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Nossos Pacientes Merecem Mais

Betacoronavirus; Pandemia; COVID-19; Infecções por Coronavirus; Hidroxicloroquina; Azitromicina; Medicina Baseada em Evidências

A tomada de decisão clínica implica que múltiplas opções são possíveis para qualquer situação médica. Felizmente, a ciência está em constante evolução e continuará a fazê-lo de forma incremental. Assim, os médicos devem analisar rotineiramente resultados anteriores de circunstâncias semelhantes para aumentar a probabilidade de selecionar a alternativa mais apropriada. Discernir os dados que podem ajudar na tomada de decisões a partir de informações científicas inconsistentes é um requisito fundamental da medicina baseada em evidências (MBE).

Há mais de 40 anos, a MBE tem sido a pedra angular da prática clínica, melhorando a eficácia e a segurança envolvidas nas decisões médicas, de acordo com o conhecimento científico mais atual.11. Thoma A, Eaves FF. A brief history of evidence-based medicine (EBM) and the contributions of dr David Sackett. Aesthet Surg J. 2015;35(8):NP261-3. doi:10.1093/asj/sjv130
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No entanto, as publicações nem sempre aderem a conceitos metodológicos validados e podem basear-se apenas em motivações não científicas. Quando as crenças pessoais ofuscam a ciência médica, isso ocorre invariavelmente em detrimento do cuidado ao paciente.22. Hallal PC. SOS Brazil: Science under attack. Lancet. 2021;397(10272):373–4. doi:10.1016/s0140-6736(21)00141-0
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Por outro lado, a MBE fornece um método sistemático e organizado para avaliar informações científicas em diversas formas de literatura médica.

Gerir a incerteza é um dos principais desafios da prática médica, especialmente em situações sem precedentes. A ciência tem limitações e mesmo uma investigação extensa pode não eliminar a incerteza. Mais importante ainda, lidar com a incerteza é crucial para evitar que os pacientes sejam expostos a respostas potencialmente inadequadas por parte dos médicos.33. Scott IA, Doust JA, Keijzers GB, Wallis KA. Coping with uncertainty in clinical practice: A narrative review. Med J Aust. 2023;218(9):418–25. doi:10.5694/mja2.51925
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Reconhecer quando aceitar a espera vigilante e não adotar impulsivamente tratamentos não comprovados é vital para evitar que as intervenções se tornem um perigo maior do que a própria doença.

