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Mexiletina em um Recém-Nascido com Síndrome do QT Longo Tipo 3: Quando o Acesso se Impõe à Urgência

Recém-nascido; Síndrome do QT longo; Taquicardia Ventricular; Mexiletina/uso terapêutico; Torsades de Pointes; Reanimação Cardiopulmonar

Introdução

A síndrome do QT longo tipo 3 (SQTL3) é uma canalopatia de alta letalidade. Está associada ao déficit de fechamento dos canais tardios de sódio, decorrentes de mutações no gene SCN5A , de padrão autossômico dominante, responsável por 7-10% de todas as síndromes do QT longo (SQTL).11. Refsgaard L, Holst AG, Sadjadieh G, Haunsø S, Nielsen JB, Olesen MS. High prevalence of genetic variants previously associated with LQT syndrome in new exome data. Eur J Hum Genet.2012;20(8):905-8. doi: 10.1038/ejhg.2012.23 A apresentação inicial pode ter amplo espectro, desde assintomáticos, até morte súbita no primeiro ano de vida.22. Wilde AAM, Moss AJ, Kaufman ES, Shimizu W, Peterson DR, Benhorin J, et al. Clinical Aspects of Type 3 Long-QT Syndrome: An International Multicenter Study. Circulation.2016;134(12):872-82. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.116.021823. A adição do bloqueador do canal de sódio classe IB (mexiletina) ao propranolol ou nadolol é considerada um tratamento gene-guiado, já que seu benefício está comprovado na SQTL3.33. Mazzanti A, Maragna R, Faragli A, Monteforte N, Bloise R, Memmi M, et al. Gene-Specific Therapy With Mexiletine Reduces Arrhythmic Events in Patients With Long QT Syndrome Type 3. J Am Coll Cardiol. 2016;67(9):1053–8. doi: 10.1016/j.jacc.2015.12.033. Em alguns países, como o Brasil, é inviável tratar pacientes com SQTL3, pela indisponibilidade da mexiletina.

A seguir, apresentaremos um caso grave de uma criança com SQTL3, que evoluiu com múltiplas terapias pelo cardiodesfibrilador implantável (CDI), pela dificuldade de acesso à mexiletina no Brasil.

Relato de caso

Trata-se de uma criança, do sexo feminino, filha de pais saudáveis, sem consanguinidade. Nasceu de parto cesáreo, devido a arritmia intrauterina (taquicardia alternada com bradicardia). Quando recém-nascida, apresentou múltiplos episódios de taquicardia ventricular não sustentada polimórfica (TVNSp). O eletrocardiograma (ECG) basal mostrava bloqueio atrioventricular (BAV) 2:1 e intervalo QT prolongado ( Figura 1 ). Foi iniciado tratamento com propranolol 1mg/kg/dia, e, devido à piora da bradicardia, optou-se pelo implante de marca-passo endovenoso unicameral ( Figura 2 ).

Figura 1
– Primeiro eletrocardiograma, realizado um dia após o nascimento da paciente. Ritmo sinusal com bloqueio atrioventricular 2:1 e prolongamento do QT.

Figura 2
– Eletrocardiograma mostrando ritmo ventricular estimulado pelo marca-passo e prolongamento do QT.

Aos três meses de idade, a paciente apresentou fibrilação ventricular, sendo prontamente reanimada, com retorno à circulação espontânea. Pela suspeita de SQTL,33. Mazzanti A, Maragna R, Faragli A, Monteforte N, Bloise R, Memmi M, et al. Gene-Specific Therapy With Mexiletine Reduces Arrhythmic Events in Patients With Long QT Syndrome Type 3. J Am Coll Cardiol. 2016;67(9):1053–8. doi: 10.1016/j.jacc.2015.12.033. mesmo na ausência do teste genético para guiar tratamento e na indisponibilidade de mexiletina para teste terapêutico, optou-se por aumentar a dose de propranolol para 4,5mg/kg e acrescentar fenitoína. Houve melhora transitória da recorrência de TVNSp, e decidiu-se realizar simpatectomia cervicotorácica.

