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Assistência institucionalizada a indivíduos portadores de deficiência mental: dimensões esquecidas

Institutionalized assistence to the mental deficiency's patients: forgetables dimensions

Resumos

O estudo foi realizado em uma instituição que existe indivíduos portadores de deficiência mental. Aqui denominada CASA GRANDE, a instituição abriga cerca de 900 internos. O cuidado direto aos internos é prestado por aproximadamente 400 pajens, formalmente subordinadas ao Serviço de Enfermagem. O propósito desse estudo foi conhecer e compreender como se dá o trabalho das pajens nesse contexto. Para tanto, partiu-se das representações que estas tem à respeito desse cuidar. A análise dessas representações propiciou a compreensão da dimensão simbólica desse trabalho, bem como da psicodinâmica aí compreendida, tanto ao nível da mulher trabalhadora, grupo e instituição.

Simbólico do trabalho; Dimensão psicossocial do trabalho de enfermagem; Psicodinâmica do cuidar


This study was carried out in en institution which assists mentally impaired individuals, and are kept as inters. The institution, herein denominated CASA GRANDE, houses approximately 900 interns. The direct care of the is providad by, on average, 400 nursing assistants. The purpose of this study was to gain knowlwdge of, and comprehend, to work of the nursing assistants in this context, through the representations they have regarding their daily chores. The analysis of these representations provided the compreension of the symbolic dimension of the work, having demonstrated its movements in the psyco-social (individual), social-dynamic (group), institutional (institution) and societal (community) levels.

Symbolic of the work; Psyco-social dimension of the work in nursing


ARTIGO ORIGINAL

Assistência institucionalizada a indivíduos portadores de deficiência mental: dimensões esquecidas

Institutionalized assistence to the mental deficiency's patients: forgetables dimensions

Maria Helena Trench Ciampone

Enfermeira. Doutora em Psicologia Social. Professor Doutor do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da USP

RESUMO

O estudo foi realizado em uma instituição que existe indivíduos portadores de deficiência mental. Aqui denominada CASA GRANDE, a instituição abriga cerca de 900 internos. O cuidado direto aos internos é prestado por aproximadamente 400 pajens, formalmente subordinadas ao Serviço de Enfermagem. O propósito desse estudo foi conhecer e compreender como se dá o trabalho das pajens nesse contexto. Para tanto, partiu-se das representações que estas tem à respeito desse cuidar. A análise dessas representações propiciou a compreensão da dimensão simbólica desse trabalho, bem como da psicodinâmica aí compreendida, tanto ao nível da mulher trabalhadora, grupo e instituição.

Unitermos: Simbólico do trabalho. Dimensão psicossocial do trabalho de enfermagem. Psicodinâmica do cuidar.

ABSTRACT

This study was carried out in en institution which assists mentally impaired individuals, and are kept as inters. The institution, herein denominated CASA GRANDE, houses approximately 900 interns. The direct care of the is providad by, on average, 400 nursing assistants. The purpose of this study was to gain knowlwdge of, and comprehend, to work of the nursing assistants in this context, through the representations they have regarding their daily chores. The analysis of these representations provided the compreension of the symbolic dimension of the work, having demonstrated its movements in the psyco-social (individual), social-dynamic (group), institutional (institution) and societal (community) levels.

Uniterms: Symbolic of the work. Psyco-social dimension of the work in nursing.

I Introdução

A idéia de realizar um estudo sobre a assistência institucionalizada a individuos portadores de deficiência mental, enfocando a saúde mental do trabalhador de enfermagem como uma das Dimensões esquecidas, compreendida nesse tipo de atividade profissional, concretizou-se quando, no final de 1990, a disciplina Administração aplicada à Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP, da qual faço parte como docente, recebeu um convite por parte da Instituição, aqui denominada CASA GRANDE, para prestar assessoria na organização do Serviço de Enfermagem da mesma. A proposta consistia numa tentativa, da então gerência assistencial da Instituição, de modificar condutas e procedimentos assistenciais, por meio do estabelecimento de convênios com universidades que, conforme acreditavam, propiciariam uma rede relacional mais aberta, atuando como avaliação externa do processo assistencial e, principalmente, das relações mantidas dentro da Instituição. Existia, então, por parte do grupo técnico, situado na hierarquia institucional ao nível intermediário, a explicitação do desejo de tornar a CASA um "centro de referência" na assistência aos indivíduos portadores de deficiência mental. O desejo desse grupo, não implicava, contudo, na disposição do grupo diretor em introduzir modificações nas suas estruturas, ou mesmo na forma própria de pensar a Instituição.

