Acessibilidade / Reportar erro

O Papel da Inflamação nos Desfechos Pós-TAVI

Palavras-chave
Substituição da Valva Aórtica Transcateter/métodos; Valva Aórtica/cirurgia; Mortalidade; Comorbidade; Biomarcadores; Proteína C-Reativa; Inflamação

Na experiência inicial de implantação transcateter da válvula aórtica (TAVI, do inglês transcatheter aortic valve implantation) em pacientes com risco extremo ou alto para substituição cirúrgica da válvula aórtica, a mortalidade global em um ano era de até 25%.11 Grover FL, Vemulapalli S, Carroll JD, Edwards FH, Mack MJ, Thourani VH, et al. 2016 Annual Report of The Society of Thoracic Surgeons/American College of Cardiology Transcatheter Valve Therapy Registry. J Am Coll Cardiol. 2017;69(10):1215-30. Desde então, o acesso à TAVI foi estendido para pacientes de risco baixo e intermediário, e o volume anual de procedimentos aumentou significativamente. As taxas de mortalidade pós-alta diminuíram em paralelo com a introdução de novos dispositivos e a adoção de indicações mais amplas. Entretanto, a mortalidade em um ano após a TAVI permanece relevante, superando 15% na prática contemporânea.22 Carroll JD, Mack MJ, Vemulapalli S, Herrmann HC, Gleason TG, Hanzel G, et al. STS-ACC TVT Registry of Transcatheter Aortic Valve Replacement. J Am Coll Cardiol. 2020;76(21):2492-516.

Ao longo do tempo, regurgitação paravalvar significativa pós-procedimento, insuficiência renal aguda e comorbidades como doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), insuficiência cardíaca, doença renal crônica (DRC) e acidente vascular cerebral (AVC) prévio foram associados a taxas mais altas de mortalidade.33 Tamburino C, Capodanno D, Ramondo A, Petronio AS, Ettori F, Santoro G, et al. Incidence and predictors of early and late mortality after transcatheter aortic valve implantation in 663 patients with severe aortic stenosis. Circulation. 2011;123(3):299-308.,44 de Brito FS, Jr., Carvalho LA, Sarmento-Leite R, Mangione JA, Lemos P, Siciliano A, et al. Outcomes and predictors of mortality after transcatheter aortic valve implantation: results of the Brazilian registry. Catheter Cardiovasc Interv. 2015;85(5):E153-62. Os escores de risco originalmente validados para estimar a mortalidade após SAVR e biomarcadores séricos relacionados à insuficiência cardíaca congestiva e a outras condições tiveram seu desempenho testado em pacientes submetidos à TAVI.55 Sinning JM, Wollert KC, Sedaghat A, Widera C, Radermacher MC, Descoups C, et al. Risk scores and biomarkers for the prediction of 1-year outcome after transcatheter aortic valve replacement. Am Heart J. 2015;170(4):821-9. Entretanto, não existe uma ferramenta específica e amplamente adotada para prever a mortalidade tardia de pacientes pós-TAVI.

Em pacientes com estenose aórtica (EAo) degenerativa, a inflamação é um estágio crucial no processo patogenético que culmina em calcificação e estenose,66 Otto CM, Kuusisto J, Reichenbach DD, Gown AM, O’Brien KD. Characterization of the early lesion of ‘degenerative’ valvular aortic stenosis. Histological and immunohistochemical studies. Circulation 1994;90(2):844-53. e faltam dados suficientes a respeito do impacto da inflamação crônica nos desfechos de pacientes pós-TAVI. A proteína C-reativa (PCR) é um preditor de longo prazo de eventos cardíacos na população em geral.77 Ridker PM, Cushman M, Stampfer MJ, Tracy RP, Hennekens CH. Inflammation, aspirin, and the risk of cardiovascular disease in apparently healthy men. N Engl J Med. 1997;336(14):973-9. Este parâmetro bioquímico, que está relacionado à inflamação sistêmica crônica, também foi extensivamente investigado em pacientes com doença arterial coronariana, nos quais os níveis plasmáticos aumentados de PCR foram associados a piores desfechos clínicos.88 Liuzzo G, Biasucci LM, Gallimore JR, Grillo RL, Rebuzzi AG, Pepys MB, et al. The prognostic value of C-reactive protein and serum amyloid a protein in severe unstable angina. N Engl J Med. 1994;331(7):417-24., 99 Haverkate F, Thompson SG, Pyke SD, Gallimore JR, Pepys MB. Production of C-reactive protein and risk of coronary events in stable and unstable angina. European Concerted Action on Thrombosis and Disabilities Angina Pectoris Study Group. Lancet 1997;349(9050):462-6 Na presente edição do Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Sousa et al.,1010 Sousa ALS, Carvalho LAF, Salgado CG, Oliveira RL, Lima LCCL, Mattos NDFG, et al. C-reactive Protein as a Prognostic Marker of 1-Year Mortality after Transcatheter Aortic Valve Implantation in Aortic Stenosis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(5):1018-1027., avaliaram o valor prognóstico do biomarcador inflamatório PCR em pacientes submetidos à TAVI.