Aos sete meses, após novos episódios de cianose durante o sono, a criança foi levada ao hospital, onde apresentou três episódios de torsades de pointes (TdP), necessitando reanimação cardiopulmonar e desfibrilação. Nessa internação, implantou-se um CDI. Realizou-se genotipagem pela técnica de next generation sequencing (NGS), com um painel de 15 genes associado à síndrome do QT longo. Foi identificada uma variante missense no gene SCN5A , c.5287G>A, que determinou a troca de valina por metionina na posição 1763 (p.Val1763Met), localizada no domínio S6 transmembrana do canal de sódio. Essa variante é classificada como patogênica, de acordo com os critérios do American College of Medical Genetic and Genomic (ACMG). O rastreamento genético dos pais, por meio da técnica de Sanger, não revelou a variante do caso índice, confirmando uma variante de novo .

Aos 14 meses de idade, a paciente apresentou múltiplos choques do CDI, especialmente durante o sono, e a mexiletina ainda não havia sido comprada, pelo alto custo da medicação importada. Não foi iniciado tratamento com propafenona, devido ao conhecimento prévio de pacientes com a mesma mutação nos quais esse medicamento desmascarou o padrão de Brugada. A equipe assistencial importou o medicamento, sendo a dose atingida de 8mg/kg/dia, em associação ao propranolol. A criança apresentou melhora clínica importante, sem novos eventos arrítmicos. No momento, aos 3 anos de idade, a paciente experimentou recorrência de arritmia após 1 ano de falta de mexiletina, e possui o desenvolvimento neurológico apropriado.

Discussão

Apresentamos o caso de uma criança com SQTL3, com manifestações arrítmicas graves e raras desde o nascimento. A bradicardia por BAV 2:1 e os episódios recorrentes de TdP neonatal são observados, com mais frequência, em pacientes com SQTL3, especialmente em mutações de novo no gene SCN5A. 44. Chang C-C, Acharfi S, Wu M-H, Chiang F-T, Wang J-K, Sung T-C, et al. A novel SCN5A mutation manifests as a malignant form of long QT syndrome with perinatal onset of tachycardia/bradycardia. Cardiovasc Res. 2004;64(2):268–78. doi: 10.1016/j.cardiores.2004.07.007.

A bradicardia fetal é um fenômeno conhecido em pacientes com síndrome do QT longo. A bradicardia sinusal é mais observada em pacientes com SQTL tipo 1.55. Cuneo BF, Etheridge SP, Horigome H, Sallee D, Moon-Grady A, Weng H-Y, et al. Arrhythmia phenotype during fetal life suggests long-QT syndrome genotype: risk stratification of perinatal long-QT syndrome. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2013;6(5):946–51. doi: 10.1161/CIRCEP.113.000618. Considera-se que BAV 2:1 com SQTL resulte da relação entre a curta duração do ciclo sinoatrial e o período refratário ventricular muito longo dos pacientes com SQTL. A presença de BAV 2:1 é indicador de alto risco de arritmias potencialmente fatais, como observada em nossa paciente.66. Schulze-Bahr E, Fenge H, Etzrodt D, Haverkamp W, Mönnig G, Wedekind H, et al. Long QT syndrome and life threatening arrhythmia in a newborn: molecular diagnosis and treatment response. Heart. 2004;90(1):13–6. doi: 10.1136/heart.90.1.13.