O projeto desenvolveu-se durante o período de dois anos, contando com quatro docentes que, nesse tempo, acompanharam as atividades que permeavam os vários espaços institucionais como: reuniões da equipe interdisciplinar, observação da assistência de enfermagem nos diferentes pavilhões, análise dos documentos e registros efetuados por grupos técnicos anteriores, etc.

Fazendo parte da equipe envolvida no projeto e estando cursando pós-graduação, ao nível de doutorado na área de Psicologia Social, tinha como projeto estudar a questão da saúde mental do trabalhador de enfermagem. Assim sendo, comecei a interessar-me por transformar os resultados dessa experiência num trabalho analítico-descritivo que cumprisse as exigências de uma tese de doutorado. Desse modo, este estudo teve por objetivos: conhecer e compreender o trabalho das pajens nesse contexto, por meio das representações que estas possuem de seu cotidiano. A análise dessas representações se encaminharam no sentido de resgatar a dimensão simbólica do trabalho, evidenciando-se que a partir dela, é possível apreender-se a dinâmica das relações e os vínculos entre o grupo das pajens e os internos e entre essas e a direção da instituição

A Instituição, em questão, em muito se assemelha, a meu ver, com o que GOFFMAN (2) define como "Instituição Total", ou seja, lugar de residência e trabalho, onde grande número de indivíduos em igual situação, isolados da sociedade por um período apreciável de tempo, dividem em sua clausura uma rotina diária, administrada formalmente.

De acordo com esse referencial, a CASA GRANDE pode ser incluída na categoria Instituição Total, construída por GOFFMAN, por se tratar de uma Instituição de caráter custodial, onde um número relativamente grande de pessoas (cerca de 900 internos), vivem em regime de internato, em um lugar único, sob uma única autoridade, sujeitos às normas, regras e aos horários estabelecidos para o cumprimento de uma mesma rotina diária. Um outro aspecto, definido pelo autor, em comum com a CASA, é que os internos permanecem sob uma vigilância hierarquizada. contínua e funcional. Nessa definição conceitual, GOFFMAN (2) enfatiza o caráter binário dessas instituições ou seja, de um lado as normas impostas pelo grupo dirigente e de outro a disciplina e os limites impostos aos internos.

Na CASA GRANDE, a equipe dirigente constitui-se por uma Assembléia que é o órgão responsável pela fixação da política institucional, determinação das metas, programas e projetos a serem desenvolvidos e executados pelos órgãos subordinados. Outra instância decisória consiste na Diretoria Executiva, a quem cabe dirigir as atividades da Instituição, como representante da Assembléia.

Ao nível intermediário situa-se a Gerência Assistencial, a quem cabe a coordenação dos diferentes departamentos técnicos, responsáveis pela execução da assistência propriamente dita, ou seja; diagnóstico, tratamento, educação, reabilitação e integração social. Esta Gerência compreende as áreas: clinica, de enfermagem, nutrição, odontologia, farmácia e laboratório, que exercem função complementar de controle e de manutenção da disciplina institucional.

Cabe ressaltar que a equipe de enfermagem era na época composta por 7 enfermeiros; 2 auxiliares de enfermagem; 57 atendentes de enfermagem; 396 pajens; 27 encarregadas de pavilhão e 10 supervisoras de pavilhão.

Devido ao grande contingente de pessoal lotado neste serviço e por partirmos do pressuposto de que a enfermagem consiste no eixo fundamental do funcionamento institucional, pois a grande maioria dos cuidados assistenciais diretos são prestados nesse nível operacional, predominantemente pelas pajens, é que, integrantes desse grupo foram tomados como porta-vozes -das relações ocorridas entre as diferentes equipes, essas e a Direção e essas e o interno.

Constata-se ainda, que a Instituição estrutura-se de modo semelhante ao que DEJOURS(1) classifica como "divisão do modo operatório", ou seja, divisão entre órgãos de concepção intelectual do trabalho e divisão manual do mesmo, fragmentando o pensar e o fazer.

