Acessibilidade / Reportar erro

Diversidade da ictiofauna de riachos de cabeceira em paisagens antropizadas na bacia do Alto Paraguai

Ichthyofauna diversity of headwaters streams in landscapes anthropogenic in the Upper Paraguay basin.

RESUMO

A estruturação das assembleias de peixes em riachos de cabeceira sofre forte influência dos modelos de uso e ocupação do solo. O avanço da fronteira agrícola tem se mostrado uma das principais ameaças às comunidades desses ambientes. Este estudo teve como objetivo avaliar a influência das formas de uso e ocupação do solo sobre a estrutura da comunidade de peixes em riachos de cabeceira, localizados na bacia do Alto Paraguai, Mato Grosso, Brasil. As amostragens foram realizadas nos riachos Ararão, Queima Pé e Russo, no município de Tangará da Serra, MT, usando rede de arrasto e peneira, entre os meses de julho e dezembro de 2013. Foram coletados 4.192 indivíduos pertencentes a 35 espécies, sendo que Moenkhausia lopesi (Britski & de Silimon, 2001) e Knodus moenkhausii (Eigenmann & Kennedy, 1903) mostraram-se dominantes, representando 68,5% dos indivíduos amostrados. A riqueza e abundância não apresentaram diferenças significativas entre os três riachos, porém o índice de diversidade de Shannon foi maior no riacho Russo (H´ = 2,33). Os altos percentuais de conversão da vegetação nativa em campos de agricultura (49,20%) e pecuária (30,69%), revelaram forte relação negativa da agricultura com a riqueza, indicando que quanto menor a área de agricultura maior é a riqueza.

PALAVRAS-CHAVE
Peixes; riqueza; abundância; desmatamento

ABSTRACT

The advance of the agricultural frontier is one of the biggest threats to the communities' structure of the fish assemblages in headwaters streams. The influence of land use and occupation on the fish assemblages structure in headwater streams was evaluated in three stream reaches in the Upper Paraguay River Basin, state of Mato Grosso, Brazil. Samples were collected from July to December 2013 using dragging net and sieve in Ararão, Queima Pé e Russo streams, municipality of Tangará da Serra. Totals of 35 species encompassing 4,192 individuals were collected, and the dominant species within were Moenkhausia lopesi (Britski & de Silimon, 2001) e Knodus moenkhausii (Eigenmann & Kennedy, 1903), accounting for 68.5% of the individuals. There were no significant differences in richness or abundance among the three streams, but Shannon diversity index was higher in the Russo stream (H´ = 2,33). The high percentage of native vegetation converted into agriculture crops (49.20%) and cattle raising (30.69%), disclosed a strong negative relationship between agriculture and richness, showing that as the agriculture fields become smaller the species richness becomes larger.

KEYWORDS
Fish; richness; abundance; deforestation

As mudanças no uso do solo e a consequente degradação dos habitats conduzem a um declínio da biodiversidade local em vários biomas e ecossistemas (Sala et al., 2000Sala, O. E.; Chapin, F. S.; Armesto, J. J.; Berlow, E.; Bloomfield, J.; Dirzo, R.; Huber-Sanwald, E.; Huenneke, L. F.; Jackson, R. B.; Kinzig, A.; Leemans, R.; Lodge, D. M.; Mooney, H. A.; Oesterheld, M.; Poff, N. L.; Sykes, M. T.; Walker, B. H.; Walker, M. & Wall, D. H. 2000. Biodiversity - global biodiversity scenarios for the year 2100. Science 287:1770-1774. ). Os desmatamentos originários desse processo têm efeitos negativos sobre as assembleias de peixes em ecossistemas aquáticos tropicais, levando a uma redução da qualidade do habitat, mudanças na disponibilidade de recursos alimentares e na diversidade de peixes (Bojsen & Barriga, 2002Bojsen, B. H. & Barriga, R. 2002. Effects of deforestation on fish community structure in Ecuadorian Amazon streams. Freshwater Biology 47(11):2246-2260.; Casatti et al., 2009Casatti, L.; Ferreira, C. P. & Carvalho, F. R. 2009. Grass-dominated stream sites exhibit low fish species diversity and dominance by guppies: an assessment of two tropical pasture river basins. Hydrobiologia 632:273-283.).

