava PK, Hsu JJ, Ziaeian B, Fonarow GC. Hear failure with mid-range ejection fraction. Curr Heart Fail Rep. 2020;12(1):1-8. Há quem advogue, inclusive, não se tratar de um grupo à parte, mas sim de um fenótipo de transição entre ICFEr e ICFEp.55. Martone R, Marchionni N, Cappelli F. Heart failure with mid-range ejection fraction: current evidence and uncertainties. Monaldi Archives for Chest Disease.2019;89(1):1024.

No estudo de Jorge et al.,33. Jorge AJL, Barbetta LMS, Correia ETO, Martins WA, Leite AR, Saad MAN, et al. Characteristics and Temporal Trends in the Mortality of Different Heart Failure Phenotypes in Primary Care. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(2):300-306. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20190912
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a prevalência do fenótipo de ICFEi observada no serviço de atenção primária foi de 22%, próximo ao encontrado em outro estudo nacional, de Cavalcanti et al.,66. Cavalcanti GP, Sarteschi C, Gomes GES, Medeiros CA, Pimentel JHM, Lafayette AR, et al. Decompensated heart failure with mild-range ejection fraction: epidemiology and in-hospital mortality risk factors. Int J Cardiovasc Sci.2020;33(1):45-54. em que 26% dos pacientes com IC agudizada apresentavam o fenótipo intermediário.66. Cavalcanti GP, Sarteschi C, Gomes GES, Medeiros CA, Pimentel JHM, Lafayette AR, et al. Decompensated heart failure with mild-range ejection fraction: epidemiology and in-hospital mortality risk factors. Int J Cardiovasc Sci.2020;33(1):45-54. Tais frequências são superiores ao descrito por Peterson et al.,77. Peterson LC, Danzmann LC, Bartholomay E, Bodanese LC, Donay BG, Magedanz AV, et al. Sobrevida em pacientes com insuficiência cardíaca aguda e fração de ejeção intermediária em um país em desenvolvimento – estudo de coorte no sul do Brasil. Arq Bras Cardiol.2021;116(1):14-23. quando 17% dos pacientes atendidos por IC agudizada apresentavam ICFEi.77. Peterson LC, Danzmann LC, Bartholomay E, Bodanese LC, Donay BG, Magedanz AV, et al. Sobrevida em pacientes com insuficiência cardíaca aguda e fração de ejeção intermediária em um país em desenvolvimento – estudo de coorte no sul do Brasil. Arq Bras Cardiol.2021;116(1):14-23.

É digno de nota citar que, dentro dessa nova categoria de IC, a literatura sugere subgrupos com diferentes prognósticos a partir da análise do comportamento dinâmico da FE: ICFEi deteriorada, ICFEi recuperada e ICFEi inalterada.88. Mesquita AT, Barbetta LMS, Correia ETO. Insuficiência cardíaca com fração de ejeção intermediária – estado da arte. Arq Bras Cardiol.2019;112(6):784-90. Em trabalho de Savarese et al.,99. Savarese G, Vedin O, D’Amario D, Uijl A, Dahlström U, Rosano G, et al. Prevalence and prognostic implications of longitudinal ejection fraction change in heart failure. JACC Heart Failure.2019;7(4)306-17. foram estudados 4.942 pacientes a partir do registro populacional Swedish Heart Failure Registry que apresentavam pelo menos dois ecocardiogramas consecutivos, realizados com intervalo médio de 1,4 anos. Foi analisada a incidência de transição entre grupos fenotípicos a partir de um aumento, queda ou manutenção da FE, bem como a implicação prognóstica dessas alterações. Os autores observaram os seguintes resultados: entre os pacientes com ICFEp, 21% deterioraram para ICFEi e 18% para ICFEr; entre aqueles com ICFEi, 37% deterioraram para ICFEr e 25% melhoraram para ICFEp; já entre pacientes ICFEr, 16% evoluíram para ICFEi e 10% modificaram para o grupo ICFEp. Pacientes que melhoraram a partir da ICFEr, passando a apresentar fenótipo de ICFEi ou ICFEp tiveram menor mortalidade e hospitalização, sendo o desfecho oposto para aqueles que apresentavam ICFEp ou ICFEi e passaram para o fenótipo ICFEr.99. Savarese G, Vedin O, D’Amario D, Uijl A, Dahlström U, Rosano G, et al. Prevalence and prognostic implications of longitudinal ejection fraction change in heart failure. JACC Heart Failure.2019;7(4)306-17.

