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Diretrizes, Posicionamentos e Normatizações: Documentos de Auxílio à Prática Médica

Guia de Prática Clínica; Guia; Doenças Cardiovasculares

O ato médico, que deve ser compartilhado, é fundamentado em dois pilares, o intelectivo, incapaz de ser padronizado, porque depende da capacidade cognitiva do profissional na tomada da decisão e o técnico que depende da formação, aperfeiçoamento e atualizações, podendo, portanto, ser regulado por diretrizes de prática clínica (DPC). Estas constituem ferramentas importantes, especialmente em uma área tão complexa e em rápida mudança como a cardiologia, objetivando: melhorar a qualidade do atendimento, baseado na melhor evidência disponível e reduzir a disparidade de condutas para o mesmo tipo de situação clínica.11. Murad MH. Clinical Practice Guidelines: A Primer on Development and Dissemination. Mayo Clin Proc. 2017;92(3):423-33. doi: 10.1016/j.mayocp.2017.01.001. , 22. Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes Metodológicas: Elaboração de Diretrizes Clínicas. 2nd ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020.

Ressaltando-se que a sua aderência varia muito, e que alguns médicos têm preocupações de que estes instrumentos caracterizem uma rígida ou simplificada prática da medicina.33. Mahtta D, Rodriguez F, Jneid H, Levine GN, Virani SS. Improving Adherence to Cardiovascular Guidelines: Realistic Transition from Paper to Patient. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2020;18(1):41-51. doi: 10.1080/14779072.2020.1717335. Portanto, a implementação apropriada de DPC constitui grande interesse para organizações nacionais, sociedades profissionais, prestadores de cuidados à saúde, responsáveis políticos, judicialização da Medicina, pacientes e o público em geral. Dada a importância do tema, várias ferramentas têm sido desenvolvidas para avaliar a credibilidade das diretrizes existentes,44. Qaseem A, Forland F, Macbeth F, Ollenschläger G, Phillips S, van der Wees P, et al. Guidelines International Network: Toward international Standards for Clinical Practice Guidelines. Ann Intern Med. 2012;156(7):525-31. doi: 10.7326/0003-4819-156-7-201204030-00009. bem como orientações passo a passo para a concretização de um documento prático e confiável.55. Schünemann HJ, Wiercioch W, Etxeandia I, Falavigna M, Santesso N, Mustafa R, et al. Guidelines 2.0: Systematic Development of a Comprehensive Checklist for a Successful Guideline Enterprise. CMAJ. 2014;186(3):E123-42. doi: 10.1503/cmaj.131237.

A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) tem publicado, sistematicamente, desde 1992, diretrizes sobre os temas mais relevantes da especialidade.66. Afiune Neto A, Zago AJ, Barreto ACP, Guimarães AC, Brito AH, Brandão AP, et al, et al. Relatório da Subcomissão de Título de Especialista e Educação Médica Continuada e Política Científica dos Congressos. Arq Bras Cardiol.1992;59(4):1-8. Todavia, tem sido registrado falta de discernimento de três conceitos importantes,77. Douketis JD, Weitz JI. Guidance, Guidelines, and Communications. J Thromb Haemost. 2014;12:1744-5. doi: 10.1111/jth.12708. nesta pretensão, por parte dos departamentos que compõem a SBC: a) diretriz é o termo que deve ser reservado para o documento que sumariza, formalmente, evidências nas áreas de diagnóstico e terapêutica de patologias; b) posicionamento (ou orientação clínica), que deve ser utilizado para impressos oficiais que fornecem aconselhamento especializado sobre desafios na condução de pacientes e, c) normatização (ou comunicação), que, por sua vez, deve ser empregado para os manuscritos que informam a metodologia laboratorial e definições de desfecho clínico.

Torna-se imperativo que os documentos emitidos pela SBC se apresentem com titulação e fundamentação adequadas para que seja evitada, por parte do leitor, confusão na diferenciação dos termos e, consequentemente, desinteresse na leitura dos mesmos.

Portanto, o objetivo principal desta publicação é o de estabelecer de forma simplificada e objetiva o significado destas terminologias, visando padronizar a emissão de diretrizes, comunicações e orientações por parte da SBC.

Diretrizes de prática clínica

As DPC são constituídas de afirmações sistematicamente desenvolvidas e são projetadas para apoiar os processos de tomada de decisão na assistência ao paciente, em condições específicas.88. Institute of Medicine (US) Committee to Advise the Public Health Service on Clinical Practice Guidelines; Field MJ, Lohr KN, editors. Washington (DC): National Academies Press (US); 1990. Ao contrário de um documento de orientação, uma diretriz aborda um tópico em que há evidências de moderada a alta qualidade, geralmente provenientes de ensaios randomizados com número satisfatório de integrantes, para possibilitar as práticas clínicas mais adequadas.