Outro aspecto a ser destacado, diz respeito à representação social, historicamente constituída, à respeito dos indivíduos portadores de deficiência mental, que em muito se assemelha à representação da loucura, e, conseqüentemente ao modo como tem sido conduzida a política assistencial dirigida a esse grupo. Como ponto em comum, destaca-se que de acordo com essas representações, ambos os grupos são considerados contraventores das normas sociais, improdutivos, sendo marginalizados da sociedade por evidenciarem a moléstia social que representam.

Dessas concepções ou representações também decorre que nas instituições prestadoras de assistência à portadores de deficiência mental, encadeiam-se situações semelhantes às observadas nos manicômios, onde o querer individual é relevado em favor de atividades gerais padronizadas: acordar, banhar-se, receber o desjejum, ir aos pátios, almoçar, descansar, lanchar, jantar e dormir. Nessa seqüência, cada atividade é rigorosamente fiscalizada ou "tutelada" pelo nível hierárquico superior.

Ressalta-se, contudo, que apesar das evidências de que o cuidar é rigorosamente tutelado, existe um ponto que constitui a essencialidade desse fazer da enfermagem, particularmente das pajens, que é o significado simbólico atribuído ao processo de cuidar.

Esse simbólico perpassa toda a dinâmica organizacional e, em última instância, consiste na ressonância de uma cultura organizacional que, através de pautas estereotipadas de conduta, vai reforçando o instituído, através de vários mecanismos.

Esta foi a hipótese constituída desde os primeiros contatos com a instituição, que norteou o aprofundamento do estudo.

2 METODOLOGIA

A partir da proposta inicial de tentar conhecer e compreender o trabalho das pajens no contexto da CASA GRANDE, busquei captar o vivencial desse grupo, segundo a representação que os seus integrantes formulam a respeito do próprio cotidiano.

Parti, portanto, das representações expressas no discurso das pajens, procurando analisar o seu conteúdo. Apreendi que esse discurso é portador de fragmentações, oposições, ambigüidades, conflitos e recorrências. Procurei a explicitação desses movimentos nos níveis psicossociais (indivíduo), sociodinâmico (grupo), institucional (instituição) e comunitário (sociedade).

Por se tratar de um estudo da natureza analítica-descritiva, fundamentado em referenciais teóricos da psicologia social e da psicanálise, utilizei-me de fontes diferentes de coleta de dados. Os dados obtidos em uma primeira fase de reconhecimento da realidade consistiram na realização de cerca de trinta entrevistas com ocupantes de diferentes cargos na instituição como: gerente geral, gerente assistencial, coordenador do departamento de atividades interdisciplinares, coordenador do departamento de ensino e pesquisa, membro do Conselho Doutrinário, enfermeiros, psicóloga do departamento de Recursos Humanos, supervisoras e encarregadas dos pavilhões, atendentes de enfermagem e pajens. Um segundo momento de levantamento dos dados consistiu na análise documental sendo-que os dados obtidos até então foram levantados pela equipe de consultoria e deram origem a um primeiro relatório, entregue à Instituição.

Posteriormente, uma terceira fase, da coleta implicou em entrevistas, realizadas individualmente com outras dez pajens, pelo pesquisador, onde explicávamos, a cada uma, os objetivos do estudo, dirigidos ao reconhecimento da vivência delas a respeito do trabalho que desenvolviam. Nesse sentido, pedíamos a cada uma que contassem algo sobre sua história de vida, como e por que vieram trabalhar na instituição e ainda o que tinham ouvido falar ou o que imaginavam que fosse cuidar de indivíduos portadores de deficiência mental.

Após esse relato, que seguia o curso livre de pensamento do entrevistado, indagávamos como este se sentia em relação ao trabalho que desenvolvia na instituição e como percebia o relacionamento interpessoal nesse contexto.

As entrevistas foram todas registradas, com a autorização das entrevistadas, por um segundo elemento colaborador, que fazia parte da equipe de consultoria, sendo que neste momento cumpria o papel de observador não falante.

Logo após o término da entrevista, recompunha-se os discursos obtidos, tentando-se reproduzir fielmente as próprias expressões utilizadas pelas entrevistadas.

