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Pesquisa etnográfica em enfermagem

Ethnographic research into the nursing

Resumos

Este artigo faz uma abordagem da pesquisa etnográfica em enfermagem. Discute sobre a finalidade e a relevância deste tipo de pesquisa no contexto da profissão. Abrange também questões relativas ao rigor metodológico e a ética. Faz um delineamento sobre o método da observação participante e a entrevista, tecendo considerações sobre a coleta, análise e utilização dos dados para a descrição da cultura.

Pesquisa Qualitativa; Etnografia; Metodologia de pesquisa


This article makes an deals with ethnographic research in nursing. It discusses the goal and the relevance of this kind of research the professional context. It includes also issues related to rigor and ethics. It points out basic aspects of participant-observation and ethnographic interview methods, and makes an overview of data collection, analysis and utilization of this data for culture description.

Qualitative research; Ethnography; Research Methodology


ARTIGOS ORIGINAIS

Pesquisa etnográfica em enfermagem

Ethnographic research into the nursing

Dulce Maria Rosa GualdaI; Luiza Akiko Komura HogaII

IProfa. Dra. do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da EEUSP. Diretora do Departamento de Enfermagem do Hospital Universitário da USP

IIProfa. Dra do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo - ENP-EEUSP

RESUMO

Este artigo faz uma abordagem da pesquisa etnográfica em enfermagem. Discute sobre a finalidade e a relevância deste tipo de pesquisa no contexto da profissão. Abrange também questões relativas ao rigor metodológico e a ética. Faz um delineamento sobre o método da observação participante e a entrevista, tecendo considerações sobre a coleta, análise e utilização dos dados para a descrição da cultura.

Unitermos: Pesquisa Qualitativa, Etnografia, Metodologia de pesquisa.

ABSTRACT

This article makes an deals with ethnographic research in nursing. It discusses the goal and the relevance of this kind of research the professional context. It includes also issues related to rigor and ethics. It points out basic aspects of participant-observation and ethnographic interview methods, and makes an overview of data collection, analysis and utilization of this data for culture description.

Unitermos: Qualitative research, Ethnography, Research Methodology

INTRODUÇÃO

A utilização da metodologia etnográfica nas pesquisas da área da enfermagem vem se desenvolvendo nas últimas décadas, principalmente nos Estados Unidos da América (EUA), fato, que pode ser constatado nas publicações dos diversos periódicos existentes na área. No Brasil, embora ainda se encontre em fase de desenvolvimento, este método de pesquisa vem sendo adotado por um contingente cada vez maior de pesquisadores. A tentativa de consolidação desta abordagem de pesquisa se deve ao reconhecimento da contribuição que a etnografia pode trazer para a enfermagem.

Em termos teóricos, possibilita a geração de conceitos, construtos, teorias descritivas e explicativas que contribuem para o desenvolvimento do conhecimento básico e específico da enfermagem (AAMODT, 1991). Cada etnografia, por se constituir numa descrição vivida e detalhada da realidade de pessoas pertencentes a um determinado contexto cultural, representa uma parte do conhecimento e da história da enfermagem.

Em termos de prática de enfermagem, a compreensão do comportamento dos clientes viabiliza a possibilidade de prestar cuidados mais congruentes e que resultem numa maior satisfação das pessoas que cuidamos. Aspectos relacionados à saúde, à doença e às formas de reagir ao processo de aculturação, que inclui a perspectiva do sistema de saúde, são possíveis de serem contemplados pelas pesquisas etnográficas. A própria realidade profissional da enfermagem pode ser examinada por este tipo de investigação, com a finalidade de propor mudanças, objetivando melhorar as condições de trabalho e favorecer melhor qualidade da assistência prestada.

O MÉTODO ETNOGRÁFICO

A etnografia é, uma modalidade de pesquisa social que foi desenvolvida pelos antropólogos. Boas e Malinoviski são considerados os criadores dessa metodologia, ocorrida no início deste século. Segundo LAPLANTINE (1994), tem como fundamento a ruptura inicial em :relação ao abstrato e especulativo e com tudo aquilo que não esteja baseado na "observação direta dos comportamentos sociais a partir de uma relação humana". Considera, ainda, que, para a captação profunda de um fenômeno "é preciso compreendê-lo alternadamente, tal como percebe o observador estrangeiro, mas também tal como os atores sociais o vivem. O fundamento deste movimento de desdobramento ininterrupto diz respeito à especificidade do objeto antropológico".