Os autores avaliaram a PCR ultrassensível (PCR-us) como marcador prognóstico no primeiro ano pós-TAVI para estenose aórtica. O imunoensaio turbidimétrico foi utilizado para medir os níveis séricos de PCR-us antes da TAVI e ao longo da primeira semana após a intervenção. Os pesquisadores analisaram retrospectivamente 137 pacientes com EAo grave sintomática submetidos a TAVI de 2009 a 2015 em um único centro. Pacientes em estado crítico e procedimentos com complicações mecânicas foram excluídos, totalizando uma população de 130 pacientes.

No estudo, os pacientes eram em sua maioria octogenários (mediana de idade de 83,0 anos), com alto risco cirúrgico (mediana do escore da Society of Thoracic Surgeons - STS - de 8,6). A anestesia geral foi predominante (80,8% dos procedimentos), assim como a via transfemoral (94,6%). Quase todos os dispositivos implantados foram CoreValve (97%), com 3% de Edwards-Sapien XT.

A mortalidade hospitalar foi de 6,2%. Os critérios da síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS, do inglês systemic inflammatory response syndrome) estiveram presentes em 42,6% dos casos e 10% dos pacientes tiveram infecções tratadas com antibióticos durante a hospitalização. O pico de PCR ultrassensível (PCR-us) foi de 7,0 (5,3-12,1) mg/dL e ocorreu com maior frequência 96h após a TAVI. Um nível de PCR-us basal maior que 0,5 mg/dL, presente em um terço dos pacientes, foi um preditor independente de mortalidade em 1 ano (razão de risco de 4,1). Outros preditores independentes de mortalidade foram insuficiência renal aguda e transfusão de sangue ≥ 4 unidades de hemácias. O pico de PCR pós-TAVI foi um preditor de mortalidade em 1 ano apenas na análise univariada.

O estudo forneceu informações detalhadas sobre a cinética da PCR pós-TAVI. Os autores acrescentaram algumas informações a respeito de questões ainda não totalmente respondidas: A inflamação crônica em pacientes com EAo é um reflexo do estado de saúde global e comorbidades ou uma consequência do envelhecimento? Qual é o mecanismo do pior prognóstico em pacientes com EAo e níveis elevados de PCR pré-TAVI?

O achado dos autores de PCR-us basal ≥ 0,5 mg/dL como um preditor independente de mortalidade em 1 ano pós-TAVI é apoiado por estudos retrospectivos anteriores utilizando PCR ou PCR-us e diferentes pontos de corte.1111 Hioki H, Watanabe Y, Kozuma K, Yamamoto M, Naganuma T, Araki M, et al. Effect of Serum C-Reactive Protein Level on Admission to Predict Mortality After Transcatheter Aortic Valve Implantation. Am J Cardiol. 2018;122(2):294-301.

12 Zielinski K, Kalinczuk L, Chmielak Z, Mintz GS, Dabrowski M, Pregowski J, et al. Additive Value of High-Density Lipoprotein Cholesterol and C-Reactive Protein Level Assessment for Prediction of 2-year Mortality After Transcatheter Aortic Valve Implantation. Am J Cardiol. 2020;126:66-72.
-1313 Stundl A, Busse L, Leimkuhler P, Weber M, Zur B, Mellert F, et al. Combination of high-sensitivity C-reactive protein with logistic EuroSCORE improves risk stratification in patients undergoing TAVI. EuroIntervention. 2018;14(6):629-636. O impacto da PCR-us elevada na mortalidade em um ano pode indicar um pior estado basal de saúde (maior incidência de DPOC, maior STS escore e insuficiência cardíaca mais avançada). Curiosamente, mais da metade das mortes por todas as causas no estudo teve uma causa não-cardiovascular. Isso pode estar relacionado ao pior prognóstico de doenças infecciosas e neoplasias em pacientes com níveis elevados de PCR.1414 Allin KH, Nordestgaard BG. Elevated C-reactive protein in the diagnosis, prognosis, and cause of cancer. Crit Rev Clin Lab Sci, 2011;48(4):155-70.

Vale ressaltar, que esse estudo observacional e retrospectivo não permitiu aos autores estabelecer uma relação causal entre os níveis de PCR e os desfechos. Esta investigação unicêntrica utilizou uma amostra pequena e os eventos cardiovasculares não foram avaliados por um comitê de avaliação de eventos.

A PCR ultrassensível pode melhorar a estratificação de risco em pacientes submetidos à implantação transcateter de válvula aórtica. Sousa et al.1010 Sousa ALS, Carvalho LAF, Salgado CG, Oliveira RL, Lima LCCL, Mattos NDFG, et al. C-reactive Protein as a Prognostic Marker of 1-Year Mortality after Transcatheter Aortic Valve Implantation in Aortic Stenosis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(5):1018-1027. adicionaram informações valiosas ao corpo de dados que apoiam os biomarcadores inflamatórios como um árbitro de prognóstico pós-TAVI em pacientes com EAo. No entanto, mais estudos prospectivos são necessários para esclarecer o impacto dos níveis séricos elevados de PCR na mortalidade em pacientes submetidos à TAVI.