A pandemia da Doença do Coronavírus 2019 (COVID-19) revelou muitas inseguranças relacionadas à MBE na comunidade médica. Num cenário de desespero e insegurança, os profissionais de saúde difundiram vários medicamentos não comprovados e potencialmente prejudiciais como tratamentos eficazes. Vários médicos enfrentaram a incerteza ao aventurarem-se numa abordagem de “tentativa e erro”, acreditando que tais circunstâncias justificavam qualquer conduta médica, independentemente dos riscos potenciais.44. Schwartz IS, Boulware DR, Lee TC. Hydroxychloroquine for covid19: The curtains close on a comedy of errors. Lancet Reg Health Am. 2022;11:100268. doi:10.1016/j.lana.2022.100268
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Neste contexto, a hidroxicloroquina/cloroquina (HCQ/CQ), a ivermectina e a azitromicina (AZT) foram massivamente empregados como tratamentos supostamente eficazes. Notavelmente, mesmo depois de várias publicações terem sugerido os potenciais danos destas drogas, muitos confiaram em crenças pessoais e coletivas infundadas como pilares da tomada de decisões.55. Cavalcanti AB, Zampieri FG, Rosa RG, Azevedo LCP, Veiga VC, Avezum A, et al. Hydroxychloroquine with or without azithromycin in mild-to-moderate covid-19. N Engl J Med. 2020;383(21):2041–52. doi:10.1056/nejmoa2019014
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6. López-Medina E, López P, Hurtado IC, Dávalos DM, Ramirez O, Martínez E, et al. Effect of ivermectin on time to resolution of symptoms among adults with mild COVID-19. JAMA. 2021;325(14):1426-35. doi:10.1001/jama.2021.3071
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7. Axfors C, Schmitt AM, Janiaud P, van’t Hooft J, Abd-Elsalam S, Abdo EF, et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of Randomized Trials. Nat Commun. 2021;12(1):2349. doi:10.1038/s41467-021-22446-z
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-88. Ferreira RM, Beranger RW, Sampaio PP, Mansur Filho J, Lima RA. Outcomes associated with hydroxychloroquine and ivermectin in hospitalized patients with COVID-19: A single-center experience. Rev Assoc Med Bras. 2021;67(10):1466–71. doi:10.1590/1806-9282.20210661
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O artigo publicado nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia fornece mais informações sobre as consequências das tomadas de decisão sem suporte que ocorreram durante a pandemia. Os autores apresentaram dados retrospectivos de 673 pacientes hospitalizados com COVID-19 no Brasil tratados com HCQ/CQ, com ou sem AZT, entre março e setembro de 2020. O estudo fez parte do Registro Brasileiro de COVID-19, uma iniciativa multicêntrica que inscreveu consecutivamente pacientes com doença confirmada laboratorialmente.99. Souza-Silva MVR, Pereira DN, Pires MC, Vasconcelos IM, Schwarzbold AV, Vasconcelos DH, et al. Real-Life Data on Hydroxychloroquine or Chloroquine with or Without Azithromycin in COVID-19 Patients: A Retrospective Analysis in Brazil. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20220935. Arq Bras Cardiol. 2023; 120(9):e20220935.
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O objetivo foi comparar os resultados clínicos e eletrocardiográficos intra-hospitalares com controles adequadamente pareados. Ao longo do período de estudo de 6 meses, mais de 145 mil mortes por COVID-19 foram registradas no Brasil.1010. Brazil: Who coronavirus disease (covid-19) dashboard with vaccination data [Internet]. World Health Organization; [cited 2023 Sept 3]. Available from: https://covid19.who.int/region/amro/country/br
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Os pacientes eram em sua maioria mulheres (55,9%), com idade média de 58 anos. A hipertensão estava presente em 49% e aproximadamente 30% eram diabéticos. Diferentes regimes de hidroxicloroquina foram administrados a 90% dos pacientes, enquanto 9,9% e 88,1% foram tratados com cloroquina e AZT, respectivamente. Um eletrocardiograma (ECG) estava disponível em apenas 42% dos pacientes internados, embora 60% tivessem doença cardiovascular. Não houve diferenças significativas na prevalência de achados basais anormais no ECG em comparação com o grupo controle.

O grupo tratado apresentou maior tempo de internação hospitalar (9,0 dias vs. 8,0 dias, p<0,001) e tendência à necessidade adicional de ventilação mecânica (27% vs. 22,3%, p=0,074), mesmo após exclusão daqueles que receberam apenas os medicamentos após a intubação. Novas alterações no ECG foram identificadas principalmente no mesmo grupo (13,2% vs. 8,2%, p=0,004), primariamente devido ao prolongamento do intervalo QTc (3,6% vs. 0,4%, p<0,001). Não houve diferenças na admissão em terapia intensiva, arritmias ventriculares ou mortalidade hospitalar entre os dois grupos (18,9% vs. 18,0%, p=0,682).

Embora os resultados refiram-se a uma era pré-vacinação, os autores devem ser elogiados por apresentarem um reflexo das perigosas vias de tratamento adotadas desde o início da pandemia de COVID-19. À primeira vista, a falta de uma incidência significativamente maior de resultados adversos em pacientes tratados com HCQ/CQ e AZT pode aparentemente fornecer garantias de que nenhum dano foi associado a estes medicamentos. No entanto, além das limitações dos dados retrospectivos, qualquer intervenção só deve ser implementada quando a segurança e a eficácia tiverem sido consistentemente demonstradas através dos requisitos apropriados da MBE. O presente estudo fornece evidências de dados da vida real de que estes pré-requisitos não foram alcançados para HCQ/CQ e AZT na COVID-19.