Para LEININGER (1985), a etnografia, no seu sentido mais amplo, pode ser definida como um processo sistemático de observar, detalhar, descrever, documentar e analisar o estilo de vida ou padrões específicos de uma cultura ou subcultura, para aprender o seu modo de viver em seu ambiente natural.

Segundo SPRADLEY (1980), o elemento essencial da etnografia é buscar compreender o modo de vida de pessoas ou grupos, na sua própria perspectiva. Assim sendo, envolve estudo disciplinado e sistemático de como é o mundo para as pessoas que aprenderam a ver, ouvir, falar, pensar e agir de modo específico. Acrescenta que é fundamental a preocupação com o significado das ações e eventos para as pessoas que se procura conhecer. Elas fazem uso constante deste sistema complexo de significados para organizar seu comportamento, compreender a si mesmas e aos demais e dar sentido ao mundo. O sistema de significados constitui a sua cultura e, a etnografia, sempre, implica buscar e construir a teoria geral da cultura, objetivando gerar hipóteses e viabilizar investigações subseqüentes. O autor afirma que todas as etnografias são obras inacabadas, quer tenham inúmeros volumes, quer tenham apenas uma publicação.

Para AAMODT (1991), os dados culturais de uma etnografia derivam de abstrações daquilo que as pessoas fazem, ou dizem que fazem, ou, ainda, a forma como interpretam aquilo que fazem. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que há duas abordagens teóricas na conceituação de cultura. Uma engloba o sistema comportamental e a outra, o cognitivo. Os estudos comportamentais (o que as pessoas fazem) focalizam padrões observáveis de comportamento dos membros de um determinado grupo social. Os estudos orientados pela conceituação cognitiva restringem a visão de cultura ao sistema de idéias de uma determinada sociedade, os quais buscam estudar as crenças, valores e conhecimento sobre certo fenômeno. Assim sendo, se o pesquisador optar pela primeira conceituação, terá como foco de investigação os objetos, eventos e cenas culturais. Optando pela outra conceituação, concentra a investigação nas informações dadas pelas pessoas que possuem ou fazem uso do conhecimento da cultura que abriga o fenômeno a ser estudado. A diferença reside no que é uma atividade humana observável, através de técnicas de observação naturalísticas, ou análise de um sistema de códigos de linguagem, a partir do que as pessoas sabem, ou como o interpretam. A autora admite que estas duas posições podem ser utilizadas num mesmo estudo com o objetivo de complementariedade. Faz uma ressalva, porém, que a abordagem do estudo etnográfico depende , por um lado, da postura do posicionamento do pesquisador diante da investigação, por outro, do fenômeno a ser estudado.

Outros conceitos considerados importantes na etnografia, que os antropólogos emprestaram da linguística são o "emic" e o "etic", traduzidos por ROAZZI (1984) para o português como "êmico" e "ético". Existe muita controvérsia com relação à definição do termo e ao mérito de cada enfoque. De uma forma simplificada, êmico refere-se à descrição de manifestação de comportamento de um determinado grupo cultural, através da utilização de conceitos e linguagem próprios desta cultura. Numa perspectiva ética, as manifestações de comportamento são interpretadas e explicadas, na dimensão teórica e de linguagem do pesquisador, a partir do estudo comparativo de várias culturas, cujos critérios são considerados universais.

Como se pode observar nas considerações feitas acima, várias podem ser as abordagens utilizadas na etnografia, em decorrência de sua gênese na antropologia. Esta, enquanto disciplina, nas palavras de PEIRANO (1995) "abriga estilos bastante diferenciados, uma vez que fatores como contexto de pesquisa, orientação teórica, momento sócio histórico e até personalidade do pesquisador e ethos dos pesquisados influenciam o resultado obtido". A mesma autora afirma que "não são grandes teorias nem abrangentes arcabouços teóricos que as informam, mas ao contrastar os nossos conceitos com outros conceitos nativos, ela se propõe formular uma idéia de humanidade construída pelas diferenças".

