Acessibilidade / Reportar erro

Influência da Composição Racial Brasileira no Controle da Pressão Arterial: A Necessidade de Novos Olhares além do Tratamento Medicamentoso

Hipertensão; Grupos Étnicos; Doença Crônica

Of all the forms of inequality, injustice in health care is the

most shocking and inhumane

Martin Luter King, 1966

No contexto da saúde cardiovascular, algumas características raciais são frequentemente associadas a um pior controle da pressão arterial (PA); adultos negros, por exemplo, apresentam hipertensão arterial mais grave e resistente quando comparados a outros grupos étnicos.11. Deere BP, Ferdinand KC. Hypertension and Race/Ethnicity. Curr Opin Cardiol. 2020;35(4):342-50. doi: 10.1097/HCO.0000000000000742.

2. Ogunniyi MO, Commodore-Mensah Y, Ferdinand KC. Race, Ethnicity, Hypertension, and Heart Disease: JACC Focus Seminar 1/9. J Am Coll Cardiol. 2021;78(24):2460-70. doi: 10.1016/j.jacc.2021.06.017.
- 33. Macedo C, Aras R Jr, Macedo IS. Clinical Characteristics of Resistant vs. Refractory Hypertension in a Population of Hypertensive Afrodescendants. Arq Bras Cardiol. 2020;115(1):31-9. doi: 10.36660/abc.20190218. Quase todas essas evidências foram geradas em contextos populacionais com pouca miscigenação e, por isso, é imperativo o entendimento do impacto das características raciais específicas da população brasileira sobre ocorrência, diagnóstico e controle da hipertensão arterial.44. Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The Door is Open, But Not Everyone May Enter: Racial Inequities in Healthcare Access Across three Brazilian Surveys. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3981-0. doi: 10.1590/1413-81232021269.47412020. , 55. Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Trends in the Prevalence of Systemic Arterial Hypertension and Health Care Service Use in Brazil Over a Decade (2008-2019). Cien Saude Colet. 2021;26(9):4007-4019. doi: 10.1590/1413-81232021269.08092021.

O estudo apresentado por Sousa et al.6 traz um novo olhar em relação à questão racial e a sua influência no tratamento e controle da PA em adultos brasileiros. Usando um robusto banco de dados do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (ELSA-Brasil), avaliaram a associação entre raça/cor da pele autorrelatadas e controle de PA em indivíduos utilizando várias classes de anti-hipertensivos em monoterapia, publicação complementar do grupo à influência da etnia sobre aspectos da doença hipertensiva.77. Barber S, Diez Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, et al. At the Intersection of Place, Race, and Health in Brazil: Residential Segregation and Cardio-Metabolic Risk Factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med. 2018;199:67-76. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.05.047. , 88. Mendes PM, Nobre AA, Griep RH, Juvanhol LL, Barreto SM, Fonseca MJM, et al. Association between Race/Color and Incidence of Hypertension in the ELSA-Brasil Population: Investigating the Mediation of Racial Discrimination and Socioeconomic Position. Ethn Health. 2020:1-11. doi: 10.1080/13557858.2020.1861586.

Indivíduos negros em uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores de receptor de angiotensina (BRA), diuréticos tiazídicos (DT) e betabloqueadores (BB) em monoterapia apresentaram pior controle de PA em relação aos brancos. Após tratamento estatístico adequado, os autores concluíram que as diferenças de controle de PA entre os vários grupos raciais não podem ser explicadas por uma possível menor eficácia dos IECA e BRA em indivíduos negros. Embora observacional, o estudo começa a desvendar alguns tópicos importantes no manejo de pacientes com hipertensão arterial, pertencentes a alguns grupos específicos (neste caso, a população negra), além de vislumbrar algumas hipóteses que precisam ser investigadas, sobretudo aquelas relacionadas às iniquidades em saúde dessa população e a suas repercussões.