Nas regiões de cabeceiras esse panorama é ainda mais preocupante (Buckup, 1999Buckup, P. A. 1999. Sistemática e biogeografia de peixes de riachos. In: Caramaschi, E. P.; Mazzoni, R. & Peres-Neto, P. R. eds. Ecologia de Peixes de Riachos. Série Oecologia Brasiliensis. Rio de Janeiro, UFRJ, p. 91-138.), uma vez que os riachos abrigam espécies de pequeno porte que possuem distribuição geográfica restrita, alta taxa de endemismo, pouco ou nenhum valor comercial e intensa dependência da vegetação ciliar para alimentação, locais de reprodução e abrigo (Buckup, 1999Buckup, P. A. 1999. Sistemática e biogeografia de peixes de riachos. In: Caramaschi, E. P.; Mazzoni, R. & Peres-Neto, P. R. eds. Ecologia de Peixes de Riachos. Série Oecologia Brasiliensis. Rio de Janeiro, UFRJ, p. 91-138.; Langeani et al., 2005Langeani, F.; Casatti, L.; Gameiro, H. S.; Carmo, A. B. & Rossa-Feres, D. C. 2005. Riffle and pool fish communities in a large stream of southeastern Brazil. Neotropical Ichthyology 3(2):305-311. ). Em regiões agrícolas, os impactos ambientais são ainda mais intensos, afetando a qualidade da água, a biodiversidade, sedimentação e os níveis de nutrientes (Corbi et al., 2006Corbi, J. J.; Strixino, S. T.; dos Santos, A. & Del Grande, M. 2006. Environmental diagnostic of metals and organochlorinated compounds in streams near sugar cane plantations activity (São Paulo State, Brazil). Química Nova 29(1):61-65.; Riseng et al., 2011Riseng, C. M.; Wiley, M. J.; Black, R. W. & Munn, M. D. 2011. Impacts of agricultural land use on biological integrity: a causal analysis. Ecological Applications 21(8):3128-3146.).

Os riachos de cabeceira geralmente nascem em terrenos íngremes de serras e montanhas, são rasos, com fundo arenoso ou pedregoso devido à correnteza da água, em decorrência da declividade encontrada nos terrenos (Rodrigues & Leitão-Filho, 2000Rodrigues, R. R. & Leitão-Filho, H. F. 2000. Matas ciliares: conservação e Recuperação. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo . 320p.). Além disso, os riachos apresentam baixo quociente entre a área do canal e sua área de drenagem (Karr & Schlosser, 1978Karr, J. R. & Schlosser, I. J. 1978. Water resources and the land-water interface. Science 201:229-234.), fazendo com que o meio terrestre exerça forte influência sobre o meio aquático.

Estes ambientes, muitas vezes, abrigam espécies de peixes com distribuição restrita ou ainda desconhecidas pela ciência (Araújo & Tejerina-Garro, 2007Araújo, N. B. & Tejerina-Garro, F. L. 2007. Composição e diversidade da ictiofauna em riachos do Cerrado, bacia do ribeirão Ouvidor, alto rio Paraná, Goiás. Revista Brasileira de Zoologia 24(4):981-990. ). Neste contexto, pela grande dependência dessas espécies desses ecossistemas peculiares, torna-se imprescindível a manutenção das características naturais das regiões de cabeceira das unidades hidrográficas (Aquino et al., 2009Aquino, P. P. U.; Schneider, M.; Martins-Silva, M. J.; Padovesi-Fonseca, C.; Arakawa, H. B. & Cavalcanti, D. R. 2009. The fish fauna of Parque Nacional de Brasília, upper Paraná River basin, Federal District, Central Brazil. Biota Neotropica 9(1):1217-1230.). Sendo assim, o objetivo desse estudo foi avaliar a influência das formas de uso e ocupação do solo sobre a estrutura da comunidade de peixes em riachos de cabeceira da bacia do Alto Paraguai.

MATERIAL E MÉTODOS

O presente estudo foi realizado em três riachos de cabeceira, afluentes da margem esquerda do rio Sepotuba, localizados no município de Tangará da Serra, Mato Grosso. Os riachos amostrados foram: Ararão, Queima Pé e Russo (Fig. 1). O Sepotuba é um dos principais tributários do rio Paraguai, responsável pela drenagem do Pantanal (Mamede & Alho, 2006Mamede, S. B. & Alho, C. J. R. 2006. Response of wild mammals to seasonal shrinking-and-expansion of habitats due to flooding regime of the Pantanal, Brazil. Brazilian Journal of Biology 66(4):991-998.).