O TRABALHO DE CAMPO

A busca etnográfica se consolida por meio do trabalho de campo. Segundo MINAYO (1993) o campo representa "o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos impíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto da investigação". Nesta perspectiva, considera que o trabalho de campo inclui, tanto os referenciais teóricos nos quais o pesquisador se fundamenta, quanto aspectos operacionais que envolvem questões conceituais. Assim sendo, o pesquisador ao demilitar um campo seleciona os fenômenos a serem estudados e o modo de coletar dados, o qual as pessoas e grupos específicos constituem o foco principal. Assim, o pesquisador só poderá apreender a perspectiva do grupo estudado por meio de um processo de imersão na cultura. Para LAPLANTINE (1994) "a etnografia é antes uma experiência de uma imersão total, constituindo uma verdadeira aculturação invertida, na qual, longe de compreender uma sociedade em suas manifestações exteriores, devo interrogá-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos".

Em decorrência, torna-se essencial a interação entre o pesquisador e os pesquisados. O envolvimento do pesquisador com os informantes, demanda atributos pessoais de sensibilidade, empatia e capacidade de interação. Isto significa colocar-se o mais próximo possível do que é vivido pelas pessoas, mesmo sob o risco de, em certos momentos, perder a identidade e sair modificado desta experiência.

O trabalho de campo se estrutura pelo uso de várias técnicas e estratégias para a coleta de dados e são consideradas essenciais a observação participante e a entrevista.

A técnica da observação participante se realiza por meio do contato direto do pesquisador com o fenômeno estudado, com a finalidade de obter informações sobre a realidade das pessoas em seus próprios contextos. A observação participante é concebida como a técnica de coleta de dados menos estruturada, pois não supõe nenhum instrumento específico para o seu direcionamento, e a responsabilidade pelo seu resultado recai inteiramente no pesquisador. Tem como pré-requisito a presença constante do observador no campo, convivendo com os informantes no seu ambiente natural durante algum tempo. A interação social produzida ocasiona modificações no contexto observado, ao mesmo tempo que torna o observador receptáculo de influências do contexto.

PEARSALL (1965) considera que a observação participante representa um modo de obter informação, ao mesmo tempo que implica em uma série de comportamentos nas situações em que se está envolvido. Assim sendo, o pesquisador se move nos papéis de observador e participante, conforme as condições encontradas no seu dia-a-dia no trabalho de campo.

CICOUREL (1980) aponta que há diferentes tipos de papéis que o pesquisador social pode assumir no trabalho de campo. Tais papéis variam do observador total ao participante total e devem ser consideradas também as versões intermediárias, tais como, o observador como participante e o participante como observador. A definição de tal papel condiciona-se ao grau de envolvimento desejado pelo investigador no processo de pesquisa. Num extremo, coleta os dados apenas observando, sem se envolver com a cena e num outro, mantém alto nível de envolvimento, especialmente quando se trata de situações às quais já é participante comum.

SPRADLEY (1979) propõe que simultâneamente à observação participante, seja realizada a entrevista etnográfica. Nesta, o entrevistado recebe a denominação de informante, que atua como um verdadeiro professor do etnógrafo. Para. SPRADLEY (1979), estas são pessoas comuns, que, com o seu conhecimento comum, constroem a sua experiência. São responsáveis pela definição das questões da entrevista. Ao se trabalhar com informantes deve-se manifestar disponibilidade para considerar os interesses e preocupações sobre o assunto proposto.

Este autor identifica três principais tipos de questões, que denomina como: descritivas, estruturais e de contraste. As primeiras tem o objetivo de favorecer a expanção das explicações dos informantes e são utilizadas nas diversas fases do estudo. Constituem a base da entrevista etnográfica pois, possibilitam o conhecimento do modo pelo qual as pessoas representam o mundo para si mesmas. As questões estruturais visam explorar a forma de organização do conhecimento cultural do informante, complementam e expandem os dados descritivos. As últimas são elaboradas com a finalidade de comparar dados e mostrar as diferenças entre eles. Estas são formuladas à medida em que o pesquisador nota diferenças na forma em que os informantes descrevem seus símbolos no decorrer da conversação.

Além da observação participante e da entrevista podem ser utilizados documentos e imagens visuais como recursos para o procedimento de coleta de dados. A análise documental engloba o exame de qualquer material escrito que pode ser usado como fonte de informação. Podem ser incluídos documentos pessoais (cartas, diários, autobiografias etc), oficiais (leis, regulamentos, pareceres, normas) e técnicos (relatórios, arquivos, publicações etc). Sua utilização apresenta algumas vantagens práticas, pois estão disponíveis para serem consultados quantas vezes forem necessárias, nem implicam em gastos para o pesquisador. Além disso, representam fonte passiva de coleta de dados. Devem ser consideradas, entretanto, algumas restrições com relação à procedência e à veracidade das informações que produzem, e para tanto, recomenda-se a obediência a critérios e hipóteses que orientem a sua seleção.