A miscigenação racial, característica da população brasileira, traz grandes questões socioeconômicas ao país e, de forma associada, desafios importantes para o cuidado em saúde.44. Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The Door is Open, But Not Everyone May Enter: Racial Inequities in Healthcare Access Across three Brazilian Surveys. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3981-0. doi: 10.1590/1413-81232021269.47412020. , 55. Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Trends in the Prevalence of Systemic Arterial Hypertension and Health Care Service Use in Brazil Over a Decade (2008-2019). Cien Saude Colet. 2021;26(9):4007-4019. doi: 10.1590/1413-81232021269.08092021. Na perspectiva dos determinantes sociais do processo saúde doença, fatores relacionados à composição racial de uma população (incluindo racismo) podem contribuir para a ocorrência de iniquidades em saúde e, assim, influenciar negativamente os desfechos relacionados.11. Deere BP, Ferdinand KC. Hypertension and Race/Ethnicity. Curr Opin Cardiol. 2020;35(4):342-50. doi: 10.1097/HCO.0000000000000742. , 22. Ogunniyi MO, Commodore-Mensah Y, Ferdinand KC. Race, Ethnicity, Hypertension, and Heart Disease: JACC Focus Seminar 1/9. J Am Coll Cardiol. 2021;78(24):2460-70. doi: 10.1016/j.jacc.2021.06.017. , 99. Paradies Y, Ben J, Denson N, Elias A, Priest N, Pieterse A, et al. Racism as a Determinant of Health: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS One. 2015;10(9):e0138511. doi: 10.1371/journal.pone.0138511. , 1010. Hicken MT, Kravitz-Wirtz N, Durkee M, Jackson JS. Racial Inequalities in Health: Framing Future Research. Soc Sci Med. 2018;199:11-18. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.12.027. Desta forma, dificuldades no acesso aos serviços de saúde, às medidas de prevenção e proteção da saúde e aos tratamentos mais adequados podem ser frequentes. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (2019), 9,4% dos brasileiros se autorrelataram como pretos, e 46,8% como pardos.1111. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) [Internet]. Brasília, DF: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2022 [cited 2020 Feb 17]. Available from: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...

Ainda, precisamos citar características que contribuem sobremaneira para o manejo de doenças crônicas no Sistema Único de Saúde:1212. Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, et al. Brazil’s Unified Health System: The First 30 Years and Prospects for the Future. Lancet. 2019;394(10195):345-56. doi: 10.1016/S0140-6736(19)31243-7. o acelerado envelhecimento populacional e as crescentes desigualdades sociais associados ao acúmulo significativo de morbidades crônicas em nossa população (aproximadamente 26 milhões de brasileiros com ≥50 anos relatam mais de duas condições crônicas, e hipertensão arterial está presente na maioria das combinações entre essas).1313. Nunes BP, Batista SRR, Andrade FB, Souza PRB Jr, Lima-Costa MF, Facchini LA. Multimorbidity: The Brazilian Longitudinal Study of Aging (ELSI-Brazil). Rev Saude Publica. 2018;52acc(Suppl 2):10s. doi: 10.11606/S1518-8787.2018052000637. Cita-se também o aumento de incidência de todas as doenças crônicas não transmissíveis analisadas pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) na comparação entre 2013 e 2019.44. Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The Door is Open, But Not Everyone May Enter: Racial Inequities in Healthcare Access Across three Brazilian Surveys. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3981-0. doi: 10.1590/1413-81232021269.47412020.

Dados estratificados conforme raça/etnia da PNS 2019 mostram que brasileiros pretos ou pardos relataram pior estado de saúde, principalmente os do sexo feminino (57,8%). Além disso, realização de consulta médica nos últimos 12 meses foi mais frequente entre a população branca que na população negra, independente de sexo.44. Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The Door is Open, But Not Everyone May Enter: Racial Inequities in Healthcare Access Across three Brazilian Surveys. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3981-0. doi: 10.1590/1413-81232021269.47412020. Comparando-se as edições da PNS de 2013 e 2019, observou-se maior proporção de negros hipertensos que relataram uso de medicamentos, realização de exames complementares e consultas com especialistas em 2019. Esses pacientes também apresentaram maior taxa de assistência médica principalmente no serviço público e em Unidades Básicas de Saúde, embora a última consulta não tenha sido realizada com o mesmo médico das consultas anteriores.55. Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Trends in the Prevalence of Systemic Arterial Hypertension and Health Care Service Use in Brazil Over a Decade (2008-2019). Cien Saude Colet. 2021;26(9):4007-4019. doi: 10.1590/1413-81232021269.08092021. Ainda neste cenário, estudo brasileiro77. Barber S, Diez Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, et al. At the Intersection of Place, Race, and Health in Brazil: Residential Segregation and Cardio-Metabolic Risk Factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med. 2018;199:67-76. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.05.047. mostra que morar em bairros economicamente segregados, onde negros e pardos foram mais propensos a viver, está associado com maiores chances de hipertensão arterial (26%) e diabetes (50%) em relação a morar em outros bairros, podendo, assim, constituir um ambiente potencial de impulsão de desigualdades raciais relacionadas à ocorrência de fatores de risco cardiometabólicos.77. Barber S, Diez Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, et al. At the Intersection of Place, Race, and Health in Brazil: Residential Segregation and Cardio-Metabolic Risk Factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med. 2018;199:67-76. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.05.047.