Fig. 1
Mapa de localização da área de estudo e das microbacias dos riachos Ararão (A), Queima Pé (B) e Russo (C), afluentes da margem esquerda do rio Sepotuba, no estado de Mato Grosso, Brasil.

As coletas foram realizadas em três sítios amostrais em cada riacho. Esses sítios compreenderam um trecho de cerca de 50 metros. Com a finalidade de amostrar toda a extensão do riacho, foi estabelecido um sítio na proximidade da cabeceira, um sítio intermediário e um na foz de cada riacho junto ao rio Sepotuba (Fig. 1).

Em cada sítio de amostragem foi aplicada uma combinação de dois métodos de captura. O primeiro método consistiu no uso de peneira com 1,28 m2 e 3 mm entre-nós. Durante uma hora, foi realizada procura livre tanto na região litorânea quanto limnética. O segundo método envolveu três lances de rede de arrasto contracorrente, medindo 2,5 x 10 m e malha com 3 mm entre-nós. As amostragens foram realizadas nos meses de julho, setembro e dezembro de 2013, sendo realizadas nove amostragens em cada riacho (licença de coleta SISBIO 23253).

Os indivíduos coletados foram fixados em formol 10% por cerca de 72 horas e, após este período, foram lavados em água corrente, preservados em álcool 70% e identificados.

Para as análises estatísticas, a riqueza foi considerada como número de espécies e a abundância, como o número absoluto de indivíduos por espécie. Para verificar a variação na riqueza e na abundância entre os três riachos foi utilizado o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis e, para avaliar a diversidade, foi aplicado o índice de Shannon e de equitabiliade de Pielou. A partir dos dados de presença e ausência, foi elaborada uma curva de acúmulo de espécies, a fim de verificar a suficiência das coletas realizadas utilizando o índice Sobs Mao Tau (Mao & Colwell, 2005Mao, C. X. & Colwell, R. K. 2005. Estimation of species richness: mixture models, the role of rare species, and inferential challenges. Ecology 86:1143-1153.). Para avaliar as diferenças quanto à composição de espécies entre as comunidades dos três riachos foi realizada uma análise de similaridade (ANOSIM) e os dados foram ordenados em um Escalonamento Multidimensional Não-Métrico (NMDS). As análises foram realizadas no programa PAST (versão 2.17c) (Hammer et al., 2001Hammer, Ø.; Harper, D. A. T. & Rian, P. D. 2001. Past: Palaeonthological statistics software package for education and data analysis. Version 2.17c.).

Para avaliar a influência das classes de uso e cobertura do solo sobre a riqueza foram utilizados Modelos Lineares Generalizados (GLM) com distribuição de Poisson. A existência de multicolinearidade entre as variáveis preditoras foi verificada por meio do Fator de Inflação da Variância (VIF) de cada variável, sendo excluída a que apresentou VIF ≥ 10 (Dormann et al., 2013Dormann, C. F.; Elith, J.; Bacher, S.; Buchmann, C.; Carl, G.; Carré, G.; Marquéz, J. R. G.; Gruber, B.; Lafourcade, B.; Leitão, P. J.; Munkemuller, T.; MacClean, C.; Osborne, P. E.; Reineking, B.; Schroder, B.; Skidmore, A. K.; Zurrel, D. & Lautenbach, S. 2013. Collinearity: a review of methods to deal with it and a simulation study evaluating their performance. Ecography 36:027-046.). O melhor modelo foi selecionado com base no menor valor de Critério de Informação de Akaike (AIC). Para que os modelos com diferença entre AIC's menor ou igual a 2 (∆ AIC≤2) não fossem considerados iguais (Burnham & Anderson, 2004Burnham, K. P. & Anderson, D. R. 2004. Multimodel inference understanding AIC and BIC model selection. Sociologial Methods & Research 33:261-304.), foi selecionado o modelo com maior peso, empregando a abordagem de model averaging. As análises foram realizadas no R 3.2.2 utilizando o pacote glmulti, BiodiveristyR e MuMIn.