Através da convergência de unidades significativas apreendidas nos discursos, agrupou-se as mesmas em temas que geraram capítulos, onde buscou-se aprofundar a compreensão, segundo o referencial adotado. A análise temática será suscintamente descrita , na síntese deste trabalho.

Para a análise do conteúdo, baseei-me no conceito de porta-voz, desenvolvido por PICHON-RIVIERE (5) , psicanalista argentino, estudioso dos processos grupais, onde postula que o indivíduo é o porta-voz de situações emergentes de seu grupo de referência. Para esse autor, o sujeito que enuncia um acontecimento, o faz como porta-voz de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo a que pertence. Assim, fundamentada na técnica operativa desenvolvida por PICHON, interpreta-se o porta-voz, como um dos sujeitos que atua como radar, detectando as fantasias inconscientes do grupo e explicitando-as. Subseqüentemente, assinala-se que o explicitado é também um problema grupal, produto da interação dos membros do grupo entre si que ele, porta-voz, por um processo de identificação subliminar, percebe e anuncia. Assim sendo, o discurso individual possibilita, além do conhecimento do sujeito, a análise de fatores do âmbito social/grupal que o determinam.

Conduzindo a investigação, no sentido de resgatar, a partir do discurso, a vivência subjetiva e a significação do trabalho para as pajens, caminhei na direção do reconhecimento das "estratégias defensivas", como denomina JAQUES (3) e MENZIES (4) ou das "ações adaptativas", como prefere DEJOURS (1), que são elaboradas coletivamente pelo grupo, para defender-se das ansiedades e dos sentimentos ambíguos advindos da difícil tarefa do cuidar, que o trabalho da enfermagem subentende.

O referencial adotado na análise dos dados permitiu reconhecer, na situação cotidiana das pajens, a interface entre a organização do trabalho e a saúde mental desse grupo de trabalhadores no âmbito da CASA GRANDE.

3 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

3.1 A INSTITUIÇÃO CONTEXTUALIZADA

Na medida em que optamos por conhecer a representação social de um grupo (as pajens) sobre a deficiência mental e tentar compreender como essas representações se incorporam no cotidiano de trabalho de uma instituição, nos pareceu importante, também, contextualizar essa instituição. Assim, entendemos este espaço na perspectiva de suas categorias físicas, históricas e simbólicas. O espaço considerado nesta perspectiva não compreende somente a dimensão física, mas reproduz características do conjunto social, historicamente construído.

Da análise documental, apreendeu-se o conteúdo que retrata a história de criação da instituição. Assim, tivemos acesso à: edições especiais de revistas que retratam a instituição; relatórios técnicos; planos de trabalho anual; regimento interno e outros documentos produzidos no âmbito institucional. Além das fontes citadas, outro recurso utilizado foi a entrevista com os colaboradores mais antigos da instituição.

Da história institucional, buscamos resgatar as referências significativas que aparecem tanto nos documentos consultados como nas entrevistas. Quanto a situação de origem da CASA, remonta-se ao ano de 1937, quando um grupo familiar, motivado por situação de doença grave de um dos filhos do casal, passa a dedicar-se ao estudo e prática da Doutrina Espírita. Já em 1943, após a morte do rapaz e, tendo o grupo aumentado o número de adeptos, recebem a doação de um imóvel para a continuação dos trabalhos espirituais que desenvolviam, fundando a primeira sede em 1949, tendo então como proposta iniciar uma escola para crianças carentes em regime de semi-internato.

Consta de todos os relatos e dados registrados as inúmeras dificuldades enfrentadas por esse grupo, para levantamento de recursos financeiros, através de campanhas, que viabilizassem as propostas de continuidade desses trabalhos.

Em janeiro de 1958, é inaugurada, também em local doado, a primeira CASA, tendo já como proposta assistir crianças portadoras de deficiência mental. Consta que o número de 15 crianças, assistidas inicialmente, amplia-se rapidamente para 212, implicando na necessidade de, após um ano, pensar-se na ampliação do local. Dessa forma, inicia-se a construção dos quatro pavilhões existentes, que são inaugurados em 1962, 1964, 1968 e 1974 respectivamente. Pouco tempo após a inauguração do terceiro pavilhão, a CASA GRANDE passa a atender 1.100 internos, o que exigiu a criação de uma estrutura organizacional, representada por diferentes serviços especializados e pessoas qualificadas para o trabalho na área, abrangendo diversas especialidades.