A descrição da possibilidade dos três subgrupos acima talvez possa explicar as diferenças nos resultados entre os diversos estudos. Caso em uma dada pesquisa predominasse subgrupo que vinha com FE reduzida em recuperação, possivelmente eles teriam características mais similares às do grupo com FE preservada. De outra forma, caso predominasse subgrupo de ICFEi que originalmente apresentava FE melhor, porém evoluindo com gradativa piora, as características poderiam se assemelhar mais ao grupo com ICFEr. Importante ainda considerar que cálculos ecocardiográficos habituais da FE realizados nesses estudos apresentam limitações, têm resultados dinâmicos a depender das condições hemodinâmicas do paciente e apresentam variabilidade inter e intra-observadores. Para dirimir tais limitações, novas técnicas como o strain estão sendo incorporadas.1010. Branca L, Sbolli M, Metra M, Fudim M. Heart failure with mid-range ejection fraction: pro and cons of the new classification of heart failure by European Society of Cardiology guidelines. Esc Heart Failure.2020;7:381-99.

O artigo que ensejou este editorial, pioneiro em território nacional no estudo da ICFEi, seguiu uma metodologia adequada e trouxe diversas informações que certamente auxiliarão em nossas abordagens clínicas. Entretanto, há que se analisar os dados no contexto onde a população estava inserida, ou seja, na atenção primária, o que pode diferir de uma análise global deste subgrupo.

Existem algumas limitações na interpretação dos resultados encontrados como: tamanho da coorte pequena diante da grande prevalência da doença, contando com apenas 51 diagnósticos em 560 pacientes; todas as avaliações clínicas, laboratoriais e ecocardiográficas foram feitas em uma única ocasião, não sendo possível avaliar a evolução desses parâmetros temporalmente; os dados dos fármacos em uso para IC também foram aferidos em uma ocasião, não sendo possível a análise se os resultados refletiram um tratamento médico otimizado, considerando a baixa taxa de uso dos principais fármacos na época da análise inicial do estudo; e a ausência de caracterização adequada dos graus de disfunção diastólica.

Há aspectos que chamam a atenção nas características dos grupos, sendo observado que metade dos pacientes com ICFEi usavam diuréticos, semelhante ao grupo com ICFEp e maior do que o grupo com ICFEr. Outro dado foi em relação à dosagem de BNP, que se mostrou menor na ICFEi do que no grupo com ICFEp. Esses achados conflitantes poderiam refletir no desfecho combinado que envolveu internações hospitalares, reduzindo a diferença entre os grupos.

A baixa taxa de uso de betabloqueadores no grupo com ICFEr, com apenas 36% e 30% nos demais grupos, mostra-se bastante preocupante, além da taxa de 60% a 70% do uso de IECA/BRA. O tratamento padrão para IC não estaria sendo realizado nas unidades de atendimento primário? Ou os grupos passaram a ter conhecimento das patologias ao serem introduzidos no estudo, sendo esses percentuais reflexo de uma análise inicial? Ambas as situações ensejam discussões sobre a necessidade da busca ativa desses pacientes e implementação de medidas efetivas para garantir o pleno uso das terapêuticas padrões no tratamento da IC.