A adição dos níveis séricos de biomarcadores inflamatórios a parâmetros como o escore de risco cirúrgico, dados ecocardiográficos e fragilidade, pode ajudar na identificação de pacientes que terão desfechos negativos após a TAVI bem-sucedida e, em última análise, melhorar o manejo pós-alta.

  • Minieditorial referente ao artigo Proteína C-reativa como Marcador Prognóstico de Mortalidade no Primeiro Ano após Implante de Válvula Aórtica Transcateter em Estenose Aórtica

Referências

  • 1
    Grover FL, Vemulapalli S, Carroll JD, Edwards FH, Mack MJ, Thourani VH, et al. 2016 Annual Report of The Society of Thoracic Surgeons/American College of Cardiology Transcatheter Valve Therapy Registry. J Am Coll Cardiol. 2017;69(10):1215-30.
  • 2
    Carroll JD, Mack MJ, Vemulapalli S, Herrmann HC, Gleason TG, Hanzel G, et al. STS-ACC TVT Registry of Transcatheter Aortic Valve Replacement. J Am Coll Cardiol. 2020;76(21):2492-516.
  • 3
    Tamburino C, Capodanno D, Ramondo A, Petronio AS, Ettori F, Santoro G, et al. Incidence and predictors of early and late mortality after transcatheter aortic valve implantation in 663 patients with severe aortic stenosis. Circulation. 2011;123(3):299-308.
  • 4
    de Brito FS, Jr., Carvalho LA, Sarmento-Leite R, Mangione JA, Lemos P, Siciliano A, et al. Outcomes and predictors of mortality after transcatheter aortic valve implantation: results of the Brazilian registry. Catheter Cardiovasc Interv. 2015;85(5):E153-62.
  • 5
    Sinning JM, Wollert KC, Sedaghat A, Widera C, Radermacher MC, Descoups C, et al. Risk scores and biomarkers for the prediction of 1-year outcome after transcatheter aortic valve replacement. Am Heart J. 2015;170(4):821-9.
  • 6
    Otto CM, Kuusisto J, Reichenbach DD, Gown AM, O’Brien KD. Characterization of the early lesion of ‘degenerative’ valvular aortic stenosis. Histological and immunohistochemical studies. Circulation 1994;90(2):844-53.
  • 7
    Ridker PM, Cushman M, Stampfer MJ, Tracy RP, Hennekens CH. Inflammation, aspirin, and the risk of cardiovascular disease in apparently healthy men. N Engl J Med. 1997;336(14):973-9.
  • 8
    Liuzzo G, Biasucci LM, Gallimore JR, Grillo RL, Rebuzzi AG, Pepys MB, et al. The prognostic value of C-reactive protein and serum amyloid a protein in severe unstable angina. N Engl J Med. 1994;331(7):417-24.
  • 9
    Haverkate F, Thompson SG, Pyke SD, Gallimore JR, Pepys MB. Production of C-reactive protein and risk of coronary events in stable and unstable angina. European Concerted Action on Thrombosis and Disabilities Angina Pectoris Study Group. Lancet 1997;349(9050):462-6
  • 10
    Sousa ALS, Carvalho LAF, Salgado CG, Oliveira RL, Lima LCCL, Mattos NDFG, et al. C-reactive Protein as a Prognostic Marker of 1-Year Mortality after Transcatheter Aortic Valve Implantation in Aortic Stenosis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(5):1018-1027.
  • 11
    Hioki H, Watanabe Y, Kozuma K, Yamamoto M, Naganuma T, Araki M, et al. Effect of Serum C-Reactive Protein Level on Admission to Predict Mortality After Transcatheter Aortic Valve Implantation. Am J Cardiol. 2018;122(2):294-301.
  • 12
    Zielinski K, Kalinczuk L, Chmielak Z, Mintz GS, Dabrowski M, Pregowski J, et al. Additive Value of High-Density Lipoprotein Cholesterol and C-Reactive Protein Level Assessment for Prediction of 2-year Mortality After Transcatheter Aortic Valve Implantation. Am J Cardiol. 2020;126:66-72.
  • 13
    Stundl A, Busse L, Leimkuhler P, Weber M, Zur B, Mellert F, et al. Combination of high-sensitivity C-reactive protein with logistic EuroSCORE improves risk stratification in patients undergoing TAVI. EuroIntervention. 2018;14(6):629-636.
  • 14
    Allin KH, Nordestgaard BG. Elevated C-reactive protein in the diagnosis, prognosis, and cause of cancer. Crit Rev Clin Lab Sci, 2011;48(4):155-70.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Nov 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br