Para análise de uso do solo foram utilizadas imagens do catálogo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), satélite Resourcesat do ano de 2013. Os dados foram processados no sistema ArcGIS. Em cada sítio de amostragem foi criado um buffer com 200 m de raio dentro dos quais foram quantificadas as principais formas de uso do solo.

A classificação do uso do solo foi feita de forma supervisionada, através do algoritmo de Battacharia (Moreira, 2005Moreira, M. A. 2005. Fundamentos do sensoriamento remoto e metodologias de aplicação. Viçosa, Editora da UFV. 307p.). Para o desenvolvimento da metodologia foram selecionadas áreas com tipo de uso do solo conhecidas e o algoritmo reconhece áreas semelhantes baseados nas propriedades espectrais da imagem.

RESULTADOS

As formas de uso e ocupação do solo identificadas nas microbacias dos riachos Ararão, Queima Pé e Russo indicam que grande parte da vegetação nativa foi convertida. Cinco classes de uso do solo foram identificadas: vegetação, pastagem, agricultura, água e urbanização. A área total das três microbacias é de 58.791 ha e as formas dominantes de uso o solo foram a agricultura (49,20%) - com predomínio de cultivo de soja e cana de açúcar, seguida pela pecuária (30,69%). A vegetação nativa corresponde apenas a 15,21% do total da área das bacias e 2,32% é referente à presença de água (Tab. I).

Tab. I
Distribuição das classes temáticas de uso e ocupação do solo encontradas nas microbacias dos Riachos Ararão, Queima- Pé e Russo, estado do Mato Grosso, baseada em imagens do catálogo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), satélite Resourcesat, 2013.

Em todos os riachos foram capturados 4.192 indivíduos pertencentes a seis ordens, 13 famílias e 35 espécies (Tab. II). A riqueza nos sítios amostrais variou entre oito e 20 espécies (média = 14,66; DP = 3,74), sendo que os sítios situados na foz de cada um dos riachos com o rio Sepotuba apresentaram maior riqueza. As ordens dominantes em termos de riqueza e abundância foram Characiformes (18 espécies e 3.857 indivíduos) e Siluriformes (11 espécies e 240 indivíduos). As famílias mais representativas quanto ao número de espécies foram Characidae (37%) e Loricariidae (22%).

Tab. II
Lista de espécies de peixes e suas respectivas abundâncias por sítio amostral (S.1 próximo à nascente; S.2 intermediário e S3 próximo à foz no rio Sepotuba) dos riachos de cabeceira afluentes do rio Sepotuba, Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil, no período entre julho e setembro de 2013.

No riacho Ararão foram capturados 1.921 indivíduos e 25 espécies, no Queima Pé, 1.396 indivíduos e 23 espécies e, no Russo, 874 indivíduos e 27 espécies. Não foi observada diferença significativa na riqueza (H = 4,357; p = 0,110) tampouco na abundância (H = 4,095; p = 0,129) entre os três riachos. A GLM revelou uma forte relação negativa da agricultura com a riqueza (Tab. III), indicando que quanto menor o percentual de área destinada à agricultura maior é a riqueza.

Tab. III
Parâmetro (inclinação) de estimativas de variáveis explicativas do Modelo Linear Generalizado (GLM) para riqueza e abundância de peixes dos riachos de cabeceira Ararão, Queima Pé e Russo, bacia do Alto Paraguai, Mato Grosso, no período entre julho e setembro de 2013. Valores de significância: *p<0,05,***p<0,001; "a" = inclinação para as variáveis e desvio padrão (DP); "b" = percentual de desvio explicado para cada modelo (DE - %); "c" = valor do critério de informação de Akaike para cada modelo corrigido (AICc) (Riqu, riqueza; agri, agricultura; past, pastagem; veget, vegetação nativa).

Por outro lado, os índices de diversidade de Shannon e equitabilidade de Pielou demonstraram diferenças entre os riachos, indicando que o Russo possui maior diversidade e equitabilidade (H´ = 2,33; J = 0,707), seguido pelo Queima Pé (H´ = 1,651; J = 0,526) e pelo Ararão (H´ = 1,081; J = 0,340). Apesar do esforço empregado e do uso de mais de um método de coleta, a curva de rarefação de espécies não atingiu uma assíntota (Fig. 2), indicando que novas espécies podem ser encontradas com o aumento do esforço amostral.

