Acessibilidade / Reportar erro

Calcificação Miocárdica Padrão Helicoidal de Torrent Guasp

Calcificação Vascular; Técnicas de Imagem Cardíaca; Insuficiência Cardíaca

Caso clínico

Paciente do sexo masculino, 72 anos, com história pregressa de hipertensão arterial, diabetes não insulino-dependente, tabagismo ativo e angina crônica estável (angiocoronariografia mostrou estenose grave em ramo marginal obtuso de pequeno porte). Apresentava também história de etilismo, calcificação pancreática e litíase renal, sem história de Câncer, Sepse ou Tuberculose que justificassem essas calcificações difusas.

Apresentou-se no ambulatório de cardiologia com queixa de angina e dispneia classe II da New York Heart Association (NYHA). O eletrocardiograma (ECG) mostrava ritmo sinusal e sugeria hipertrofia ventricular esquerda (HVE) sem sinais de isquemia.

As imagens do ecocardiograma foram subótimas devido à janela acústica ruim, mas mostraram disfunção sistólica ventricular esquerda leve com disfunção diastólica grave (enchimento mitral restritivo não reversível foi observado), HVE e hipertensão pulmonar grave (pressão sistólica da artéria pulmonar 78 mmHg) com diâmetros de ventrículo direito normais e função sistólica. Além disso, múltiplas imagens hiperecogênicas com sombras acústicas foram observadas dentro do miocárdio, infiltrando predominantemente o septo interventricular.

Foi admitido no Hospital por sinais de insuficiência cardíaca aguda, com ortopneia, estertores pulmonares bilaterais e edema periférico bilateral, sem necessidade de oxigênio suplementar. O laboratório de soro demonstrou depuração de creatinina normal (>60 mg/ml), alto N terminal pró-peptídeo natriurético cerebral (NT-pro-BNP) e níveis séricos de troponina (6740 pg/ml e 32 pg/ml, respectivamente). Os parâmetros séricos fosfocálcicos estavam dentro da faixa normal. Notavelmente, uma equipe multidisciplinar avaliou o paciente, incluindo nefrologista, endocrinologista e cardiologistas clínicos.

Devido aos achados anormais e subótimos no ecocardiograma, foi realizada uma angiotomografia computadorizada (ATC), que foi positiva para extensos depósitos de cálcio intramiocárdico (escore de Agatston miocárdico de 112.929) com distribuição helicoidal que se assemelhava ao padrão das fibras miocárdicas de Torrent Guasp ( Figura 1 ). O escore de cálcio da artéria coronária não foi tão alto quanto o escore de Agatston do miocárdio (escore de Agatston de 670).

Figura 1
– Angiotomografia computadorizada (ATC) mostra extensa calcificação intramiocárdica (A e B). Reconstrução volumétrica na ATC mostra extensa calcificação com padrão Torrent Guasp (C e D). Os marcadores amarelos destacam a distribuição de cálcio. AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito.

Uma Ressonância Magnética Cardíaca (RMC) com contraste foi realizada para identificar melhor as características do tecido. Mostrou função sistólica do ventrículo esquerdo normal (fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 54%), com aumento da massa miocárdica e hipocinesia basal e septal ( Figura 2 ). O ventrículo direito tinha função sistólica normal. As imagens ponderadas em T1 e T2 mostraram áreas de nulidade intramiocárdicas focais sugerindo depósitos de cálcio no miocárdio. O realce tardio com gadolínio (LGE) foi positivo para realce intramiocárdico nos segmentos basal, medial e ântero-apical, compatível com fibrose não isquêmica. O comprometimento pericárdico estava ausente ( Figura 3 ). Além disso, áreas de calcificação miocárdica na ATC correlacionaram-se com LGE ao redor dos depósitos de cálcio na RMC.

Figura 2
– Ressonância Magnética Cardíaca (RMC). Sequência cine mostra massa aumentada. O marcador amarelo mostra a maior largura da hipertrofia septal do VE em cinco câmaras (A). O marcador azul mostra a maior largura do VE no eixo curto (B). VE: ventrículo esquerdo.