Diante desses comentários, os achados do estudo precisam ser confirmados a nível nacional em análises maiores, em grupos não só de atenção primária, para que possamos entender como os nossos pacientes realmente estão sendo conduzidos, se dentro das evidências científicas maiores, principalmente em relação aos grupos de maior gravidade.

Portanto, parabenizo ao grupo pela iniciativa em trazer informações relevantes na triagem dos fenótipos de IC na atenção primária, no contexto de uma entidade clínica tão incidente, prevalente e com alta taxa de morbimortalidade, mesmo considerando-se os diversos recursos terapêuticos conhecidos.1111. Marcondes-Braga FG, Moura LAZ, Issa VS, Vieira JL, Rohde LE, Simões MV, et al. Atualização de tópicos emergentes da diretriz de insuficiência cardíaca - 2021 Arq Bras Cardiol.2021;116(6):1174-212

  • Minieditorial referente ao artigo: Características e Tendências na Mortalidade em Diferentes Fenótipos de Insuficiência Cardíaca na Atenção Primária

Referências

  • 1
    Virani SS, Alonso A, Benjamin EJ, Bittencourt MS, Callaway CW, Carson AP, et al. Heart disease and stroke statistics – 2020 update: summary. Circulation.2020;141(9):e139-e596.
  • 2
    Fernandes ADF, Fernandes GC, Mazza MR, Knijnik LM, Fernandes GS, Vilela AT, et al. Insuficiência cardíaca no Brasil subdesenvolvido: análise de tendência de dez anos. Arq Bras Cardiol.2020;114(2):222-31.
  • 3
    Jorge AJL, Barbetta LMS, Correia ETO, Martins WA, Leite AR, Saad MAN, et al. Characteristics and Temporal Trends in the Mortality of Different Heart Failure Phenotypes in Primary Care. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(2):300-306. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20190912
    » https://doi.org/10.36660/abc.20190912
  • 4
    Srivastava PK, Hsu JJ, Ziaeian B, Fonarow GC. Hear failure with mid-range ejection fraction. Curr Heart Fail Rep. 2020;12(1):1-8.
  • 5
    Martone R, Marchionni N, Cappelli F. Heart failure with mid-range ejection fraction: current evidence and uncertainties. Monaldi Archives for Chest Disease.2019;89(1):1024.
  • 6
    Cavalcanti GP, Sarteschi C, Gomes GES, Medeiros CA, Pimentel JHM, Lafayette AR, et al. Decompensated heart failure with mild-range ejection fraction: epidemiology and in-hospital mortality risk factors. Int J Cardiovasc Sci.2020;33(1):45-54.
  • 7
    Peterson LC, Danzmann LC, Bartholomay E, Bodanese LC, Donay BG, Magedanz AV, et al. Sobrevida em pacientes com insuficiência cardíaca aguda e fração de ejeção intermediária em um país em desenvolvimento – estudo de coorte no sul do Brasil. Arq Bras Cardiol.2021;116(1):14-23.
  • 8
    Mesquita AT, Barbetta LMS, Correia ETO. Insuficiência cardíaca com fração de ejeção intermediária – estado da arte. Arq Bras Cardiol.2019;112(6):784-90.
  • 9
    Savarese G, Vedin O, D’Amario D, Uijl A, Dahlström U, Rosano G, et al. Prevalence and prognostic implications of longitudinal ejection fraction change in heart failure. JACC Heart Failure.2019;7(4)306-17.
  • 10
    Branca L, Sbolli M, Metra M, Fudim M. Heart failure with mid-range ejection fraction: pro and cons of the new classification of heart failure by European Society of Cardiology guidelines. Esc Heart Failure.2020;7:381-99.
  • 11
    Marcondes-Braga FG, Moura LAZ, Issa VS, Vieira JL, Rohde LE, Simões MV, et al. Atualização de tópicos emergentes da diretriz de insuficiência cardíaca - 2021 Arq Bras Cardiol.2021;116(6):1174-212

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021
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