Fig. 2
Curva de acúmulo de espécies de peixes por amostragens nos riachos; Ararão, Queima Pé e Russo, município de Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil, no período de julho a dezembro de 2013. Linha contínua representa o índice Sobs Mao Tao e as linhas tracejadas o intervalo de confiança (95%).

A composição de espécies da ictiofauna entre os riachos foi diferente (ANOSIM r = 0,219; p = 0,002; 9999 permutações). A ordenação por NMDS (Fig. 3) demonstrou uma evidente separação entre os riachos Ararão e Russo, enquanto que o riacho Queima Pé apresentou um claro compartilhamento de espécies com os outros dois riachos.

Fig. 3
Escalonamento Multidimensional Não-Métrico (NMDS) baseado na matriz de similaridade de Bray Curtis, demonstrando o agrupamento baseado na composição de espécies. Quadrados, triângulos e círculos representam os riachos Ararão, Queima Pé e Russo, respectivamente. Stress = 0,261.

Apenas Moenkhausia lopesi (Britski & de Silimon, 2001) e Knodus moenkhausii (Eigenmann & Kennedy, 1903) foram comuns a todos os sítios amostrais. Em termos de abundância, essas duas espécies também foram dominantes e, juntas, representaram 68,5% dos indivíduos coletados, com 55,2%, e 13,3%, respectivamente. Por outro lado, Hyphessobrycon herbertaxelrodi (Géry, 1961), Curimatella dorsalis (Eigenmann & Eigenmann, 1889), Steindachnerina brevipinna (Eigenmann & Eigenmann, 1889), Hoplias malabaricus (Bloch, 1794), Melanorivulus punctatus (Boulenger, 1895) e Curculionichthys paresi (Roxo, Zawadzki & Troy, 2014) apresentaram distribuição restrita e foram encontradas em apenas um dos sítios amostrais (Tab. II).

DISCUSSÃO

A heterogeneidade ambiental e a qualidade do habitat atuam como fatores chave para a estruturação das assembleias de peixes, tendo em vista que as condições e a disponibilidade de recursos no habitat influenciam a distribuição e a coexistência das espécies (Shmida & Wilson, 1985Shmida, A. & Wilson, M. V. 1985. Biological determinants of species diversity. Journal of Biogeography 12:1-20.). As microbacias dos riachos Ararão, Queima Pé e Russo apresentam altos índices de conversão das matas nativas em habitats antrópicos devido ao desmatamento para agricultura e pecuária. Em riachos neotropicais, o desmatamento pode afetar a estrutura das assembleias de peixes e o ambiente aquático (Bojsen & Barriga, 2002Bojsen, B. H. & Barriga, R. 2002. Effects of deforestation on fish community structure in Ecuadorian Amazon streams. Freshwater Biology 47(11):2246-2260.).

A degradação do habitat físico geralmente leva à simplificação do substrato e à redução da coluna de água, devido ao excesso de sedimentação ou assoreamento (Casatti et al., 2006Casatti, L.; Langeani, F.; Silva, A. M. & Castro, R. M. C. 2006. Stream fish, water and habitat quality in a pasture dominated basin, southeastern Brazil. Brazilian Journal of Biology 66(2b):681-696. ). Assim, as matas ciliares têm a função de proteger os riachos desses processos degradantes, sendo que as maiores riquezas de peixes são encontradas em locais com maior cobertura vegetal e mata ciliar preservada (Cetra & Petrere Jr., 2007Cetra, M. & Petrere Jr., M. 2007. Associations between fish assemblages and riparian vegetation in the Corumbataí River Basin (SP). Brazilian Journal of Biology 67(2):191-195.). Apesar de uma paisagem degradada, ainda foram registradas um número alto de espécies (n = 35). Estudando na mesma região Krinski & Miyazawa (2008Krinski, D. & Miyazawa, C. S. 2008. Peixes de riachos de cabeceira de Tangará da Serra-Mato Grosso: Lista de espécies e abordagem citogenética. Cuiabá, KCM Editora. 158p.) e Krinski et al. (2015)Krinski, D.; Carmo, E. J. & Miyazawa, C. S. 2015. Ichthyofauna of headwaters from Sepotuba River Basin, Upper Paraguay River Basin, Tangará da Serra, Mato Grosso State, Brazil. Pan-American Journal of Aquatic Sciences 10:283-292. registraram, respectivamente, 30 e 31 espécies.