Na sua elaboração é utilizado um processo para resumir as evidências e fornecer um método padronizado para expressar os graus de recomendações com os seus respectivos níveis de evidências. Para que a diretriz seja confiável, é prudente que sejam observados os seguintes critérios: a) ser baseada em revisões sistemáticas da literatura; b) ser desenvolvida por um painel multidisciplinar e experiente de especialistas; c) considerar os valores e preferências dos pacientes, assim como os seus subgrupos; d) ser baseada em um processo explícito e transparente que minimiza distorções, vieses e conflitos de interesse; e) fornecer uma explicação clara das relações entre as opções de cuidados alternativos e desfechos clínicos e, f) ser atualizada quando novas importantes evidências justificarem modificações de recomendações.99. Institute of Medicine (US) Committee on Standards for Developing Trustworthy Clinical Practice Guidelines. Clinical Practice Guidelines We Can Trust. Graham R, Mancher M, Miller Wolman D, Greenfield S, Steinberg E, editors. Washington (DC): National Academies Press (US); 2011.

As diretrizes podem melhorar desfechos clínicos, todavia, elas apresentam adesões variáveis.1010. Proietti M, Nobili A, Raparelli V, Napoleone L, Mannucci PM, Lip GY, et al. Adherence to Antithrombotic Therapy Guidelines Improves Mortality Among Elderly Patients with Atrial Fibrillation: Insights from the REPOSI Study. Clin Res Cardiol. 2016;105(11):912-20. doi: 10.1007/s00392-016-0999-4. Elas raramente abordam prática médica onde as evidências são escassas. Portanto, torna-se necessária a utilização de estratégias inovadoras para facilitar a disseminação desses documentos. Vale ressaltar que as DPC não são livros de receitas, já que a maioria destes documentos apresenta limitações em sua disponibilidade e aplicabilidade no contexto do nível de evidência das recomendações, já que apenas uma pequena percentagem está embasada em estudos clínicos randomizados.1111. Fanaroff AC, Califf RM, Windecker S, Smith SC Jr, Lopes RD. Levels of Evidence Supporting American College of Cardiology/American Heart Association and European Society of Cardiology Guidelines, 2008-2018. JAMA. 2019;321(11):1069-80. doi: 10.1001/jama.2019.1122. Consequentemente, se faz necessária a atualização frequente destas diretrizes para a incorporação de evidências mais robustas que eventualmente surgirem.

Documento de posicionamento

Estes documentos visam abordar um determinado tópico (diagnóstico, terapêutico ou laboratorial) de reconhecido interesse clínico, para o qual não existem (ou é improvável que venha a acontecer) evidências de qualidade substancial, notadamente aquelas oriundas de ensaios clínicos randomizados. Tais documentos são complementares às diretrizes e são elaborados por uma equipe de profissionais com experiência estabelecida no tema.

Como exemplo, poderíamos citar o uso dos anticoagulantes diretos em pacientes gestantes.1111. Fanaroff AC, Califf RM, Windecker S, Smith SC Jr, Lopes RD. Levels of Evidence Supporting American College of Cardiology/American Heart Association and European Society of Cardiology Guidelines, 2008-2018. JAMA. 2019;321(11):1069-80. doi: 10.1001/jama.2019.1122. Em geral, as orientações contidas nestes documentos permanecem ancoradas nas melhores evidências disponíveis; todavia, incorporam, frequentemente, a opinião pessoal dos especialistas.

Documento de normatização

Estes dispositivos diferem dos acima relacionados uma vez que abordam tópicos primariamente direcionados para a padronização de práticas clínicas, laboratoriais e de metodologias de pesquisa. Como exemplo, poderíamos citar a comunicação do Subcomitê de Controle de Anticoagulação da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia para medir a atividade anticoagulante dos inibidores do fator Xa.1212. Ginsberg JS, Crowther MA. Direct Oral Anticoagulants (DOACs) and Pregnancy: A Plea for Better Information. Thromb Haemost. 2016;116(4):590-1. doi: 10.1160/TH16-08-0602. Portanto, trata-se de ferramenta útil à disposição dos departamentos da SBC.

Concluindo, o movimento em direção aos cuidados de saúde baseados em evidências vem ganhando terreno rapidamente nos últimos anos, motivado por clínicos, políticos e gestores, preocupados com a qualidade, consistência e custos da assistência médica.