Okuwakiet al.77. Okuwaki H, Kato Y, Lin L, Nozaki Y, Takahashi‐Igari M, Horigome H. Mexiletine infusion challenge test for neonatal long QT syndrome with 2:1 atrioventricular block. J Arrhythmia. 2019;35(4):685–8. doi: 10.1002/joa3.12209. descreveram uma criança com fenótipo muito semelhante ao observado em nosso atendimento, inclusive portadora da mesma variante de novo Val1763Met, que apresentou controle do intervalo QT e das arritmias ventriculares com mexiletina endovenosa.77. Okuwaki H, Kato Y, Lin L, Nozaki Y, Takahashi‐Igari M, Horigome H. Mexiletine infusion challenge test for neonatal long QT syndrome with 2:1 atrioventricular block. J Arrhythmia. 2019;35(4):685–8. doi: 10.1002/joa3.12209. Yao et al.88. Yao C-T, Wang J-N, Tsai Y-C, Lin C-S, Wu J-M. Congenital long QT syndrome with functionally impaired atrioventricular conduction: successful treatment by mexiletine and propranolol. J Formos Med Assoc Taiwan Yi Zhi. 2002;101(4):291–3. PMID: 12101867 descreveram um caso de SQTL com fenótipo arritmogênico grave, que apresentou melhora importante após propranolol e mexiletina empírica, sem diagnóstico molecular.88. Yao C-T, Wang J-N, Tsai Y-C, Lin C-S, Wu J-M. Congenital long QT syndrome with functionally impaired atrioventricular conduction: successful treatment by mexiletine and propranolol. J Formos Med Assoc Taiwan Yi Zhi. 2002;101(4):291–3. PMID: 12101867 Schulze-Bahr et al. descreveram um caso similar de síndrome do QT longo com BAV 2:1 e arritmias ventriculares.66. Schulze-Bahr E, Fenge H, Etzrodt D, Haverkamp W, Mönnig G, Wedekind H, et al. Long QT syndrome and life threatening arrhythmia in a newborn: molecular diagnosis and treatment response. Heart. 2004;90(1):13–6. doi: 10.1136/heart.90.1.13.

Os bloqueadores dos canais de sódio, incluindo flecainida, ranolazina e mexiletina, compartilham locais de ligação na região do poro interno do canal de sódio Nav1.5, e têm eficácia documentada em portadores de SQTL.33. Mazzanti A, Maragna R, Faragli A, Monteforte N, Bloise R, Memmi M, et al. Gene-Specific Therapy With Mexiletine Reduces Arrhythmic Events in Patients With Long QT Syndrome Type 3. J Am Coll Cardiol. 2016;67(9):1053–8. doi: 10.1016/j.jacc.2015.12.033. A propafenona, único bloqueador dos canais de sódio disponível no Brasil, foi evitada devido ao risco de exacerbação do padrão de Brugada e pró-arritmias como fibrilação ventricular. Há diversos relatos na literatura alertando quanto ao risco de pró-arritmia em pacientes com SQTL3 e mutações nas regiões próximas ao resíduo 1763.99. Nakaya H. SCN5A mutations associated with overlap phenotype of long QT syndrome type 3 and Brugada syndrome. Circ J Off J Jpn Circ Soc. 2014;78(5):1061–2. doi: 10.1253/circj.cj-14-0319 A ranolazina, embora liberada para uso como antianginoso no Brasil, apresenta complexo perfil metabólico em crianças. Tan et al.,1010. Tan RB, Chakravarti S, Busovsky-McNeal M, Walsh A, Cecchin F. Complexity of ranolazine and phenytoin use in an infant with long QT syndrome type 3. Heart Case Rep. 2017;3(1):104–8. doi: 10.1016/j.hrcr.2016.10.001. descreveram um relato de caso em criança, comprovando uma meia-vida muito curta e diversas interações medicamentosas nessa faixa etária, que poderiam gerar efeitos colaterais pró-arrítmicos significativos.1010. Tan RB, Chakravarti S, Busovsky-McNeal M, Walsh A, Cecchin F. Complexity of ranolazine and phenytoin use in an infant with long QT syndrome type 3. Heart Case Rep. 2017;3(1):104–8. doi: 10.1016/j.hrcr.2016.10.001.

Dessa maneira, a falta de escolhas alternativas e a indisponibilidade da mexiletina levou a um atraso importante e potencialmente fatal no tratamento do caso apresentado. Após introdução da mexiletina, houve uma redução importante no numero de terapias pelo CDI.

Conclusão

Esse caso ilustra a complexidade e responsabilidade assumida pela equipe médica no tratamento dessa criança no Brasil, com manifestação precoce da doença. O difícil acesso à mexiletina, necessária para terapia gene-guiada em pacientes de alto risco com SQTL3 gerou importante repercussão em sua qualidade de vida e risco de morte súbita.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2021
  • Revisado
    27 Out 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
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