A predominância das ordens Characiformes e Siluriformes, assim como a dominância das famílias Characidae e Loricariidae, é consistente com o padrão esperado para a Região Neotropical (Lowe-McConnell, 1999Lowe-McConnell, R. H. 1999. Estudos ecológicos de comunidades de peixes tropicais. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. 534p. ) e para o Brasil (Reis et al., 2003Reis, R. E.; Kullander, S. O. & Ferraris, C. J. 2003. Check list of the freshwater fishes of South and Central America. Porto Alegre, EDIPUCRS. 742p. ; Buckup et al., 2007Buckup, P. A.; Menezes, N. A. & Gazzi, M. S. 2007. Catálogo das espécies de peixes de água doce do Brasil. Rio de Janeiro, Museu Nacional. 195p.). Nessas duas famílias está reunida a maioria das espécies registradas no presente estudo, porém, as abundâncias não estão distribuídas de forma equitativa.

As altas abundâncias registradas para M. lopesi e K. moenkhausii podem estar associadas, entre outros fatores, à capacidade dessas espécies de mudarem de categoria trófica conforme o trecho do riacho (Bennemann et al., 2011Bennemann, S. T.; Galves, W. & Capra, L. G. 2011. Recursos alimentares utilizados pelos peixes e estrutura trófica de quatro trechos no reservatório capivara (rio Paranapanema). Biota Neotropica 11(1):63-71.). O comportamento alimentar oportunista é uma importante estratégia para a colonização mesmo em ambientes fisicamente impactados por ação antrópica (Ceneviva-Bastos & Casatti, 2007Ceneviva-Bastos, M. E. & Casatti, L. 2007. Feeding opportunism of Knodus moenkhausii (Teleostei, Characidae): an abundant species in streams of the northwestern in the state of São Paulo, Brazil. Iheringia, Série Zoologia 97(1):7-15.). Além disso, Castro (1999Castro, R. M. C. 1999. Evolução da ictiofauna de riachos sul-americanos: padrões gerais e possíveis processos causais. In: Caramaschi, E. P.; Mazzoni, R. & Peres-Neto, P. R. eds. Ecologia de Peixes de Riachos, Série Oecologia Brasiliensis. Rio de Janeiro, UFRJ, p.139-155. ) sugeriu que o pequeno porte dos peixes seria responsável por conferir grande adaptabilidade à ambientes lóticos neotropicais, como riachos de cabeceira.

O uso do solo é um dos principais fatores que influenciam a composição de espécies em assembleias de peixes em riachos, principalmente devido ao desmatamento da vegetação das margens e à implantação da agricultura (Harding et al.,1998Harding, J. S.; Benfield, E. F.; Bolstad, P. V.; Helfman, G. S. & Jones, E. B. D. 1998. Stream biodiversity: the ghost of land use past. Proceedings of the National Academy of Sciences 95:14843-14847.; Bojsen & Barriga, 2002Bojsen, B. H. & Barriga, R. 2002. Effects of deforestation on fish community structure in Ecuadorian Amazon streams. Freshwater Biology 47(11):2246-2260.). Além de sofrer essa interferência, o riacho Ararão recebe despejos de efluentes domésticos em seu curso intermediário, sendo que o aumento desses dejetos pode levar a alterações na composição da comunidade devido à grande quantidade de matéria orgânica na água (Casatti et al., 2006Casatti, L.; Langeani, F.; Silva, A. M. & Castro, R. M. C. 2006. Stream fish, water and habitat quality in a pasture dominated basin, southeastern Brazil. Brazilian Journal of Biology 66(2b):681-696. ). O aumento de compostos orgânicos pode proporcionar um ambiente com alta disponibilidade de alimento para peixes detritívoros, como os curimatídeos C. dorsalis e S. brevipinna, que apresentam adaptações em seu sistema digestivo relacionadas ao consumo de detritos, flocos de matéria orgânica decomposta e algas filamentosas (Queiroz et al., 2013Queiroz, L. J.; Torrente-Vilara, G.; Ohara, W. M.; Pires, T. H. S.; Zuanon, J. & Doria, C. R. C. 2013. Peixes do rio madeira. São Paulo, Dialeto Latin American Documentary. 399p.).