As imagens visuais (fotografias e "video tapes") também podem ser incluídas: existem três categorias delas: as que as pessoas têm disponíveis, as produzidas pelo pesquisador no campo e as produzidas pelos informantes em posse do equipamento. As imagens visuais que pertencem aos participantes podem fornecer informações sobre pessoas e eventos que não mais fazem parte do contexto. Elas reavivam a memória dos informantes e enriquecem a coleta de dados. No entanto, apesar de fornecer informações factuais, foram feitas com um determinado objetivo e na perspectiva de quem as produziu. Para não correr o risco de analisá-las de modo superficial ou inadequado, é preciso que o pesquisador conheça as condições e o contexto nas quais foram produzidas.

O mais comum é utilizar-se as imagens visuais feitas em campo, durante o desenvolvimento da pesquisa. Objetiva-se registrar e possibilitar a visualização de detalhes que ocorrem em campo, que são relevantes e podem não ter sido captados no momento da observação. Outro aspecto importante é que fotografias e vídeos facilitam o estabelecimento de um "rapport" com o grupo estudado. Mesmo que no seu início gerem um certo constrangimento ou desconforto, após reveladas, podem se tornar um motivo de aproximação e discussão. O cuidado que o pesquisador precisa tomar é não levar para o campo equipamentos muito sofisticados, que desviem a sua atenção e atrapalhem a observação de fatos importantes.

Outro modo do pesquisador usar imagens visuais é o fornecimento do equipamento aos participantes objetivando o registro dos fatos ou imagens que consideram importantes ou interessantes. Esta técnica pode dar uma idéia de como os informantes visualizam o seu mundo.

Quaisquer que sejam os tipos de imagens visuais produzidas, não há necessidade de preocupar-se com "boas fotos" ou "bons vídeos", mas, sim, com a qualidade dos fatos reproduzidos.

Outro aspecto que precisa ser ressaltado na coleta de dados na pesquisa etnográfica é que não existe necessidade "a priori" de determinar o tamanho da amostra, pois o princípio que o norteia é o da qualidade dos dados, ou seja, a precisão que se retrata o contexto como um todo. MINAYO (1993) considera alguns aspectos sobre a amostragem qualitativa, a nosso ver também aplicáveis à pesquisa etnográfica:

• inclusão de informantes que possuam conhecimento sobre o que o pesquisador pretende explorar;

• abrangência de número suficiente de informantes, de modo a permitir reincidência de informações, sem desprezar os que trazem informações ímpares, cujo potencial explicativo deve ser considerado;

• diversificação dos informantes com a finalidade de apreender semelhanças e divergências;

• inclusão de locais e grupos de observação e informação, possibilitando informações e retrato do conjunto das experiências e expressões que se pretende explorar na pesquisa.

Considerando-se que a ênfase está na qualidade dos dados, pode-se excluir informantes que não tragam informações significativas para a investigação, o que denomina-se seleção secundária.

A ANÁLISE DOS DADOS

Existe o consenso entre os pesquisadores etnográficos de que a coleta e análise de dados deva processar-se simultaneamente, num movimento espiral com aumento crescente do seu nível de complexidade. Durante o processo de análise dos dados, o pesquisador caminha por diversos estágios e, gradativamente, vão surgindo novas dimensões do conhecimento, que conduzem a novos questionamentos. Isto demanda coleta adicional de dados e permite a expansão e a verificação dos achados (SPRADLEY, 1979 ); (SPRADLEY, 1980).

A finalidade da análise é extrair temas e obter um entendimento profundo dos valores e crenças que guiam as ações dos indivíduos. Isto envolve um pensar e re-pensar sobre o que as pessoas dizem, fazem e sobre a consistência entre aquilo que dizem que fazem e realmente fazem e o significado das ações no contexto, onde atividades e interações ocorrem. A etnografia como produto do trabalho de campo, é uma descrição cultural. A generalização é a tarefa essencial do pesquisador e envolve tanto a descrição de padrões culturais como a apresentação da evidência empírica, das quais tais padrões emergiram, bem como a forma de interpretação do significado dos mesmos para as pessoas de um determinado grupo numa situação social.(POWERS; KNAPP, 1990).