Três anos depois, as consequências de desconsiderar a ciência numa crise de saúde tão devastadora tornaram-se cada vez mais evidentes. Quando os recursos são escassos, as despesas desnecessárias com intervenções ineficazes e possivelmente perigosas não devem ser ignoradas ou esquecidas. Devemos questionar o que poderia ter sido realizado e quantas vidas poderiam ter sido salvas de outra forma. Como médicos, apenas acreditar que algo foi aprendido com os erros anteriores não é suficiente. É obrigatória uma reflexão profunda sobre o que ocorreu e como melhorar para as gerações futuras. Nossos pacientes merecem mais.

Referências

  • 1
    Thoma A, Eaves FF. A brief history of evidence-based medicine (EBM) and the contributions of dr David Sackett. Aesthet Surg J. 2015;35(8):NP261-3. doi:10.1093/asj/sjv130
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  • 2
    Hallal PC. SOS Brazil: Science under attack. Lancet. 2021;397(10272):373–4. doi:10.1016/s0140-6736(21)00141-0
    » https://doi.org/10.1016/s0140-6736(21)00141-0
  • 3
    Scott IA, Doust JA, Keijzers GB, Wallis KA. Coping with uncertainty in clinical practice: A narrative review. Med J Aust. 2023;218(9):418–25. doi:10.5694/mja2.51925
    » https://doi.org/10.5694/mja2.51925
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    Schwartz IS, Boulware DR, Lee TC. Hydroxychloroquine for covid19: The curtains close on a comedy of errors. Lancet Reg Health Am. 2022;11:100268. doi:10.1016/j.lana.2022.100268
    » https://doi.org/10.1016/j.lana.2022.100268
  • 5
    Cavalcanti AB, Zampieri FG, Rosa RG, Azevedo LCP, Veiga VC, Avezum A, et al. Hydroxychloroquine with or without azithromycin in mild-to-moderate covid-19. N Engl J Med. 2020;383(21):2041–52. doi:10.1056/nejmoa2019014
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  • 6
    López-Medina E, López P, Hurtado IC, Dávalos DM, Ramirez O, Martínez E, et al. Effect of ivermectin on time to resolution of symptoms among adults with mild COVID-19. JAMA. 2021;325(14):1426-35. doi:10.1001/jama.2021.3071
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    Axfors C, Schmitt AM, Janiaud P, van’t Hooft J, Abd-Elsalam S, Abdo EF, et al. Mortality outcomes with hydroxychloroquine and chloroquine in COVID-19 from an international collaborative meta-analysis of Randomized Trials. Nat Commun. 2021;12(1):2349. doi:10.1038/s41467-021-22446-z
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  • 8
    Ferreira RM, Beranger RW, Sampaio PP, Mansur Filho J, Lima RA. Outcomes associated with hydroxychloroquine and ivermectin in hospitalized patients with COVID-19: A single-center experience. Rev Assoc Med Bras. 2021;67(10):1466–71. doi:10.1590/1806-9282.20210661
    » https://doi.org/10.1590/1806-9282.20210661
  • 9
    Souza-Silva MVR, Pereira DN, Pires MC, Vasconcelos IM, Schwarzbold AV, Vasconcelos DH, et al. Real-Life Data on Hydroxychloroquine or Chloroquine with or Without Azithromycin in COVID-19 Patients: A Retrospective Analysis in Brazil. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20220935 Arq Bras Cardiol. 2023; 120(9):e20220935.
    » https://doi.org/10.36660/abc.20220935
  • 10
    Brazil: Who coronavirus disease (covid-19) dashboard with vaccination data [Internet]. World Health Organization; [cited 2023 Sept 3]. Available from: https://covid19.who.int/region/amro/country/br
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  • Minieditorial referente ao artigo: Dados de Vida Real sobre o Uso da Hidroxicloroquina ou da Cloroquina Combinadas ou Não à Azitromicina em Pacientes com Covid-19: Uma Análise Retrospectiva no Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2023
  • Revisado
    06 Set 2023
  • Aceito
    06 Set 2023
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