Figura 3
– Ressonância Magnética Cardíaca (RMC). Sequência ponderada em T1 mostra sinais de hipertrofia do ventrículo esquerdo com baixo sinal intramiocárdico compatível com cálcio (A), sequência ponderada em T2 sem edema e baixo sinal intramiocárdico (B). Intramiocárdico difuso em Realce tardio por gadolínio (LGE), sem padrão característico (C e D). Os marcadores amarelos mostram a distribuição do cálcio miocárdico. Os marcadores azuis mostram LGE miocárdico. VE: ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito; AE: átrio esquerdo.

O paciente foi tratado com diuréticos de alça endovenosos e recebeu alta com melhora dos sintomas. A cintilografia com pirofosfato de 99m-tecnécio foi realizada durante o seguimento, negativa para amiloidose cardíaca. Além disso, para obtenção de material para amostragem histológica, foi realizada biópsia endomiocárdica, mostrando achados histológicos normais.

Discussão

Os depósitos de calcificações miocárdicas podem estar presentes em múltiplos cenários fisiopatológicos, como calcificações distróficas por doença cardíaca de base e doenças sistêmicas idiopáticas ou metastáticas.11. Salisbury AC, Shapiro BP, Martinez MW. Extensive Myocardial and Mitral Annular Calcification Leading to Mitral Regurgitation and Restrictive Cardiomyopathy: An Unusual Case of Caseous Calcification of the Mitral Annulus. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2009;3(5):351-3. doi: 10.1016/j.jcct.2009.05.016. Além disso, as calcificações miocárdicas geralmente representam as sequelas de dano tecidual local e necrose celular e estão associadas a um risco aumentado de eventos cardiovasculares (arritmias ventriculares e disfunção sistólica/diastólica levando à insuficiência cardíaca).11. Salisbury AC, Shapiro BP, Martinez MW. Extensive Myocardial and Mitral Annular Calcification Leading to Mitral Regurgitation and Restrictive Cardiomyopathy: An Unusual Case of Caseous Calcification of the Mitral Annulus. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2009;3(5):351-3. doi: 10.1016/j.jcct.2009.05.016. , 22. Okada M, Kyakuno M, Imamura J, Nakamura T, Takahara S. An Autopsy Case of Sudden Death in Renal Transplant Recipient. Clin Transplant. 2002;16 Suppl 8:58-61. doi: 10.1034/j.1399-0012.16.s8.3.x. O paciente apresentava história de hipertensão, diabetes e doença arterial coronariana. Frequentemente, a hipertensão não é suficiente para explicar completamente a calcificação miocárdica, sendo comumente associada à doença renal crônica (DRC), onde a calcificação está associada a um distúrbio fosfocálcico.33. Rahman M, Kim SJ, Kim JS, Kim SZ, Lee YU, Kang HS. Myocardial Calcification and Hypertension Following Chronic Renal Failure and Ameliorative Effects of Furosemide and Captopril. Cardiology. 2010;116(3):194-205. doi: 10.1159/000315146. Além disso, o diabetes produz um distúrbio inflamatório sistêmico que pode contribuir para um aumento da calcificação coronariana.44. Yahagi K, Kolodgie FD, Lutter C, Mori H, Romero ME, Finn AV, et al. Pathology of Human Coronary and Carotid Artery Atherosclerosis and Vascular Calcification in Diabetes Mellitus. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2017;37(2):191-204. doi: 10.1161/ATVBAHA.116.306256. Além disso, a doença arterial coronariana é uma causa muito comum de calcificação miocárdica distrófica.11. Salisbury AC, Shapiro BP, Martinez MW. Extensive Myocardial and Mitral Annular Calcification Leading to Mitral Regurgitation and Restrictive Cardiomyopathy: An Unusual Case of Caseous Calcification of the Mitral Annulus. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2009;3(5):351-3. doi: 10.1016/j.jcct.2009.05.016. A cardiomiopatia hipertensiva ou infiltrativa não pode ser totalmente excluída, apesar dos achados de TC e RMC.

Esses padrões de calcificação podem ser diagnosticados com múltiplas modalidades de imagem, sendo a ATC a modalidade padrão-ouro para identificação e caracterização de calcificações miocárdicas. De fato, diferentemente do padrão de calcificação bem definido nas patologias intrínsecas do miocárdio, a infiltração de cálcio por doenças sistêmicas geralmente tem um padrão difuso. Além disso, a RMC pode fornecer mais caracterização tecidual, sugerindo calcificação miocárdica em áreas intramiocárdicas de baixo sinal e miocárdio cicatrizado ao redor de calcificações por imagens de LGE.55. Aras D, Topaloglu S, Demirkan B, Deveci B, Ozeke O, Korkmaz S. Porcelain Heart: A Case of Massive Myocardial Calcification. Int J Cardiovasc Imaging. 2006;22(1):123-6. doi: 10.1007/s10554-005-9006-2. , 66. Ionescu CN, Marcu CB. Unexpected Massive Myocardial Calcification. Neth Heart J. 2009;17(12):491. doi: 10.1007/BF03086310.