A análise de dados etnográficos pode ser feita de várias maneiras, e existe a possibilidade da associação com outros métodos para melhor estudar o fenômeno.

LEININGER (1985) desenvolveu um método de pesquisa etnográfico específico para a enfermagem, ao qual denominou etnoenfermagem. Neste método, propõe que a análise dos dados seja feita em quatro fases.

• Coleta e documentação dos dados brutos: o pesquisador coleta, registra e inicia a análise de dados relativos ao tema, ao objetivo ou às questões propostas para o estudo;

• Identificação de descritores e componentes: os dados são estudados, buscando as semelhanças e divergências de afirmações e comportamentos, que são classificados de forma a permitir a compreensão da situação ou questões em estudo, para que o significado do contexto seja preservado;

• Análise contextual e de padrões: os dados são escrutinizados para se descobrir padrões de comportamento, significados estruturais e análise contextual. Interpretações, componentes, ou categorias de dados são examinados em busca de padrões recorrentes;

• Temas, achados relevantes e formulações teóricas: é a fase mais refinada de análise e de síntese de dados. Requer reflexão, elaboração de modelo e análise criativa de dados. O pesquisador abstrai temas e pode elaborar formulações teóricas e recomendações.

A etnociência é um ramo mais recente da metodologia etnográfica. Tem como pressuposto que a estrutura oculta ou inconsciente evidencia-se na linguagem das pessoas. Nesta perspectiva, SPRADLEY (1979) e SPRADLEY (1980) propõem quatro etapas no processo de análise: análise de domínios, análise taxonômica, análise componencial e análise de temas.

O primeiro nível, o da análise de domínios, inicia-se a partir das anotações abtidas das observações e das entrevistas. Ele nos leva a conhecer a organização do conhecimento cultural apreendido dos informantes. Um domínio representa uma categoria simbólica do significado cultural que inclui categorias menores. Categoria é uma classificação de objetos diferentes que são tratados como equivalentes.

Para elaboração inicial dos domínios, três são os elementos básicos: termos incluídos, termos cobertos e relação semântica. Os termos incluídos representam os primeiros códigos identificados nos dados próprios da linguagem dos informantes, ou seja, situações, eventos, qualidades, processos e ações que possuem alguma afinidade. Constituem as categorias menores. Os termos que explicam o agrupamento de dados, ou categorias menores, são os termos cobertos, que vem a ser o nome do domínio. Vários termos inclusos se relacionam com um termo coberto, por meio de uma relação, semântica.

SPRADLEY (1979) propõe nove relações semânticas universais, supondo que estejam presentes em todas as culturas. São elas:

1. Inclusão escrita X é um tipo de Y

2. Espacial X é um tipo de Y, X é uma parte de Y

3. Causa efeito X é um tipo de Y, X é uma causa de Y

4. Racional X é a razão para fazer Y

5. Localização de ação X é o local para fazer Y

6. Função X é usado para se fazer Y

7. Meio-fim X é um modo de fazer Y

8. Seqüência X é um passo (estágio) de Y

9. Atribuição X é um atributo (característica) de Y

O passo seguinte é o da análise taxonômica, que constitui-se na organização dos dados segundo uma hierarquia. “Taxa” significa arranjar, classificar com base no conhecimento próprio dos informantes. A taxonomia tem a finalidade de permitir uma análise profunda dos dados e demonstrar a organização interna de um domínio, mostrando a relação entre todos os seus componentes. Neste momento o pesquisador opta se ele analisa superficialmente os vários domínios ou faz uma análise profunda de alguns deles.

Tanto a análise de domínios quanto a taxonômica examinam apenas uma única relação semântica e enfocam as unidades de organização e o relacionamento entre as partes da unidade. Os dados dos dois tipos de análise precisam ser confirmados com os informantes, por meio de questões descritivas e estruturais.

O terceiro nível de análise é a componencial, que representa a busca sistematizada de atributos ou componentes do significado, que são os contrastes identificados nas categorias. A partir desta análise são elaboradas questões de contraste, para que os resultados sejam validados.