No discurso oficial a respeito dos objetivos institucionais encontra-se descrito:

"Entendendo que o presente, hoje é mais amplo e que as coisas e fatos do mundo mudaram, é hora de aceitarmos o excepcional, deficiente mental conhecê-lo, mais profundamente, com amor, porém seguindo um contexto científico de terapia. O deficiente mental não cabe mais na sociedade como pedinte de nossa bondade, mas sim, como um indivíduo com direitos inalienáveis de ser integrado em uma humanidade à qual até à pouco não pertencia. Nessa conceituação, nossos objetivos estão voltados no sentido de dar ao excepcional, deficiente mental, internado, um atendimento global e atualizado, como ser humano dependente e torná-lo o mais independente possível, integrando-o à família, como primeiro núcleo da sociedade."

Desse discurso apreende-se uma contradição fundamental representada pelo propósito de tornar o interno, o mais independente possível, integrando-o à família, quando na prática mantém-se pela proposta do "internamento" a sua contínua exclusão. Tal exclusão, representa um mundo à parte, dos demais cidadãos, longe de suas famílias, a maioria carentes de recursos para mantê-los.

Quanto às propostas de atendimento, o discurso oficial retrata três diferentes modelos, ou seja: lar-substituto; hospitalar e psicopedagógico. Na prática ocorre a hegemonia do modelo lar-substituto, onde é delegado à pajem o papel de mãe-substituta, que deve resgatar ou formar um vínculo afetivo com os internos, sob a orientação e supervisão da equipe dirigente.

A manutenção dessa prática, assim constituída pelo isolamento social, pode ser explicada pelo papel social depositado na Instituição, pela própria sociedade, de exercer mecanismos para adaptar, normatizar e disciplinar condutas, tendendo a uma homogeneidade social aparente.

Essa violência simbólica, representada pela estrutura que "abriga ao mesmo tempo que isola", ao contrário de outros tipos de violência, não se caracteriza apenas 'com agressão/morte física, mas coloca-se ao nível subjetivo, como agressão/morte psíquica, que em última instância transforma esses indivíduos em mortos sociais. Organiza unidirecionalmente as diferenças, legitima instituições que, como a CASA GRANDE, indicam dois caminhos desprovidos de projetos: o retorno ao convívio social sem nenhum respaldo do Estado ou a segregação definitiva custodiada por pessoas ou entidades isoladas.

Nesse contexto é que se desenvolve a assistência de Enfermagem, que engloba a maioria dos cuidados diretos prestados aos internos. A cada pajem equivale uma proporção de oito internos por plantão de doze horas.

O cuidado direto prestado por esse contingente de pessoal, desprovido de qualquer qualificação profissional, caracteriza-se por um trabalho predominantemente manual.

Contudo, constatou-se que, por mais simples que sejam consideradas as atividades das pajens (banhar, vestir, alimentar, etc), existe aí um "saber" acumulado pela vivência da interação no cotidiano. Trata-se de um "saber-fazer" apreendido do senso comum, ao qual é conferido um sentido pessoal, um aspecto simbólico, que necessariamente precisa ser reconhecido para posteriormente ser trabalhado com o próprio grupo, pois implica em "cargas psíquicas" ou "riscos psicossociais" que afetam a saúde do próprio trabalhador.

SÍNTESE

A instituição estudada foi contextualizada resgatando-se a história de sua criação; finalidades; características do interno e sua localização; modelos de atendimento adotados; estrutura organizacional e método de organização do trabalho.

Correlacionou-se a instância do simbólico com o poder institucional, com a ideologia e com a estruturação do próprio grupo de enfermagem na instituição.

Visualizou-se a organização do trabalho nesse espaço, como abrangente não só da divisão de tarefas em seu modo operatório, como da divisão humana (hierarquia, comando, submissão, adjudicação de papéis, etc), que influencia diretamente nas relações e nos vínculos que vão se constituindo no espaço do trabalho, desenvolvido no contexto de uma instituição total, que se propõe a assistir indivíduos portadores de deficiência mental.