A Teoria de Torrent Guasp foi originalmente descrita macroscopicamente em pacientes post mortem, em que as fibras miocárdicas se estruturavam como uma faixa estendida desde a raiz da artéria pulmonar até a raiz da aorta circunscrevendo os dois ventrículos em uma fibra com padrão de dupla hélice. Esse padrão é responsável pelo funcionamento normal e efetivo do coração, explicando a variação do volume intraventricular dentro de cada batimento.77. Torrent-Guasp F. Structure and function of the heart. Rev Esp Cardiol. 1998;51(2):91-102. doi: 10.1016/s0300-8932(98)74718-9. , 88. Boineau JP. Left Ventricular Muscle Band (VMB): Thoughts on its Physiologic and Clinical Implications. Eur J Cardiothorac Surg. 2006;29 Suppl 1:56-60. doi: 10.1016/j.ejcts.2006.02.045. A pesquisa mostrou que essa distribuição de dupla hélice raramente é encontrada em modalidades de imagem não invasivas, tornando este caso uma representação viva do padrão Torrent Guasp.

Conclusão

Apresenta-se um caso de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada com calcificação miocárdica difusa e atípica seguindo a distribuição Torrent Guasp. Múltiplas causas (isto é, isquêmica, hipertensiva ou infiltrativa) podem contribuir para a origem da calcificação, a que em última análise está associada a um pior desfecho clínico. Diversas modalidades de imagem são fundamentais para alcançar um diagnóstico específico e, eventualmente, um tratamento específico.

Referências

  • 1
    Salisbury AC, Shapiro BP, Martinez MW. Extensive Myocardial and Mitral Annular Calcification Leading to Mitral Regurgitation and Restrictive Cardiomyopathy: An Unusual Case of Caseous Calcification of the Mitral Annulus. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2009;3(5):351-3. doi: 10.1016/j.jcct.2009.05.016.
  • 2
    Okada M, Kyakuno M, Imamura J, Nakamura T, Takahara S. An Autopsy Case of Sudden Death in Renal Transplant Recipient. Clin Transplant. 2002;16 Suppl 8:58-61. doi: 10.1034/j.1399-0012.16.s8.3.x.
  • 3
    Rahman M, Kim SJ, Kim JS, Kim SZ, Lee YU, Kang HS. Myocardial Calcification and Hypertension Following Chronic Renal Failure and Ameliorative Effects of Furosemide and Captopril. Cardiology. 2010;116(3):194-205. doi: 10.1159/000315146.
  • 4
    Yahagi K, Kolodgie FD, Lutter C, Mori H, Romero ME, Finn AV, et al. Pathology of Human Coronary and Carotid Artery Atherosclerosis and Vascular Calcification in Diabetes Mellitus. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2017;37(2):191-204. doi: 10.1161/ATVBAHA.116.306256.
  • 5
    Aras D, Topaloglu S, Demirkan B, Deveci B, Ozeke O, Korkmaz S. Porcelain Heart: A Case of Massive Myocardial Calcification. Int J Cardiovasc Imaging. 2006;22(1):123-6. doi: 10.1007/s10554-005-9006-2.
  • 6
    Ionescu CN, Marcu CB. Unexpected Massive Myocardial Calcification. Neth Heart J. 2009;17(12):491. doi: 10.1007/BF03086310.
  • 7
    Torrent-Guasp F. Structure and function of the heart. Rev Esp Cardiol. 1998;51(2):91-102. doi: 10.1016/s0300-8932(98)74718-9.
  • 8
    Boineau JP. Left Ventricular Muscle Band (VMB): Thoughts on its Physiologic and Clinical Implications. Eur J Cardiothorac Surg. 2006;29 Suppl 1:56-60. doi: 10.1016/j.ejcts.2006.02.045.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Maio 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2021
  • Revisado
    16 Set 2021
  • Aceito
    10 Nov 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br