Finalmente procede-se a análise temática. O tema cultural emerge a partir dos vários domínios culturais e possibilita a visualização holística da cultura estudada. Um indício da existência de um tema cultural é a recorrência da idéia sobre algo, que encontra-se presente em vários domínios culturais. Os temas culturais são desvendados por meio da imersão (SPRADLEY, 1979), que se caracteriza pelo contato intenso do pesquisador com os dados e por meio da validação deles junto aos informantes. O tema cultural ou os subtemas, se existirem, é algo com alto grau de generalidade, que, com poucas palavras retrata a cultura e representa a conceituação do pesquisador sobre a cultura estudada.

A QUESTÃO DO RIGOR METODOLÓGICO

Uma das questões mais freqüentemente colocadas em relação ao rigor metodológico na pesquisa etnográfica, diz respeito à subjetividade do pesquisador. Esta decorre do envolvimento deste com os informantes no processo de investigação. Assim sendo, pontos importantes relativos à objetividade precisam ser observados pelo pesquisador, para que a validade do estudo seja garantida:

Reconhecimento, pelo próprio pesquisador, de seus pressupostos e valores antes de iniciar a pesquisa. Tais aspectos devem ser reconsiderados e descritos na medida em que forem sendo modificados ou afetados durante o desenvolvimento da investigação.

• O tempo de permanência em campo deve ser o mais longo possível, para que haja a possibilidade da obtenção de resultados mais acurados. Quanto maiores e mais freqüentes forem os períodos de observação, melhores serão as possibilidades de interpretação e inferências a partir dos dados coletados.

• Os dados devem ser coletados por meio de diversas fontes de informação, em vários momentos e situações e validados com os informantes.

• Os métodos, procedimentos e os modos de obtenção das informações devem ser claramente descritos pelo pesquisador. Da mesma maneira, os dados que conduziram o pesquisador à interpretação e às inferências realizadas também devem ser apresentados.

• Sugere-se o envolvimento do pesquisador com outros pesquisadores nas diversas etapas da investigação, para que outras perspectivas sejam analisadas e sugeridas.

A QUESTÃO DA ÉTICA

De acordo com BOGDAN; BIKLEN (1982), dois pontos básicos orientam a ética na pesquisa com seres humanos:

• Os sujeitos participam, voluntariamente, das pesquisas, conhecem a natureza do estudo, os riscos e obrigações envolvidos;

• Os sujeitos não são expostos a riscos que sejam maiores do que os benefícios que possam advir da sua participação na pesquisa.

Com base nestas diretrizes, o pesquisador etnográfico deve:

• Obter consentimento dos informantes para a participação na pesquisa. Atualmente, é consenso entre os pesquisadores que não se deve, na maioria das situações, esconder ou omitir o "status" de pesquisador e informações sobre a pesquisa. Não se permite inverdades aos informantes, bem como a utilização de recursos tecnológicos sem o conhecimento das pessoas envolvidas.

• Resguardar a identidade dos informantes, bem como manter sigilo de informações, quer sejam elas observadas ou reveladas. Geralmente, no relato da pesquisa, utilizam-se nomes fictícios ou abreviações, atentando-se, sempre, para não se revelar informações que possam constrangê-los, expô-los a riscos ou identificá-los. Se, em alguma situação, o sigilo não puder ser mantido, ele não pode ser préviamente garantido.

• Possibilitar ao informante interromper a sua participação na pesquisa, a qualquer momento.

• Relatar somente os resultados que os dados revelarem, mesmo que estes, ideólogicamente, desagradem ao pesquisador. Distorcer ou criar dados não é compatível com a condição de um cientista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao utilizar-se o método etnográfico, deve-se considerar vários aspectos, e, nesta ocasião destacam-se alguns. Um deles diz respeito ao pesquisador, que, no método etnográfico, é o principal instrumento e tem a flexibilidade de decidir quando e onde coletar dados. As técnicas utilizadas devem orientar o pesquisador e não são normas rígidas, nem preceituários a serem cumpridos ininterruptamente.

Deve-se sempre ter em mente que a etnografia é gerada a partir de um fenômeno que se processa em campo. O pesquisador pode ter algum conhecimento sobre a cultura ou acontecimento, mas deseja aprofundá-lo. De início, pode ter questões amplas, mas modificações ou revisões nestas questões, geralmente, são necessárias, à medida em que os dados são coletados e analisados.