Reconheceu-se além das defesas coletivas, ou ideologias defensivas que esse grupo profissional elege para lutar contra o sofrimento advindo da tarefa primária da enfermagem, o cuidar, que as defesas individuais, classicamente descritas pela psicologia e pela psicanálise, também desempenham um papel importante na manutenção do equilíbrio do indivíduo.

Entre essas defesas individuais a sobre adaptação à situação, faz com que o corpo seja o "buffer", onde se manifestam os sintomas do sofrimento psíquico, numa tentativa de preservar o indivíduo do desequilíbrio psíquico. Isto me levou a considerar que as ansiedades, que as pressões advindas do contato com a tarefa de cuidar, e também de relações interpessoais conflituosas, pautadas no poder coercitivo, mantidas no interior da CASA, não se limitam apenas a causar riscos psíquicos, pondo em risco, também, a saúde física do trabalhador.

A alegação inicial da direção da CASA, de que a enfermagem é a área mais problemática e difícil de ser organizada, não deixa de ser verdadeira; uma vez que é sobre esse trabalho que são projetados maciçamente todos os conteúdos inconscientes dos dirigentes, que não podem ser contidos ou controlados intrapsiquicamente.

Assim, constatou-se que a estrutura social do serviço de Enfermagem é deficiente não só em termos de organização e desempenho das tarefas, mas também no modo de lidar com o sofrimento advindo da situação de trabalho. Como assinala MENZIES, a ineficiência passa a ser uma conseqüência inevitável do sistema de defesa escolhido.

Outro aspecto evidenciado no discurso das pajens é que o principal fator de descontentamento e conflito nas relações de trabalho na CASA GRANDE advém do não reconhecimento do valor do trabalho delas pelas encarregadas, supervisoras e dirigentes Decorre daí que, na impossibilidade de encontrar na organização condições favoráveis para a elaboração da tarefa que desenvolve, o pessoal de enfermagem não consegue beneficiar-se do trabalho, por investir grande quantidade de esforços para dominar seu próprio sofrimento, passando então a identificar-se projetivamente com o interno. Isto implica assumir uma conduta pautada na adaptação passiva à realidade, em não poder transformar o sofrimento em criatividade.

A única saída que resta então, é a compulsão à repetição, que implica na estereotipia dos papéis do sujeito, do grupo e da própria instituição.

Face ao exposto, tem-se que a própria instituição repete a mesma estratégia de exclusão que determina ao portador de deficiência mental - objeto do próprio trabalho; fadando-se a ser deficiente. Estruturam-se resistências às mudanças, por serem estas consideradas ameaçadoras e perigosas.

O serviço de enfermagem, bem como o interno, é depositário do destruído, do deformado, do fragmentado da própria instituição. Assim se explica, a manutenção do controle rígido, da vigilância cerrada mantida sobre o trabalho das pajens. Simbolicamente, esse controle propicia a manutenção a própria instituição.

Cabe finalmente ressaltar, que a CASA GRANDE é a porta-voz dos conflitos, do sinistro, do medo, do isolamento e da exclusão que a própria. sociedade deposita nela, que são dramatizados e atuados nas relações institucionais pela sociedade, no que se refere a lidar com a sua própria deficiência.

Deste modo, concluí que o reconhecimento e a compreensão desses aspectos relativos ao funcionamento de uma instituição são essencialmente importantes. Sem esse "diagnóstico" e a visualização de estratégias operativas que possibilitem a sua elaboração pelos sujeitos envolvidos no cotidiano institucional, quaisquer mudanças que se proponha, mobilizarão novas ansiedades e conseqüentemente as resistências.

Este estudo permitiu visualizar, também, que mudanças efetivas no serviço de enfermagem, só serão viáveis se estas questões forem, terapeuticamente, analisadas e tratadas no todo da CASA GRANDE.

  • 1. DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. São Paulo, Cortês, 1988.
  • 2. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974.
  • 3. JAQUES. E. Os sistemas sociais como defesa contra a ansiedade persecutória e depressiva. In: KLEIN, M. et al. Temas de psicanálise aplicada. Rio de Janeiro, Zahar, 1969. p.207-31.
  • 4. MENZIES, I. O funcionamento das organizações como sistemas sociais de defesa contra a ansiedade. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, s.d./mimeografado/.
  • 5. PICHON-RIVIERE. O processo grupal. São Paulo, Martins Fontes. 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 1996
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