Assim, de forma complementar ao estudo de Sousa et al.,66. Sousa CT, Ribeiro ALP, Barreto SM, Giatti L, Brant L, Lotufo P, et al. Racial Differences in Blood Pressure Control from Users of Antihypertensive Monotherapy: Results from the ELSA-Brasil Study. Arq Bras Cardiol. 2022; 118(3):614-622. a sociedade brasileira demanda urgentemente por estudos que tragam as várias dimensões do cuidado, desde o acesso aos serviços de saúde, medicamentos, exames diagnósticos e especialistas, até o cuidado longitudinal e coordenado por equipe multidisciplinar e estratégias de autocuidado associadas às intersecções de suas características socioeconômicas, demográficas e culturais.

Referências

  • 1
    Deere BP, Ferdinand KC. Hypertension and Race/Ethnicity. Curr Opin Cardiol. 2020;35(4):342-50. doi: 10.1097/HCO.0000000000000742.
  • 2
    Ogunniyi MO, Commodore-Mensah Y, Ferdinand KC. Race, Ethnicity, Hypertension, and Heart Disease: JACC Focus Seminar 1/9. J Am Coll Cardiol. 2021;78(24):2460-70. doi: 10.1016/j.jacc.2021.06.017.
  • 3
    Macedo C, Aras R Jr, Macedo IS. Clinical Characteristics of Resistant vs. Refractory Hypertension in a Population of Hypertensive Afrodescendants. Arq Bras Cardiol. 2020;115(1):31-9. doi: 10.36660/abc.20190218.
  • 4
    Constante HM, Marinho GL, Bastos JL. The Door is Open, But Not Everyone May Enter: Racial Inequities in Healthcare Access Across three Brazilian Surveys. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3981-0. doi: 10.1590/1413-81232021269.47412020.
  • 5
    Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Trends in the Prevalence of Systemic Arterial Hypertension and Health Care Service Use in Brazil Over a Decade (2008-2019). Cien Saude Colet. 2021;26(9):4007-4019. doi: 10.1590/1413-81232021269.08092021.
  • 6
    Sousa CT, Ribeiro ALP, Barreto SM, Giatti L, Brant L, Lotufo P, et al. Racial Differences in Blood Pressure Control from Users of Antihypertensive Monotherapy: Results from the ELSA-Brasil Study. Arq Bras Cardiol. 2022; 118(3):614-622.
  • 7
    Barber S, Diez Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, et al. At the Intersection of Place, Race, and Health in Brazil: Residential Segregation and Cardio-Metabolic Risk Factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med. 2018;199:67-76. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.05.047.
  • 8
    Mendes PM, Nobre AA, Griep RH, Juvanhol LL, Barreto SM, Fonseca MJM, et al. Association between Race/Color and Incidence of Hypertension in the ELSA-Brasil Population: Investigating the Mediation of Racial Discrimination and Socioeconomic Position. Ethn Health. 2020:1-11. doi: 10.1080/13557858.2020.1861586.
  • 9
    Paradies Y, Ben J, Denson N, Elias A, Priest N, Pieterse A, et al. Racism as a Determinant of Health: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS One. 2015;10(9):e0138511. doi: 10.1371/journal.pone.0138511.
  • 10
    Hicken MT, Kravitz-Wirtz N, Durkee M, Jackson JS. Racial Inequalities in Health: Framing Future Research. Soc Sci Med. 2018;199:11-18. doi: 10.1016/j.socscimed.2017.12.027.
  • 11
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) [Internet]. Brasília, DF: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2022 [cited 2020 Feb 17]. Available from: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e
    » https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e
  • 12
    Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, et al. Brazil’s Unified Health System: The First 30 Years and Prospects for the Future. Lancet. 2019;394(10195):345-56. doi: 10.1016/S0140-6736(19)31243-7.
  • 13
    Nunes BP, Batista SRR, Andrade FB, Souza PRB Jr, Lima-Costa MF, Facchini LA. Multimorbidity: The Brazilian Longitudinal Study of Aging (ELSI-Brazil). Rev Saude Publica. 2018;52acc(Suppl 2):10s. doi: 10.11606/S1518-8787.2018052000637.
  • Minieditorial referente ao artigo: Diferenças Raciais no Controle da Pressão Arterial em Usuários de Anti-Hipertensivos em Monoterapia: Resultados do Estudo ELSA-Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br