Nenhuma etnografia configura-se como uma obra acabada ou uma reprodução completa de uma cultura. O pesquisador, ao estudar para descrever determinado contexto, explora apenas partes dessa realidade, dependendo do tipo de informação que recebe e das situações sociais que observa. O próprio modo do pesquisador conceituar cultura o conduz por caminhos diferentes e à exploração de perspectivas do mesmo fenômeno.

O trabalho de campo demanda uma interação do pesquisador com as pessoas em diversas situações sociais. Neste processo interativo, o papel do pesquisador é, em parte, definido por ele próprio, em parte pelo grupo e pela situação. Além disso, modificações ocorrem tanto no pesquisado quanto no grupo. MINAYO (1992) afirma que "frente à situação particular da pesquisa, está em jogo a capacidade de empatia, de observação e de aceitação do pesquisador que não pode ser transformada em receituário prático".

HAMMERSLEY; ATKINSON (1990) ressaltam que existem muitas variações de etnografia, baseadas nas posições filosóficas, metodológicas e éticas, que podem ser utilizadas e não há uma linha divisória rígida entre elas. Além disso, há diferentes escolas que se embasam em abordagens teóricas diversificadas. No entanto, a orientação ou perspectiva teórica, conforme afirmam BOGDAN, BIKLEN (1982), quer seja declarada ou não, deve direcionar o processo de pesquisa. Para os autores, bons pesquisadores tem claro sua posição teórica da qual se utilizam na coleta e análise dos dados. Consideram que a teoria permite que o estudo seja coeso e vá além de uma mera coleção assistemática de dados dispersos.

Muitos pesquisadores acreditam que o produto final da pesquisa etnográfica realizada por enfermeiros tenha uma aparência diferente daquelas realizadas por antropólogos. Uma das explicações para isto, talvez, seja a natureza da prática da enfermagem, a característica dos problemas que despertam interesse do pesquisador e o tipos de problemas levantados. Neste âmbito, AAMODT (1991) lembra que inúmeros enfermeiros pesquisadores da linha qualitativa aprenderam o método por meio dos livros e da prática da pesquisa, num processo de ensaio e de erro. Assim, métodos e técnicas tornaram-se diversificados, na medida em que foram sendo adaptados às situações particulares ou ao estilo próprio do investigador. Algumas vantagens decorrentes do fato do pesquisador etnográfico ser um enfermeiro podem ser mencionadas, como por exemplo, o conhecimento das instituições de saúde, familiaridade na atividade de observação e entrevista, experiências prévias de contato direto com pessoas provenientes de diferentes culturas no dia-a-dia das suas atividades assistenciais e a experiência em lidar com questões relativas ao cuidado da saúde e da doença. Estes aspectos facilitam o acesso aos locais a serem pesquisados e a compreensão das situações sociais, porém, deve-se estar consciente de que todos estes fatores facilitadores não dispensam o preparo do pesquisador nem eliminam o choque cultural. Vale ressaltar que o local adequado para realizar pesquisa etnográfica é qualquer lugar onde existam pessoas e atividades relacionadas à enfermagem e ao cuidado da saúde, que requerem abordagem num contexto holístico (GERMAIN, 1986).

Ao desenvolver um trabalho etnográfico, o objetivo da enfermeira é obter uma visão do paciente em relação à vida e em relação ao processo de saúde-doença, com a finalidade de planejar sua assistência. E a etnografia tem se mostrado útil no estudo de contextos naturais em que se processa o cuidado à saúde. É um metodo de pesquisa importante e útil na geração de conhecimento. Assim sendo, representa uma resposta aos muitos desafios que o pesquisador enfrenta no desenvolvimetnto do conhecimento da enfermagem.

Para fundamentar esta afirmativa, podemos citar como exemplos, os trabalhos de AMADOR (1992), GUALDA (1993), GONZALEZ (1993), ZAGO (1994), HOGA (1995), BONADIO (1996) e outros em andamento.

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  • BOGDAN, R.; BIKLEN, S.K. Qualitative research for education: an introduction to theory and methods. Boston, Allyn and Bacon, 1982.
  • BONADIO, I.C. Ser tratada como gente: a vivência de mulheres atendidas no serviço de pré-natal de uma instituição filantrópica. São Paulo, 1996. 200p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • CICOUREL, A. Teoria e método em pesquisa de campo. IN: GUIMARÃES, A.Z. Desvendando máscaras sociais . Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980, cap. 4, p. 87-122.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 1997
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