Assim, os documentos acima mencionados, baseados nas melhores práticas padronizadas, desde que redigidos de forma prática e objetiva, podem ser capazes de promover melhorias na qualidade e consistência dos cuidados com a saúde. Garantir a aplicabilidade e a implementação dessas recomendações dependerá da aceitabilidade do paciente, da disponibilidade do procedimento, da experiência necessária no contexto específico, além do seu impacto quando colocadas em prática.1313. Baglin T, Hillarp A, Tripodi A, Elalamy I, Buller H, Ageno W. Measuring Oral Direct Inhibitors (ODIs) of Thrombin and Factor Xa: A Recommendation from the Subcommittee on Control of Anticoagulation of the Scientific and Standardisation Committee of the International Society on Thrombosis and Haemostasis. J Thromb Haemost. 2013. doi: 10.1111/jth.12149.

Referências

  • 1
    Murad MH. Clinical Practice Guidelines: A Primer on Development and Dissemination. Mayo Clin Proc. 2017;92(3):423-33. doi: 10.1016/j.mayocp.2017.01.001.
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes Metodológicas: Elaboração de Diretrizes Clínicas. 2nd ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020.
  • 3
    Mahtta D, Rodriguez F, Jneid H, Levine GN, Virani SS. Improving Adherence to Cardiovascular Guidelines: Realistic Transition from Paper to Patient. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2020;18(1):41-51. doi: 10.1080/14779072.2020.1717335.
  • 4
    Qaseem A, Forland F, Macbeth F, Ollenschläger G, Phillips S, van der Wees P, et al. Guidelines International Network: Toward international Standards for Clinical Practice Guidelines. Ann Intern Med. 2012;156(7):525-31. doi: 10.7326/0003-4819-156-7-201204030-00009.
  • 5
    Schünemann HJ, Wiercioch W, Etxeandia I, Falavigna M, Santesso N, Mustafa R, et al. Guidelines 2.0: Systematic Development of a Comprehensive Checklist for a Successful Guideline Enterprise. CMAJ. 2014;186(3):E123-42. doi: 10.1503/cmaj.131237.
  • 6
    Afiune Neto A, Zago AJ, Barreto ACP, Guimarães AC, Brito AH, Brandão AP, et al, et al. Relatório da Subcomissão de Título de Especialista e Educação Médica Continuada e Política Científica dos Congressos. Arq Bras Cardiol.1992;59(4):1-8.
  • 7
    Douketis JD, Weitz JI. Guidance, Guidelines, and Communications. J Thromb Haemost. 2014;12:1744-5. doi: 10.1111/jth.12708.
  • 8
    Institute of Medicine (US) Committee to Advise the Public Health Service on Clinical Practice Guidelines; Field MJ, Lohr KN, editors. Washington (DC): National Academies Press (US); 1990.
  • 9
    Institute of Medicine (US) Committee on Standards for Developing Trustworthy Clinical Practice Guidelines. Clinical Practice Guidelines We Can Trust. Graham R, Mancher M, Miller Wolman D, Greenfield S, Steinberg E, editors. Washington (DC): National Academies Press (US); 2011.
  • 10
    Proietti M, Nobili A, Raparelli V, Napoleone L, Mannucci PM, Lip GY, et al. Adherence to Antithrombotic Therapy Guidelines Improves Mortality Among Elderly Patients with Atrial Fibrillation: Insights from the REPOSI Study. Clin Res Cardiol. 2016;105(11):912-20. doi: 10.1007/s00392-016-0999-4.
  • 11
    Fanaroff AC, Califf RM, Windecker S, Smith SC Jr, Lopes RD. Levels of Evidence Supporting American College of Cardiology/American Heart Association and European Society of Cardiology Guidelines, 2008-2018. JAMA. 2019;321(11):1069-80. doi: 10.1001/jama.2019.1122.
  • 12
    Ginsberg JS, Crowther MA. Direct Oral Anticoagulants (DOACs) and Pregnancy: A Plea for Better Information. Thromb Haemost. 2016;116(4):590-1. doi: 10.1160/TH16-08-0602.
  • 13
    Baglin T, Hillarp A, Tripodi A, Elalamy I, Buller H, Ageno W. Measuring Oral Direct Inhibitors (ODIs) of Thrombin and Factor Xa: A Recommendation from the Subcommittee on Control of Anticoagulation of the Scientific and Standardisation Committee of the International Society on Thrombosis and Haemostasis. J Thromb Haemost. 2013. doi: 10.1111/jth.12149.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2022
  • Revisado
    08 Abr 2022
  • Aceito
    01 Jun 2022
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