O uso e a ocupação do solo nas microbacias dos riachos Ararão, Queima Pé e Russo demonstram que a conversão da vegetação nativa em campos de agricultura e pastagem afeta a comunidade de peixes. Em áreas com predomínio de agricultura houve uma redução na riqueza de espécies, indicando que, quanto maior a área cultivada, menor é a riqueza. Por outro lado, a abundância pode não sofrer a mesma interferência, ocorrendo um aumento de espécies oportunistas que são capazes de sobreviver nas novas condições criadas (Bojsen & Barriga, 2002Bojsen, B. H. & Barriga, R. 2002. Effects of deforestation on fish community structure in Ecuadorian Amazon streams. Freshwater Biology 47(11):2246-2260.).

Agradecimentos

Ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), pela licença concedida e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) pela bolsa de mestrado à primeira autora. Aos proprietários rurais que autorizaram a entrada em suas fazendas para realização das coletas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Aquino, P. P. U.; Schneider, M.; Martins-Silva, M. J.; Padovesi-Fonseca, C.; Arakawa, H. B. & Cavalcanti, D. R. 2009. The fish fauna of Parque Nacional de Brasília, upper Paraná River basin, Federal District, Central Brazil. Biota Neotropica 9(1):1217-1230.
  • Araújo, N. B. & Tejerina-Garro, F. L. 2007. Composição e diversidade da ictiofauna em riachos do Cerrado, bacia do ribeirão Ouvidor, alto rio Paraná, Goiás. Revista Brasileira de Zoologia 24(4):981-990.
  • Bennemann, S. T.; Galves, W. & Capra, L. G. 2011. Recursos alimentares utilizados pelos peixes e estrutura trófica de quatro trechos no reservatório capivara (rio Paranapanema). Biota Neotropica 11(1):63-71.
  • Bojsen, B. H. & Barriga, R. 2002. Effects of deforestation on fish community structure in Ecuadorian Amazon streams. Freshwater Biology 47(11):2246-2260.
  • Buckup, P. A. 1999. Sistemática e biogeografia de peixes de riachos. In: Caramaschi, E. P.; Mazzoni, R. & Peres-Neto, P. R. eds. Ecologia de Peixes de Riachos. Série Oecologia Brasiliensis. Rio de Janeiro, UFRJ, p. 91-138.
  • Buckup, P. A.; Menezes, N. A. & Gazzi, M. S. 2007. Catálogo das espécies de peixes de água doce do Brasil. Rio de Janeiro, Museu Nacional. 195p.
  • Burnham, K. P. & Anderson, D. R. 2004. Multimodel inference understanding AIC and BIC model selection. Sociologial Methods & Research 33:261-304.
  • Casatti, L.; Ferreira, C. P. & Carvalho, F. R. 2009. Grass-dominated stream sites exhibit low fish species diversity and dominance by guppies: an assessment of two tropical pasture river basins. Hydrobiologia 632:273-283.
  • Casatti, L.; Langeani, F.; Silva, A. M. & Castro, R. M. C. 2006. Stream fish, water and habitat quality in a pasture dominated basin, southeastern Brazil. Brazilian Journal of Biology 66(2b):681-696.
  • Castro, R. M. C. 1999. Evolução da ictiofauna de riachos sul-americanos: padrões gerais e possíveis processos causais. In: Caramaschi, E. P.; Mazzoni, R. & Peres-Neto, P. R. eds. Ecologia de Peixes de Riachos, Série Oecologia Brasiliensis. Rio de Janeiro, UFRJ, p.139-155.
  • Ceneviva-Bastos, M. E. & Casatti, L. 2007. Feeding opportunism of Knodus moenkhausii (Teleostei, Characidae): an abundant species in streams of the northwestern in the state of São Paulo, Brazil. Iheringia, Série Zoologia 97(1):7-15.
  • Cetra, M. & Petrere Jr., M. 2007. Associations between fish assemblages and riparian vegetation in the Corumbataí River Basin (SP). Brazilian Journal of Biology 67(2):191-195.
  • Corbi, J. J.; Strixino, S. T.; dos Santos, A. & Del Grande, M. 2006. Environmental diagnostic of metals and organochlorinated compounds in streams near sugar cane plantations activity (São Paulo State, Brazil). Química Nova 29(1):61-65.
  • Dormann, C. F.; Elith, J.; Bacher, S.; Buchmann, C.; Carl, G.; Carré, G.; Marquéz, J. R. G.; Gruber, B.; Lafourcade, B.; Leitão, P. J.; Munkemuller, T.; MacClean, C.; Osborne, P. E.; Reineking, B.; Schroder, B.; Skidmore, A. K.; Zurrel, D. & Lautenbach, S. 2013. Collinearity: a review of methods to deal with it and a simulation study evaluating their performance. Ecography 36:027-046.
  • Hammer, Ø.; Harper, D. A. T. & Rian, P. D. 2001. Past: Palaeonthological statistics software package for education and data analysis. Version 2.17c.
  • Harding, J. S.; Benfield, E. F.; Bolstad, P. V.; Helfman, G. S. & Jones, E. B. D. 1998. Stream biodiversity: the ghost of land use past. Proceedings of the National Academy of Sciences 95:14843-14847.
  • Karr, J. R. & Schlosser, I. J. 1978. Water resources and the land-water interface. Science 201:229-234.
  • Krinski, D.; Carmo, E. J. & Miyazawa, C. S. 2015. Ichthyofauna of headwaters from Sepotuba River Basin, Upper Paraguay River Basin, Tangará da Serra, Mato Grosso State, Brazil. Pan-American Journal of Aquatic Sciences 10:283-292.
  • Krinski, D. & Miyazawa, C. S. 2008. Peixes de riachos de cabeceira de Tangará da Serra-Mato Grosso: Lista de espécies e abordagem citogenética. Cuiabá, KCM Editora. 158p.
  • Langeani, F.; Casatti, L.; Gameiro, H. S.; Carmo, A. B. & Rossa-Feres, D. C. 2005. Riffle and pool fish communities in a large stream of southeastern Brazil. Neotropical Ichthyology 3(2):305-311.
  • Lowe-McConnell, R. H. 1999. Estudos ecológicos de comunidades de peixes tropicais. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. 534p.
  • Mamede, S. B. & Alho, C. J. R. 2006. Response of wild mammals to seasonal shrinking-and-expansion of habitats due to flooding regime of the Pantanal, Brazil. Brazilian Journal of Biology 66(4):991-998.
  • Mao, C. X. & Colwell, R. K. 2005. Estimation of species richness: mixture models, the role of rare species, and inferential challenges. Ecology 86:1143-1153.
  • Moreira, M. A. 2005. Fundamentos do sensoriamento remoto e metodologias de aplicação. Viçosa, Editora da UFV. 307p.
  • Queiroz, L. J.; Torrente-Vilara, G.; Ohara, W. M.; Pires, T. H. S.; Zuanon, J. & Doria, C. R. C. 2013. Peixes do rio madeira. São Paulo, Dialeto Latin American Documentary. 399p.
  • Reis, R. E.; Kullander, S. O. & Ferraris, C. J. 2003. Check list of the freshwater fishes of South and Central America. Porto Alegre, EDIPUCRS. 742p.
  • Riseng, C. M.; Wiley, M. J.; Black, R. W. & Munn, M. D. 2011. Impacts of agricultural land use on biological integrity: a causal analysis. Ecological Applications 21(8):3128-3146.
  • Rodrigues, R. R. & Leitão-Filho, H. F. 2000. Matas ciliares: conservação e Recuperação. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo . 320p.
  • Sala, O. E.; Chapin, F. S.; Armesto, J. J.; Berlow, E.; Bloomfield, J.; Dirzo, R.; Huber-Sanwald, E.; Huenneke, L. F.; Jackson, R. B.; Kinzig, A.; Leemans, R.; Lodge, D. M.; Mooney, H. A.; Oesterheld, M.; Poff, N. L.; Sykes, M. T.; Walker, B. H.; Walker, M. & Wall, D. H. 2000. Biodiversity - global biodiversity scenarios for the year 2100. Science 287:1770-1774.
  • Shmida, A. & Wilson, M. V. 1985. Biological determinants of species diversity. Journal of Biogeography 12:1-20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2016
  • Aceito
    17 Out 2016
Museu de Ciências Naturais Museu de Ciências Naturais, Secretária do Meio Ambiente e Infraestrutura, Rua Dr. Salvador França, 1427, Jardim Botânico, 90690-000 - Porto Alegre - RS - Brasil, Tel.: + 55 51- 3320-2039 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: iheringia-zoo@fzb.rs.gov.br